Leia entrevista do jornalista Reinaldo Azevedo para o podcast Politiquês na minissérie ‘Uma crise chamada Brasil’, em que ele fala sobre a sequência de atropelos institucionais da última década
Reinaldo Azevedo, jornalista que cunhou o termo “petralha” e depois se transformou num dos mais duros críticos da Operação Lava Jato, foi entrevistado pelo podcast Politiquês em julho de 2022 para a minissérie “Uma crise chamada Brasil”, que traça um panorama dos anos que marcaram a quebra do pacto social da Nova República.
Ele aparece no segundo episódio, “Que grito foi esse”, sobre a onda de protestos que tomaram o país na década de 2010, no terceiro episódio, “A torto e a direito”, sobre o protagonismo judicial nas disputas de poder nacionais, no quinto episódio, “Rupturas”, sobre o impeachment de Dilma Rousseff e o que veio depois, e no sexto episódio, “Diálogo interrompido”, sobre o impacto das redes sociais no debate público.
O Nexo traz agora a transcrição da conversa que teve com Azevedo. Ao longo de dezembro de 2022 e janeiro de 2023, as entrevistas realizadas para a minissérie serão publicadas por escrito, a fim de que possam ser fonte de consulta dos leitores do jornal.
Você foi um dos precursores entre blogueiros políticos de grande sucesso no Brasil, num momento ainda anterior às redes sociais. Em que momento você se deu conta do tamanho da influência da comunicação digital no debate público brasileiro? E de que maneira essa comunicação digital mudou o debate público?
REINALDO AZEVEDO Não comecei a fazer blog porque me dei conta da importância. Comecei porque fiquei sem emprego. Eu tinha uma revista, a Primeira Leitura, eu fiquei doente, tive dois tumores na cabeça, tive que fazer cirurgia, me afastar por um bom tempo. E quando eu me recuperei, enfim, eu estava sem emprego. Tive de fechar a revista.
E aí eu falei: “bom, primeiro passo é fazer um blog, começar a escrever e ver se alguém se interessa”. Felizmente, com 15 dias de blog, isso foi em 2006, eu recebi propostas. Escolhi a Veja, onde eu tinha o blog diário e uma coluna na revista. E, depois, mais tarde, passei a ter uma coluna na Folha de S.Paulo. Então, nunca fui exclusivamente da internet. Só blogueiro.
Os blogs de política não mudaram essencialmente a forma de fazer política. As redes sociais, sim. As redes sociais e aqueles que passaram a produzir coisas, muitas vezes um lixo abominável, a serviço de candidaturas e de partidos. E aí, usando as redes sociais para multiplicar as suas indignidades.
Seus posts no blog da revista Veja eram notadamente antipetistas, com duras críticas ao governo Lula e Dilma e alinhado em certa medida ao discurso do polemista Olavo de Carvalho, com alertas sobre o Foro de São Paulo e sobre uma dominação cultural da esquerda nas artes e nas universidades. Como avalia hoje aqueles posicionamentos?
REINALDO AZEVEDO Vejam, eu era e sou um liberal. Se alguns liberais que estão por aí, que na verdade são reacionários, querem caçar minha carteirinha de liberal, bom proveito, porque que eu saiba não existe carteirinha para isso. E sendo um liberal, é evidente que estando o PT no poder eu tenho críticas a fazer a um partido de esquerda. E também sou um democrata, muitas vezes, achei que algumas posturas do PT não se combinavam com a democracia. E, portanto, eu fiz a crítica que fiz. E não me arrependo delas.
Eu mudei de posição em algumas coisas — eu não fiz abjuração —, eu mudei de posição em relação às cotas raciais, por exemplo. Então, você pode dizer: “ah, em certa medida, você estava alinhado com Olavo de Carvalho”. Não estava alinhado com ninguém, eu existia. Olha aqui, Olavo era mais velho do que eu, publicou antes, mas eu nem o conhecia, eu não passei a existir depois que o Olavo passou a ser uma figura midiática. Eu existi antes do Olavo e continuo a existir depois dele.
Eu não era caudatário do seu pensamento. Na verdade, quem editava texto do Olavo de Carvalho era eu, não o contrário. Ele escrevia nas revistas República e Bravo, de que eu era redator-chefe, e ele escrevia lá. Eu editava os textos dele, ele não me editava.
Eu não devo nada, rigorosamente nada, do meu pensamento ao Olavo de Carvalho. “Ah, mas ele falava do Foro de São Paulo e você falava também”. Bom, mas o Foro de São Paulo não é uma invenção, ele existe. Agora, precisa ver o que eu falava e o que ele falava. Como centro de uma grande conspiração para tomar o poder no mundo, isso daí era uma bobagem. Por aí, eu nunca fui.
“Ah, num dado momento, você tretou com a hegemonia das esquerdas, das universidades públicas, sobretudo, especialmente nos cursos de humanas”. Bom, mas isso é verdade. Essa hegemonia existe mesmo. A questão é o que você vai fazer com ela. Então, você vai questionar essa hegemonia o quê? Com Escola Sem Partido? Tentando botar policial em sala de aula? Obviamente não. O caminho é do debate, o caminho do enfrentamento é isso. A isso nunca me furtei de fazer.
Como jornalista de opinião, em certa medida, eu gosto de ser contramajoritário também. Assim como uma corte é contramajoritária muitas vezes, acho que o jornalismo de opinião, ele tem de ser contramajoritário também.
