Joseph E. Stiglitz*
A economia tem sido chamada a ciência lúgubre e 2023 justificará essa alcunha. Estamos à mercê de dois cataclismos que estão simplesmente fora do nosso controlo. A primeira é a pandemia de covid-19, que continua a ameaçar-nos com variantes novas, mais mortais, contagiosas ou resistentes a vacinas. A pandemia foi gerida especialmente mal pela China, principalmente devido ao fracasso em inocular os seus cidadãos com vacinas de mRNA mais eficazes (de fabrico ocidental).
O segundo cataclismo é a guerra de agressão da Rússia na Ucrânia. O conflito não mostra fim à vista e pode aumentar ou produzir efeitos de propagação ainda maiores. De qualquer forma, mais perturbações nos preços da energia e dos alimentos estão quase garantidas. E, como se esses problemas não fossem suficientemente irritantes, há muitos motivos para temer que a resposta dos decisores políticos piore ainda mais uma situação já de si má.
Mais importante ainda, a Reserva Federal dos EUA pode aumentar demasiado as taxas de juro e demasiadamente rápido. A inflação de hoje é, em grande parte, impulsionada pela escassez de oferta que, em parte, já está em processo de resolução. Portanto, aumentar as taxas de juro pode ser contraproducente. Não produzirá mais alimentos, petróleo ou gás, mas dificultará a mobilização de investimentos que ajudariam a aliviar a escassez da oferta.
A restrição monetária também pode levar a uma desaceleração global. Na verdade, esse resultado é altamente antecipado e alguns comentadores, tendo-se convencido de que o combate à inflação requer dor económica, têm efetivamente aplaudido a recessão. Quanto mais rápida e profunda, melhor, argumentam. Parecem não ter considerado que a cura pode ser pior do que a doença.
Os tremores globais do aperto da Reserva Federal já poderão ser sentidos no inverno. Os Estados Unidos estão envolvidos numa política protecionista do género "salve-se quem puder" do século XXI. Enquanto um dólar mais forte modera a inflação nos EUA, fá-lo enfraquecendo outras moedas e aumentando a inflação noutros lugares. Para mitigar esses efeitos cambiais, mesmo os países com economias fracas estão a ser forçados a aumentar as taxas de juro, o que enfraquece ainda mais as suas economias. Taxas de juro mais altas, moedas desvalorizadas e uma desaceleração global já levaram dezenas de países à beira da falência.
"Os Estados Unidos estão envolvidos numa política protecionista do género "salve-se quem puder" do século XXI."
Taxas de juro e preços de energia mais altos também levarão muitas empresas à falência. Já houve alguns exemplos dramáticos disso, como no caso da agora nacionalizada empresa de serviços públicos alemã Uniper. Mesmo que as empresas não procurem proteção contra a falência, tanto as empresas como as famílias sentirão o stresse de condições financeiras e de crédito mais rígidas. Não é surpreendente que 14 anos de taxas de juros ultrabaixas tenham deixado muitos países, empresas e famílias sobre-endividadas.
As mudanças maciças nas taxas de juro e nas taxas de câmbio do ano passado implicam múltiplos riscos ocultos, como demonstrado pelo quase colapso dos fundos de pensão britânicos no final de setembro e início de outubro. Desencontros de maturidades e taxas de câmbio são uma marca registada de economias pouco reguladas e tornaram-se ainda mais prevalentes com o crescimento de derivados não-transparentes.
Essas dificuldades económicas recairão, é claro, mais fortemente sobre os países mais vulneráveis, fornecendo um terreno ainda mais fértil para os demagogos populistas semearem as sementes do ressentimento e do descontentamento. Houve um suspiro global de alívio quando Luiz Inácio Lula da Silva derrotou Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais do Brasil, mas não esqueçamos que Bolsonaro obteve quase 50% dos votos e ainda controla o Congresso brasileiro.
Atualmente, em todas as dimensões, incluindo a economia, a maior ameaça ao bem-estar é política. Mais da metade da população mundial vive sob regimes autoritários. Mesmo nos EUA, um dos dois principais partidos tornou-se um culto à personalidade que rejeita cada vez mais a democracia e continua a mentir sobre o resultado das eleições de 2020. O seu modus operandi é atacar a imprensa, a ciência e as instituições de Ensino Superior, enquanto injeta o máximo possível de desinformação na sociedade.
O objetivo, aparentemente, é reverter muito do progresso dos últimos 250 anos. Foi-se o otimismo que reinava no fim da Guerra Fria, quando Francis Fukuyama podia anunciar "o fim da história", com o que queria dizer o desaparecimento de qualquer desafiante sério ao modelo democrático liberal.
Certamente, ainda existe uma agenda positiva que pode evitar uma queda no atavismo e no desespero, mas, em muitos países, a polarização política e o impasse colocaram essa agenda fora de alcance. Com sistemas políticos que funcionassem melhor, poderíamos ter agido muito mais rapidamente para aumentar a produção e a oferta, mitigando as pressões inflacionárias que as nossas economias agora enfrentam. Depois de meio século a dizer aos agricultores para não produzirem o máximo que pudessem, tanto a Europa como os Estados Unidos lhes poderiam ter dito para produzirem mais. Os EUA poderiam ter provido creches para que mais mulheres pudessem entrar na força de trabalho, aliviando a alegada escassez de mão-de-obra, e a Europa poderia ter agido mais rapidamente para reformar os seus mercados de energia e evitar um aumento nos preços da eletricidade.
Países em todo o mundo poderiam ter cobrado impostos sobre lucros inesperados de formas que realmente encorajassem o investimento e moderassem os preços, usando os recursos para proteger os vulneráveis e fazer investimentos públicos na resiliência económica. Como comunidade internacional, poderíamos ter adotado a renúncia à propriedade intelectual da covid-19, reduzindo assim a magnitude do apartheid da vacina e o ressentimento que ele alimenta, além de mitigar o risco de novas mutações perigosas.
No geral, um otimista diria que o nosso copo está cerca de um oitavo cheio. Alguns poucos países fizeram algum progresso nessa agenda, e devemos estar gratos por isso, mas quase 80 anos depois de Friedrich von Hayek ter escrito O Caminho da Servidão, ainda vivemos com o legado das políticas extremistas que ele e Milton Friedman popularizaram. Essas ideias puseram-nos num caminho verdadeiramente perigoso: o caminho para uma versão do fascismo do século XXI.
*Joseph E. Stiglitz,
Prémio Nobel da Economia, é professor universitário na Universidade de
Columbia e membro da Comissão Independente para a Reforma da Tributação
Internacional das Empresas.
© Project Syndicate, 2022.
Fonte: https://www.dn.pt/opiniao/o-caminho-para-o-fascismo-15564221.html
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