Juremir Machado da Silva*
Ele chegou como quem chega do nada e tudo tumultuou. Qualquer um sabia que ele não estava preparado para ser o que não era, não podia ser, não seria: um estadista. Chegou como quem desafia o bom senso, a razão, a sabedoria, tudo enfim e ganhou. Quando o país acordou, já vivia o pesadelo, que duraria quatro anos. Parecia que a nação se punia por alguma coisa ou debochava de si mesma, fustigando o ruim com o pior. Houve quem acreditasse que se tratava apenas de uma piada de mau gosto, mas era o gosto pelo mal que se convertia em opção de governo. Como que para levar o absurdo às últimas consequências, veio a pandemia, trazendo consigo a necessidade de um líder de primeira linha, um Churchill, alguém assim, extraordinário.
Era só o ordinário que estava disponível. Então ele se permitiu ser muito pior do que era esperado, multiplicando o negativo com a positividade dos que não têm empatia nem arrependimentos: negacionista, mentiroso, cheio de ardis, contra a ciência, a sensatez, a realidade. Inventou um mundo paralelo e, para não se enganar, acreditou nele de cara. Essa seria sempre a sua característica mais marcante, a capacidade de mentir para si mesmo, de racionalizar e apaixonar-se por suas racionalizações mais baratas. A pobreza de vocabulário, o imaginário exíguo, a imaginação pobre, o horizonte limitado, o apetite de matilha e o medo de ser descoberto, embora desde sempre estivesse nu em público, fez dele um desesperado, atirando para tentar alvejar antes de ser atingido e expelido pela arma mortal, o voto.
Só não foi despachado por um impeachment por ter tido a esperteza – inteligência é uma palavra que não combina com ele – de ceder o governo ao grupo mais vil do Congresso Nacional. Entregava os dedos da nação para não perder os anéis da sua cobiça e da sua ilusão. Subira a rampa do poder carregado pela covardia de uns, a malandragem de outros, o cinismo das elites, a rapacidade do setor financeiro, a crueldade da turma dos camarotes, a estupidez de alguns setores, o cálculo malicioso dos que só contam perdas em dinheiro e a cegueira dos oportunistas inoportunos, chacais que pensam enxergar longe e nunca pagam por suas apostas furadas e malditas.
Chegou como quem chega do nada e ao nada seria devolvido, como um parêntese na manhã de sol, um pesadelo vivido numa tarde de tempestade, uma noite de insônia na solidão das esperanças. Deixou um rastro de tristeza, estragos que exigirão anos de labuta para que suas marcas desapareçam, gente pelo caminho, vítimas do atraso, da lentidão, da burrice, da sua ideologia, do fanatismo, das suas fantasias e obsessões. Era só um caso clínico. Virou um case do improvável convertido em fato consumado. E assim ele marcou uma época com sua violência cotidiana, com seu amor pelas armas, suas simplificações, suas tiradas machistas, misóginas, racistas, brutais.
Como, felizmente, não há mal que dure sempre, chegou o seu dia. Ele só podia odiar as urnas eletrônicas, pois com elas chegaria o seu fim.
*Jornalista. Escritor. Prof. Universitário.
Do Blog: Prêmio recebido por Juremir Machado da Silva. Recebi ontem, no auditório Dante Barone, da Assembleia Legislativa do RS, o Prêmio ARI (Associação Riograndense de Imprensa) pela crônica “Como quem chega do nada”, publicada aqui neste espaço (leia aqui).
Fonte: https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/colunistas-matinal/juremir-machado/juremir-como-quem-chega-do-nada/
Nenhum comentário:
Postar um comentário