Do que me acusam alguns? “Ah, batia no PT, agora bate no Jair Bolsonaro”. Opa, é isso. Eu conheço gente que elogiava o PT e elogia Bolsonaro. Isso eu acho realmente muito ruim. Eu continuo a ter os valores que eu tinha, mudei de opinião em muitos casos, agora, o enfrentamento que está aí é de outra natureza.
Os petistas me criticavam muito, me atacavam. Bom, eles descobriram que de fato eu não era extrema direita. Eles estão sabendo agora o que é extrema direita de verdade. “Ah, muitas posições hoje suas são próximas às do PT”. Eu poderia dizer que muitas posições do PT também estão próximas das minhas, sem querer me dar um excesso de importância.
Quando e como a ideia da existência de ‘nós e eles’ ganhou tração na política brasileira contemporânea? Esse ‘nós e eles’ que aparecia na disputa PT-PSDB se diferencia em que medida do ‘nós e eles’ da disputa Lula-Bolsonaro?
REINALDO AZEVEDO O “nós e eles” na política é antigo. Na verdade, isso começou sim com o PT, mas nem começou em 2003, quando ele chegou ao poder. Começou lá atrás, quando o PT foi criado. De algum jeito, o PT veio com essa coisa de “nós somos diferentes deles”, eles todos. E “eles” eram indistintos.
Em 2003, com a chegada do Lula ao poder se consolida aquela bobagem da chamada herança maldita. Isso é uma besteira, uma mentira, porque não herança maldita coisa nenhuma. Ao contrário, até, é herança bendita, porque afinal de contas o plano real fez um bem imenso ao Brasil.
O tripé macroeconômico foi mantido pelo Lula, no que fez muito bem, diga-se de passagem. Então, não era herança maldita. Mas politicamente era conveniente ao PT manter esse jogo do “nós contra eles”. E, curiosamente, esse “eles” ficou ali PSDB e PFL, depois DEM. Você vê que o “nós” petista acabou pegando, por exemplo, o centrão. Governou com eles.
Já nas ainda incipientes redes sociais, o petismo fez muito essa guerra do “nós contra eles”, e o “eles” costumava ser o PSDB. Eu me identificava com o PSDB. Eu nunca fui tucano: “olha, o Reinaldo é tucano, é de direita”. Bom, eles conheceram finalmente o que é a direita de verdade, extrema direita, que é a bolsonarista.
Jamais tive qualquer proximidade, de qualquer natureza, com o bolsonarismo e com aquilo que ele representa. E eu vejo que o PT mudou bastante também, né? Afinal de contas, Geraldo Alckmin [ex-tucano] é vice de Lula. Então, se reconhece que a clivagem hoje é de outra natureza. Você tem figuras do tucanato, históricas, que vocalizaram apoio ao Lula. Hoje, a polarização é outra. Hoje, nós estamos numa polarização que é, essa sim, de caráter civilizatório.
Eu sempre invoco com a palavra polarização, quer dizer, Lula e Bolsonaro como polarização, porque tem um polo, que é extrema direita, mas o Lula não é o outro polo, não é extrema esquerda. Agora, existem sim hoje aqueles que defendem o pacto civilizatório e aqueles que querem rompê-lo.
Eu nunca fui, nem passei perto das teses disruptivas de direita. Eu estava rompido com o Olavo desde 2015. Não tínhamos uma conversa frequente. Nunca tive nem proximidade com a extrema direita, porque considero a extrema direita uma inimiga do pensamento liberal. E o liberalismo estará condenado no Brasil pelos próximos 50 anos, em razão de Jair Bolsonaro e do comportamento de muitos canalhas que, dizendo-se liberais são, na verdade, reacionários.
O julgamento do mensalão em 2012 foi inédito em vários aspectos. Colocou no banco dos réus e condenou a cúpula partidária do governo da época. Como você vê hoje aquele julgamento do ponto de vista jurídico, sem que a ação fosse desmembrada, com a tese de caixa dois rechaçada e com votos que mencionavam a ‘teoria do domínio do fato’, algo que para alguns juristas foi usada de forma inclusive equivocada?
REINALDO AZEVEDO Não acho que o mensalão, visto à luz da história, tenha sido um bom exemplo de exercício iluminado do Direito Penal. O que se fez ali foi um processo muitas vezes de responsabilização objetiva, que é uma coisa pavorosa, que não é próprio das democracias. Pessoas foram condenadas porque ocupavam uma determinada posição.
Eu sou contra julgamentos públicos, eu sou contra essas transmissões de julgamento no Supremo. Com alguma frequência, o juiz busca mais o protagonismo em determinados bate-bocas e, muitas vezes, um exercício de pura vaidade, de má retórica, do que propriamente se ocupar do direito. E não foi raro assistir ali a bate-bocas homéricos entre os ministros. E isso não contribuiu para o Direito brasileiro.
O primeiro erro cometido foi não desmembrar os casos. Quando se julga tudo de cambulhada, existe um pré-julgamento, todas essas questões estão interligadas, existe o mesmo fator que as determina. E provavelmente você vai buscar o responsável, alguém da hierarquia do poder, que foi o que aconteceu. Muitos casos ali não tinham conexão nenhuma.
Outro erro foi rechaçar a tese do caixa dois. Sim, havia casos ali em que simplesmente se tinha caixa dois. caixa 2 não implica automaticamente corrupção ativa, corrupção passiva. Isso é uma presunção. Você não pode partir desse princípio, é preciso que se prove, que se demonstre o benefício dado ou oferecido ou a expectativa de benefício ou recebimento de benefício à margem da lei.
Se usou como prova de que caixa dois era corrupção ativa, corrupção passiva, por exemplo, a distribuição de cargos. Uma cadeia de ilações sem que se dissesse: “om, mas o benefício ilegal que foi pago e que foi recebidol? Ah, o benefício ilegal é que existe essa relação”. E, para justificar essa maluquice, apelou-se à tal da teoria do domínio do fato. Claus Roxin, o autor da teoria, afirmou em entrevista à Folha de S.Paulo que ela foi usada de forma equivocada no mensalão. A teoria do domínio do fato nunca autorizou que se justificasse a punição de alguém pela posição que tal pessoa exercia numa determinada hierarquia. Ela não parte do princípio: “ah, não, você deveria saber, você não tava lá?”. Não. A teoria do domínio do fato não serve para punir mais. Na prática, ela pune menos até.
O artigo 29 do Código Penal brasileiro é que não faz distinção entre autor e aquele que concorre e diz: “bom, ambos respondem. Tanto quem fez, como quem concorreu. E cada um, segundo a sua ação”. Então, aí na dosagem da pena, na verdade, que essa distinção vai ser feita.
A teoria do domínio do fato, não. Ela faz a distinção. É preciso ter o domínio, muitas vezes, a pessoa está envolvida num determinado crime, mas ela não tinha domínio disso. Então se faz a distinção, mas em nenhum momento se dispensa a prova. Em nenhum momento se elimina a presunção de inocência. E muitas vezes isso aconteceu, sim, no mensalão.
E aí se misturou a teoria do domínio do fato com o artigo 239 do Código de Processo Penal, das provas indiciárias, que fala ali que é preciso ter indício ou circunstância conhecida ou aprovada, que, tendo alguma relação com o fato, autoriza por indução concluir a existência de outras circunstâncias e tal. Bom, mas se fala: “é preciso ter circunstância conhecida e provada”. E não circunstância presumida.
As pessoas foram punidas apenas porque ocupavam uma determinada posição ou na hierarquia partidária ou na hierarquia de governo. Criou-se ali um uma lógica maluca. Houve aberrações ali que, depois, se multiplicaram na Lava Jato.
A que você atribui as manifestações de junho de 2013? E como avalia as respostas dos governantes à época? Os governantes conseguiram entender e dialogar com as ruas? O pacto de Dilma com os governadores fazia algum sentido?
REINALDO AZEVEDO Eu tenho um juízo muito negativo sobre 2013, não revi as posições, essas opiniões estão no livro “Objeções de um rottweiler amoroso”, que reúne colunas que eu escrevi na Folha. Eu atribuo 2013 à irresponsabilidade de setores de extrema esquerda, que acharam que era chegada a hora de forçar a linha da institucionalidade. Pessoas que haviam estudado muito pouco, lido muito pouco, mas que se colocavam como formuladores de políticas públicas e que nada entendiam do jogo político, inclusive distantes das necessidades da população, que, na verdade, detesta desordem.
Alguns radicalóides irresponsáveis, que, dizendo-se de esquerda, provocaram um desastre na reputação da Dilma. O impeachment começa na verdade em 2013, Bolsonaro começa em 2013. “Ah, mas qual era o malaise, qual era o mal estar de 2013?”. Bom, teria de perguntar para aquela gente qual era. O que eu sei é que 2013, por exemplo, a renda do trabalho estava no topo do Brasil. O desemprego, numa leitura muito ampliada, chegava no máximo a 7%.
Sim, a crise já havia começado, erros de operação de política econômica já começavam a cobrar seu preço, mas não haviam ainda chegado ao povo. Não haviam chegado ao povo ainda. Então, o tal do socialismo da catraca, de 2013, aquilo teve um preço gigantesco, porque abriu as comportas também.
Os governos ficaram atarantados, a Dilma [que era presidente] ficou, o Haddad [que era prefeito de São Paulo] ficou, o Alckmin [que era governador de São Paulo] ficou, independia de partido, porque nem sequer dava para saber direito o que é que se queria.
Queriam tudo. Bom, nós não estávamos num maio de 1968 na França, não é mesmo? Aliás, o rescaldo do Maio de 68 na França foi reacionarismo posteriormente, não é isso? E foi o que acabou acontecendo aqui também. A reação dos governos foi uma reação atarantada, mal pensada, por exemplo, eu acho que o Planalto jamais deveria ter levado aquelas pessoas para conversar. Levou para conversar. Black blocs foram chamados ao diálogo. Eu me lembro do Gilberto Carvalho [secretário-geral da Presidência] contando uma vez que um líder dessa gente aí jogou um rolo de papel higiênico nele. Bom, deveria ter sido preso.
Tentaram dialogar com quem não queria dialogar é sempre um erro. É preciso dialogar com quem quer dialogar. E, veja, é sempre um erro segundo os parâmetros democráticos. Não estou querendo guerra de todos contra todos, mas existem regras do jogo, e as regras do jogo não comportavam aquilo.
Houve coisas estúpidas, por exemplo, eu li artigos de jornal chamando os Black Blocs de uma estética. Estética? Não. No máximo era uma estética fascistóide. Havia trabalhadores também protestando, mas eles expulsaram, ajudaram a extrema direita. Aquilo foi um desastre.
Mas caiu na simpatia na simpatia da imprensa, caiu na simpatia dos meios culturais, caiu na simpatia, inclusive, de esquerdistas que estão por aí ainda hoje, bastante influentes na imprensa, que na prática incentivavam os Black Blocs.
Incentivar Black Bloc correspondia a incentivar a deposição de Dilma, que acabou acontecendo. Demorou um pouco, mas aconteceu. E correspondia a atiçar os eleitores de Jair Bolsonaro, o que também aconteceu.
Dilma tentou um pacto ali com os governadores, mas insisto: pacto para atender a que pauta de reivindicação? Eu lembro de um epíteto para Maio de 68: “os assaltantes do céu”. Tinha gente ali que se sentia assaltante do céu.
Amigos meus, gente que eu conheço acabou escrevendo coisas simpáticas àquela balbúrdia antidemocrática, fascistóide, perigosa, e que deu na porcaria que deu. O meu juízo sobre 2013 é o pior possível, não mudei uma vírgula. A rigor, eu fiquei ainda mais severo com toda aquela porcaria que aconteceu.
E eu me lembro de conhecidos de direita, que me diziam: “ah, Reinaldo, deixa para lá, quem tá se danando é a Dilma”. Eu dizia: “não, quem está se danando são as instituições”. E deu no que deu.
O Brasil viveu em 2014 uma eleição presidencial bastante polarizada entre PT e PSDB. Naquele momento do país, as pessoas de cada um dos pólos políticos ainda estavam se ouvindo de alguma maneira? Havia ainda pontes para um debate público com troca e possibilidade de convencimento? Ou a comunicação já tinha sido rompida?
REINALDO AZEVEDO Quando a gente compara os embates de hoje, do governo Bolsonaro com o resto do mundo, isto é, do governo Bolsonaro com tudo aquilo que não é o governo Bolsonaro, a gente acaba concluindo, de uma maneira um tanto apressada, que de fato os embates anteriores eram civilizados, tranquilos, porque nada é comparável àquilo que o bolsonarismo promove, ao tipo de confronto que eles provocam. Agora, vamos ser claros, a relação do PT com aqueles que não compõem o arco de alianças que apoiaram o governo era sempre muito difícil, não faltando inclusive acusações, desde as acusações daqueles que são contra os interesses do povo em razão ali de associações espúrias até, enfim, a tentativa de criminalização muitas vezes da oposição.
Então, não era, nunca foi uma relação tranquila, a verdade é essa. Quando a gente vê hoje o Alckmin como vice do Lula, parece que é só a realização de um desiderato que já estava dado lá atrás. Não é verdade. A relação era bastante difícil. Sempre foi. As campanhas eleitorais sempre foram muito duras.
Qualquer coisa comparada ao bolsonarismo fica parecendo uma festinha de normalistas, mas não era. Em 2014, a situação estava pior do que jamais esteve, considerando o passado de confronto de PT e PSDB. Até porque a Lava Jato tinha começado em março e, quando chegou em outubro, já havia ali um número tal de operações e de ações da operação, que tinham o PT como alvo. Porque num primeiro momento, os alvos eram mais identificados com o petismo. E o PSDB investiu muito, seria até natural que o fizesse, e o fez. Investiu muito nessa questão, associando, então, também o governo Dilma à corrupção que se procurava investigar no país, segundo os marcos da Lava Jato.
Eu diria que já em 2014 o diálogo se mostrava bastante difícil. Foi mais duro do que nas outras vezes. E como a oposição ao PT, num dado momento, pareceu que iria conseguir superar a Dilma, então se criou a expectativa do encerramento do ciclo petista. Aí, sim, com a economia, em outubro, já dando sinais muito claros de que entraríamos numa crise. E essa vitória [da oposição] não veio. Então, o embate eleitoral foi muito mais duro do que antes, em razão já do fator Lava Jato, que estava ali insuflando as consciências contra o petismo e também da frustração que se seguiu à derrota do Aécio Neves.
Eu não falaria em rompimento de diálogo, porque diálogo propriamente não havia. Mas eram confrontos muito duros dentro da institucionalidade.
A novidade do bolsonarismo são os confrontos que buscam romper a institucionalidade. E, insisto, mesmo quando o PSDB pediu ali para se investigar eventuais fraudes [pedido de auditoria das urnas após a derrota de 2014], para que se investigassem eventuais fraudes na eleição, ainda o fez dentro de marcos legais, que estavam definidos. É muito diferente daquilo que o Bolsonaro faz agora, ele tá querendo inventar moda para colocar as urnas sob suspeição.
O PT e Dilma erraram ao não apoiarem Eduardo Cunha na eleição para a presidência da Câmara em 2015? O que a vitória de Cunha significou para o governo da petista?
REINALDO AZEVEDO É claro que o PT a Dilma cometeram um erro ao não apoiar Eduardo Cunha para a presidência da Câmara e tentar impedir a ascensão dele, porque qualquer avaliação objetiva como, aliás, até a imprensa fazia da disputa indicava que ele venceria. E qual é a pertinência, o sentido de uma Presidente da República ter um inimigo na presidência da Câmara, considerando que este presidente, depois do vice, é o primeiro na linha sucessória e tem em mãos o ato monocrático de botar para tramitar um pedido de impeachment?
Quando eu digo que foi uma escolha errada estou trabalhando aqui com as duas éticas citadas por Max Weber. A ética da responsabilidade e da convicção. Como eu não sou político, eu posso exercer plenamente a ética da convicção: gosto, não gosto, quero, não quero, e arco com o peso das minhas escolhas, porque isso diz respeito em última instância a mim e é o modo como eu me coloco no mundo.
Quando se é político, quando se representam vozes na sociedade, além da convicção, você tem a responsabilidade. Então, entre as mesmas responsabilidades está manter, por exemplo, um arco de poder ou rompê-lo. Aí eu não posso fazer uma escolha que diga respeito apenas à minha vontade ou apenas àquilo que eu considere certo.
Muitas vezes, eu posso até ter de contrariar minha convicção em nome da responsabilidade, para que um ato eventual que contraria o meu gosto ou que contraria até a minha moral pessoal possa, do ponto de vista ético, ter um desdobramento positivo. Ao PT, teria sido muito melhor fazer concessões ali para impedir que Eduardo Cunha botasse para tramitar um pedido de impeachment.
Mas se Dilma não viesse perdendo apoio progressivamente, aquilo não teria prosperado. Se a economia estivesse vivendo um bom momento, aquilo não teria prosperado. Você não pode tomar o ato de impeachment isoladamente, você não pode desconsiderar a realidade política, desconsiderar a realidade econômica.
Qual foi o impacto da Lava Jato no impeachment de Dilma?
REINALDO AZEVEDO Olha, sem Lava Jato não teria havido impeachment da Dilma. A economia já estava numa situação muito difícil, erros do passado, todos ali acumulados. Agora, depor um presidente é sempre uma tarefa muito delicada.
A Lava Jato criou os movimentos de rua contra a presidente Dilma, ela se aproveitou do espírito de 2013, que inicialmente era de esquerda e depois evoluiu para os protestos conservadores em 2015 e 2016. Você tem também tem ali a divulgação ilegal [por parte de Sergio Moro] de um áudio também gravado ilegalmente [conversa entre Dilma e Lula em que ambos falavam sobre o termo de posse do ex-presidente como ministro da presidente, algo que foi ijnterpretado como uma tentativa de burlar a Justiça, dando foro privilegiado a Lula]. A Lava Jato derrubou a Dilma.
Você foi favorável ao impeachment de Dilma em 2016, mas já admitiu que esse posicionamento foi um erro. Poderia explicar por quê?
REINALDO AZEVEDO Eu apoiei o impeachment, sim, e avaliei depois que foi um erro. Dada a dupla natureza do impeachment, é preciso que haja o crime de responsabilidade e é preciso que passe pelo crivo da política, teria sido muito melhor para o Brasil se o crivo da política tivesse impedido que o impeachment tivesse prosperado, ou na Câmara ou no Senado, que seria a última barreira. Mas, insisto, passando pela Câmara, dificilmente o Senado segura.
Mesmo com o crime de responsabilidade, você poderia impedir politicamente o impeachment, por isso ele tem uma dupla natureza.Foi um erro porque, a partir dali, eu acho que se abriu a caixa de pandora e todos os males saíram de dentro da caixa e, como no mito original, só esperança restou no fundo, e os males todos saíram.
Golpismo, esse rancor da extrema direita diz respeito às instituições, diz respeito ao devido processo legal, tudo isso veio junto com o impeachment, um contencioso de ódio que havia... na sociedade, há pessoas assim, não por acaso o Bolsonaro tem uma base bastante sólida na sociedade. E é claro que o impeachment foi o elemento, digamos, que detonou as contenções todas e isso aflorou e isso explodiu. Tinha começado lá atrás, tinha começado em 2013, foi fermentando, fermentando, fermentando e finalmente em 2016 explodiu. Então, foi um erro político.
Eu acho que, sim, os democratas que apoiaram o impeachment erraram, ainda que o objetivo não fosse obviamente causar esse desastre todo.
Mas há uma outra questão aí, envolvendo o crime de responsabilidade em si. Eu fui rever os dados e, com todo respeito ao relatório do senador Antonio Anastasia [relator do impeachment no Senado], acho que ele procurou fazer um bom trabalho, mas a verdade é que havia manobras, sim, no curso do orçamento, mas que ao fim se anulariam. Houve processos heterodoxos de contabilidade criativa nos meios, mas ao fim a manobra fiscal, acho eu, não existiu.
Os petistas dizem que havia um combo de opositores contra o partido: tirar Dilma e prender Lula a fim de tirá-lo da disputa de 2018. O que acha dessa avaliação do partido? Faz algum sentido?
REINALDO AZEVEDO É insustentável essa tese dita dessa maneira. Acho que aí, a gente incorre num erro de lógica muito comum estudado na Escolástica, que tem até uma frase em latim que define, que é o post hoc ergo propter hoc: “depois disso, logo, por causa disso”. Para que isso tivesse acontecido dessa maneira seria preciso que os opositores fossem adivinhar que o PT tentaria impedir o Eduardo Cunha de ser presidente da Câmara, que o PT iria votar contra Eduardo Cunha no caso do Conselho de Ética, que a Lava Jato fosse ter o desenvolvimento que teve, o curso que teve. Não dá para dizer essas coisas todas.
Por que a Lava Jato ganhou tanto apoio da opinião pública após sua deflagração em 2014? A que anseio dos brasileiros a operação atendia?
REINALDO AZEVEDO A Lava Jato ganhou a opinião pública, em primeiro lugar, porque há corrupção no Brasil. E continua a haver, é uma corrupção sistêmica. E, portanto, atendia a um anseio de Justiça e de punição de criminosos. E esse impulso da população, esse desejo é justo.
Agora, é preciso ver as circunstâncias. A Lava Jato vem em 2014 à esteira dos protestos de 2013, inaugurados pela extrema esquerda, grupos decidiram que era hora de forçar os limites da institucionalidade, o que sempre será um desastre e sempre vai resultar no triunfo de teses autoritárias, seja de esquerda, seja de direita. No caso, foram teses autoritárias de extrema direita, mas quem primeiro rompeu a linha da civilidade política, sim, foi a extrema esquerda com protestos.
No dia 1º de agosto, a Dilma sanciona a lei 12.846, dos acordos de leniência. No dia 2 de agosto, a lei 12.850, das organizações criminosas, com uma regulamentação das delações premiadas. E ali estava, digamos, contratada a Lava Jato, a partir de um caso que parecia localizado, um juiz, Sergio Moro, soube fazer uma leitura do momento, e aquilo que poderia ser uma operação localizada de combate a uma ação criminosa em si virou uma operação, virou uma força-tarefa. E a partir daí, Curitiba passou a ser a sede universal de todos os males que aconteciam no Brasil. E Sergio Moro, tendo um delator de estimação, o Alberto Youssef, fez o caso que fez, lembrando que Alberto Youssef tinha sido o delator do caso Banestado e que o juiz também era Sergio Moro.
Então, se atribuiu a Sérgio Moro a tarefa de acabar com a corrupção no Brasil. Como setores de direita, de extrema direita, se incomodavam ali com o longo tempo do PT no poder e como o modelo econômico do PT, por assim dizer, dava sinais de fragilidade, então, a Lava Jato cresceu. Ainda foi possível a Dilma se reeleger, mas já ali com uma vantagem bem pequena. E estava um pouco pavimentado ali o caminho do impeachment.
Em que momento você passou a considerar que a Lava Jato poderia estar atropelando o Estado de Direito? Quais ações específicas da operação, na sua avaliação, são ilegais?
REINALDO AZEVEDO Eu comecei a me incomodar já em 2014, quando eu vi que havia um processo de endeusamento do Sergio Moro e que isso parecia lhe causar bastante satisfação.
Procuradores já começaram, então, a falar muito além do que me parecia razoável. Inclusive, atuar nas redes sociais. Começou a me incomodar, começaram a me incomodar entrevistas de delegados, de procuradores, em que, enfim, a presunção de inocência simplesmente era eliminada, porque a espetacularização das ações da Polícia Federal, em associação com Ministério Público, criava um clima óbvio de condenação. Prisões preventivas como antecipação de condenação, sem amparo no artigo 312 do Código do Processo Penal, os quatro motivos para ter uma prisão preventiva antes da condenação, portanto, que é ameaça à ordem público-econômica, contemporaneidade do crime em suma, envolvendo ali prejudicar a instituição criminal, mexer com testemunhas ou com provas; risco de não cumprimento da lei penal, fuga; ou então o artigo 313, violência doméstica ou, então, reiteração de crime quando a pessoa já é condenada. Nada disso estava dado e, no entanto, as pessoas estavam sendo encarceradas. E obviamente se buscavam, com esse encarceramento, forçar as delações.
Conduções coercitivas, como foi o caso do Lula, espetaculosas, mandados de busca e apreensão, mandados que me pareceram sem procedência, muitas vezes, em busca de documentos antiquíssimos, que, entendo, os criminosos evidentemente não iam guardar. Vazamentos, vazamentos absurdos. A imprensa, infelizmente, passou a ser sócia dessas ações, de sorte que jornalistas passaram a ter seus delegados de estimação, seus procuradores de estimação. Condenação sem prova no âmbito da Lava Jato, foi o caso do Lula, que eu faço o desafio permanente, quero que alguém me diga em que página da sentença do Sergio Moro aparece a prova contra o Lula. O caso do PowerPoint chega ao máximo, porque o Deltan Dallagnol apresenta uma denúncia contra o Lula e dá uma entrevista coletiva, faz aquele PowerPoint, e o que estava ali no PowerPoint não tinha nada a ver com o conteúdo da denúncia.
Sergio Moro, em embargos de declaração, diz que o tal do tríplex nada tinha a ver com os contratos da OAS. Bom, se nada tinha a ver com os contratos da OAS, então você tinha uma denúncia inepta, a condenação não tinha nenhuma relação com a denúncia.
E, sim, eu me transformei, talvez na grande imprensa se não o único, um dos poucos, talvez quatro, três, que era um críticos da Lava Jato. Tanto é assim que em diálogos de 2016, o Deltan Dallagnol, numa conversa com o Moro, me ataca. Me chamando de jurista, com aspas, atacando a mim e ao Lenio Streck, esse sim um jurista sem aspas.
Então, esse conjunto de coisas me indicou que a Lava Jato não servia como parâmetro de Justiça. E os procuradores passaram a falar claramente uma linguagem contra a política, de destruição da política. E isso eu antevia, não daria em boa coisa. E eu acertei.
Como justifica o fato de a sentença do tríplex ter sido confirmada por outras instâncias?
REINALDO AZEVEDO O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre, na segunda instância, em nenhum momento se ocupou da higidez das provas. Eu li as decisões. O que havia ali era uma condenação de um momento da política brasileira, que precisava ser superado. Então, o que a gente tem é proselitismo de Sergio Moro, vazado em péssimo português, proselitismo dos senhores do TRF-4, também em péssimo português, porque ali há o pecado da empolação. E o Superior Tribunal de Justiça, como é de sua natureza, nem sequer entrou no mérito. O STJ não entra no mérito. O STJ viu se havia falhas formais. Disse: “não, falha formal não há e não é nosso papel verificar as provas”. E a rigor não é mesmo, é ver se tem falha processual.
E, lembre-se, depois, quando o Supremo anula os processos, anula por falha processual, porque se chega à conclusão de que Sergio Moro não era o juiz das causas. Ele era um juiz, portanto, incompetente. A competência não era dele. Isso foi o que o pleno julgou, a incompetência dele. E, no caso da Segunda Turma do Supremo em particular, foi a suspeição [de Sergio Moro, considerado parcial ao julgar Lula].
Um juiz condenou em primeira instância sem provas, fazendo discurso político. O TRF-4 simplesmente ignorou a ausência de provas e reiterou o discurso político. E o STJ afirmou: “não é nosso papel discutir as provas”. E a rigor não é. E finalmente coube ao STF, tardiamente, reconhecer então a incompetência do juiz.
O Supremo negou habeas corpus a Lula numa votação apertada no início de 2018 e o ex-presidente foi preso. Nas vésperas do julgamento, o então comandante do Exército publicou tuítes para pressionar o tribunal. Na sua avaliação, a mais alta corte do país agiu influenciada por fatores políticos externos?
REINALDO AZEVEDO O habeas corpus foi negado ao Lula a meu ver de maneira absurda. Nem acho que aqueles tuítes do general Villas Bôas interferiram no julgamento. Eu que eu é que cinco dos seis votos contra o habeas corpus foram de ministros indicados por governos petistas. Só um não era, Alexandre Moraes [indicado por Michel Temer]. E dos cinco que foram favoráveis ao habeas corpus, três não eram indicações do PT. O Supremo agia com independência em relação ao governo federal.
Não tenho como entrar no fundo das consciências dos ministros, mas acho que ali houve decisões tomadas porque havia um alinhamento automático de alguns com a Lava Jato. Edson Fachin, Luiz Roberto Barroso, Luiz Fux e a própria Carmen Lúcia [à época presidente do tribunal]. Havia um alinhamento automático. Depois, acho que perceberam erros cometidos.
Os escândalos não cessaram com a queda de Dilma em 2016. O Ministério Público fechou acordo com os irmãos Batista, da JBS, num cerco que tinha como alvo o novo presidente Michel Temer e o então senador Aécio Neves. Na sua avaliação, o Ministério Público, na figura de Rodrigo Janot, e a Justiça também avançaram o sinal contra eles?
REINALDO AZEVEDO Ilegalidades pavorosas foram cometidas também em outros casos envolvendo o ex-presidente Michel Temer, o próprio Aécio Neves, é que ali aquele diálogo, com um pedido de dinheiro [do tucano a Joesley] é um troço horrível de se ouvir. Mas, objetivamente, o ato de corrupção ali está onde? Vejam, isso não tá claro, muito menos ainda no caso do Temer.
Mas, claro, envolve grandes empresas, envolve políticos ali se relacionando com esses empresários. Fala-se de dinheiro nas transações. Mas qual é a imputação objetiva? No caso do diálogo do presidente Michel Temer com o empresário, aquilo que se diz que há no diálogo não há, não tá lá. No caso do Aécio, é visível que há ali uma armadilha, o que o direito brasileiro nem abriga, diga-se de passagem, essas possibilidades.
Havia determinação do Rodrigo Janot de derrubar também o Michel Temer, atingirem também o PSDB. Aliás, muitos idiotas dizem: “ah, o Reinaldo passou a criticar a Lava Jato quando a Lava Jato chega aos tucanos”. Não, é mentira. Basta ver os textos que eu escrevi.
O Estado não pode cometer crime para combater crime, porque senão quem passa a combater o crime também é um criminoso. Isso é inaceitável e isso infelizmente aconteceu. Também o presidente Michel foi alvo de ilegalidades escancaradas, o que depois acabou sendo reconhecido.
Agora, tudo isso tem um custo imenso, o custo se chama demonização da política, e tudo isso preparou o terreno para ascensão de Jair Bolsonaro. E, então, ficamos conhecendo um Estado verdadeiramente criminoso, aí em sentido amplo ou em sentidos múltiplos.
Como avalia o comportamento da imprensa tradicional em relação à Lava Jato?
REINALDO AZEVEDO A relação da imprensa com a Lava Jato foi a pior possível, detestável. Foi ruim porque serviu de porta-voz da Lava Jato, ignorou o direito de defesa, achando que resolvia tudo ali dando um parágrafozinho de outro lado: “ah, fulano disse que é mentira”. Virou canal de transmissão de vazamentos ilegais. Todo jornalista dito investigativo tinha que ter um procurador para chamar de seu, um delegado para chamar de seu. A imprensa ignorou as muitas vezes em que a lei era violada, especialmente no caso de prisões preventivas.
Quando veio a Vaza Jato [vazamento de mensagens de Telegram que apontavam um conluio entre procuradores e Sergio Moro], muitos veículos de comunicação participaram do consórcio [para a publicação das reportagens]. Mas um setor importante na imprensa brasileira se negou a dar notícia a respeito, por exemplo, o Grupo Globo. E a justificativa foi que a captação daquelas informações era ilegal. Sem dúvida. Mas cabe a pergunta: a cada vez que se vazou um conteúdo de investigação, e de investigação sigilosa, esse vazamento também não era ilegal? Era ilegal.
E a Vaza Jato trouxe a natureza da Lava Jato. Então, essa colaboração ilegal com a polícia americana, com departamento de Justiça dos Estados Unidos, isso está ali nas conversas. Isso está evidenciado.
O Supremo abriu de ofício o inquérito das fakes em 2019, a partir do qual tenta impor freios ao radicalismo bolsonarista. Essa atitude – assim como a atuação de Alexandre de Moraes nesse e em outros inquéritos – está correta diante das ameaças recorrentes do presidente e seus apoiadores à democracia ou estamos diante de um avanço do tribunal para além de suas funções? Como avalia essa atitude do Supremo?
REINALDO AZEVEDO Dias Tóffoli [então presidente do Supremo] abriu o inquérito das fake news com base no artigo 43 do regimento interno do Supremo, que é bom lembrar, jurisprudência do tribunal, o regimento interno foi recepcionado pela Constituição como lei, com a força de lei. “Ah, mas o regimento fala em crimes cometidos no âmbito do Supremo”. Bom, em tempos de internet, o âmbito do Supremo é o Brasil inteiro. Não fosse assim, os julgamentos virtuais não poderiam acontecer, os ministros estão julgando de suas casas. Então, portanto, é claro que é preciso ampliar esse conceito do que seja âmbito do Supremo.
O inquérito é absolutamente legal em essência. De qualquer modo, esse inquérito foi referendado pelo próprio tribunal por 10 votos a 1. Dua legalidade é incontestável. É bom lembrar que Dias Tóffoli abre esse inquérito antes que se conclua o terceiro mês do governo Bolsonaro. Portanto, já estava evidente que havia uma máquina de difamação do Tribunal, e noto que foi aberto por um ministro que não era hostil a Jair Bolsonaro e que não é hostil a Jair Bolsonaro. Dos ministros do Supremo, era ele quem mantinha uma conversa mais amistosa com o Presidente da República, até porque à época ele próprio é presidente do Poder.
O regimento dá ao presidente do Supremo, neste caso, a prerrogativa de indicar o relator, e ele indicou Alexandre de Moraes. E esses inquéritos estão em curso. Esse inquérito está em curso e, na verdade, há outros depois. Mas esse é, digamos assim, o inquérito que gera mais controvérsia.
É para valer? Bom, um inquérito que esteja ali no Supremo será sempre para valer. Se ele vai resultar ou não em ação penal efetiva, a ver, porque aí depende do Ministério Público Federal.
Na sua avaliação a ideia da Nova República continua valendo, ela se trincou ou ela se desmanchou completamente?
REINALDO AZEVEDO Olha, eu sou um conservador. De iniquidades? Não, de instituições democráticas. Então, excesso de mudança, o mudancismo, não é exatamente uma coisa boa. Muitas vezes, é um mal que desestabiliza as sociedades. Isso não é imobilismo, isso quer dizer que as instituições são a moldura e, dentro da moldura, a gente briga, discute, se opõe, mas respeita as instituições.
O que está em curso hoje em todas as democracias praticamente do mundo é a ascensão da extrema direita populista, que quer romper o padrão da democracia. O que está nos livros que têm pensado essa questão, “O povo contra a democracia”, do Yascha Mounk, “Como as democracias morrem”, do Levitsky e do Ziblatt, até um livro escrito pela Madeleine Albright, ex-secretária de Estado, que se chama “Fascismo, um alerta”, sobre o que se passa também nos Estados Unidos.
Você tem hoje grupos organizados para solapar a democracia, que permite a sua existência. Eu não acho que isso deva ser tolerado. Eu tenho em mente o livro do Poper, “A sociedade aberta e seus inimigos”, ainda que ele falasse ali, me parece que o alvo fosse à esquerda, mas há um questionamento que eu considero fundamental: as democracias devem abrigar as práticas claras que a solapam? Vamos entender o que solapar a democracia. Então, no Brasil, você tem uma lei antidrogas, que pune o tráfico e coíbe o consumo. Tá, eu quero mudar essa lei. Veja, mudar a lei antidrogas não é solapar a democracia, é fazer uma proposta e ver se a sociedade topa ou não topa.
As pessoas, em vez de fazer propostas para mudar a Constituição, para mudar leis, elas resolvem por exemplo se armar e tentar tomar coisa no grito, eu acho que isso não pode ser tolerado, entende? Ou, então, grupos que se organizam para atacar direitos fundamentais consolidados, para discriminar, para impor a desigualdade perante a lei, no que considera direitos fundamentais.
Então, não vejo crise disso ou daquilo. Eu vejo, sim, algumas pessoas flertando com a ideia de que: “ah, isso é próprio da democracia, falar não é fazer”. Não, às vezes falar é fazer.
Se aquele que fala estimula o crime, é preciso que se considere o seu papel também. Se aquele que fala desestabiliza a democracia, ou incentiva que se desestabilize a democracia, é preciso que se considere esse papel. A democracia tem de saber se defender.
Fonte: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2022/12/11/%E2%80%98Em-que-p%C3%A1ginas-da-senten%C3%A7a-est%C3%A3o-as-provas-contra-o-Lula%E2%80%99?utm_medium=Email&utm_campaign=NLDurmaComEssa&utm_source=nexoassinantes
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