Por Helena Celestino — para o Valor, do Rio
Gil acredita que Lula está indo bem na transição: “Já é um homem velho e, como diz Caetano, homem velho é o rei dos animais” — Foto: Luciana Whitaker/Valor
Em meio às celebrações de seus 80 anos, o ex-ministro da Cultura está animado com novo governo
15/12/2022 05h04 Atualizado há 12 horas
Gilberto Gil acaba de realizar um sonho de infância. Saiu do Brasil, viu dois jogos da seleção e um da Argentina. Dois dias depois, estava se apresentando em Paris, com uma orquestra “au grand complet”: 120 músicos, 80 cantores e cantoras, percursionistas vindos da Bahia, cinco solistas brasileiros e o filho Bem. No palco da Radio France Internacional, ele mostrava pela primeira vez “Amor Azul”, uma ópera em dois atos, que assina com o maestro Aldo Grizzi, saudada pela mídia francesa como uma estreia mundial.
“Foi a primeira vez que toco com uma grande filarmônica, desde menino penso nisso”, conta ele, em entrevista na Academia Brasileira de Letras, enquanto os outros imortais tomam chá, depois da reunião semanal.
Cheio de energia, com os olhos postos no horizonte, ele ri das transgressões do passado e nada mostra que há quatros anos teve problemas de saúde e ainda estava recuperando o gosto de viver. Ou que uma semana antes havia sido insultado por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro no Catar. “São nazistas.”
Margareth Menezes deve “dar valor a uma cultura que é ampla, forte, extensa, variada, com origens muito amplas e complexas”
Gil está no seu apogeu. Há documentários, shows e livros programados para homenageá-lo e à sua família, comemorar os 50 anos do “Expresso 2222”, contar os bastidores do “Panis et Circenses”, seu segundo disco já ligado à Tropicália. A eleição para a Academia Brasileira de Letras há um ano e um livro recém-lançado com 600 letras compostas por ele — 100 em cada década — são também um retrato do pensamento diverso do poeta e músico aos 80 anos. “Diante do acolhimento que meu povo me proporcionou, dou o gracias a la vida.”
Está animado com o governo Lula. Ministro da Cultura do primeiro governo Lula, ele foi citado como um modelo a ser seguido por Margareth Menezes, recém-anunciada para recriar o Ministério da Cultura no Lula 3. Ela e Gil são parceiros em gravações e, para ele, a primeira ação a ser feita é “restaurar o prestígio da vida cultural, na sua variedade, sua complexidade, nas suas diferentes fontes de criação”.
Que recado mandaria a Lula? Depois de se concentrar um pouquinho, não tem dúvidas do que dizer ao ex e quase novo presidente: “Muito amor, muito amor na maneira de considerar tudo ao seu redor”, diz, depois de se concentrar um pouquinho.
E também já tem opinião sobre as ações de Lula nessa fase de transição que está para acabar. “Acho que está indo bem sim. Já é um homem velho e, como diz Caetano, homem velho é o rei dos animais...”
Valor: Gil, o sr. está vivendo um momento de plenitude. Como se sente diante do reconhecimento unânime que vem recebendo como artista e pensador da cultura?
Gilberto Gil: São variantes de sentimentos. A primeira é do menino que se defronta com a vida, longamente vivida, e com realização também, em função de um sonho de infância que era querer ser músico, ter amor profundo pela música e me dedicado a contemplar este amor. A outra variante é o sentido mesmo da vida. A vida tem tido para mim um sentido que está de acordo com aquilo para o que eu fui preparado. A variante de um pertencimento a uma cultura, uma sociedade, a um povo, conjunto humano interessantíssimo que é o brasileiro, um conjunto importante nesse quadrante da civilização ocidental, um esboço importante de civilização que é o Brasil.
Valor: Mas tem um reconhecimento também, poucas vezes alcançado.
Gil: O reconhecimento é resultante do fazer durante esses anos. São 60 anos de trabalho, média de 100 músicas a cada década, o sentimento dominante de tudo isso é a gratidão à vida. Diante do acolhimento que meu povo me proporcionou. O meu sentimento é de gratidão. Gracias a la vida.
Valor: As pessoas o veem como um grande músico e também um pensador da cultura e do país. Dia 1 de janeiro, ano novo e presidente novo. Que expectativas tem?
Gil: Vai dar para continuar a ser feliz, uma das características do Brasil é esta: a busca permanente do encontro com a alegria. A alegria de viver, de realizar, com a alegria de sonhar uma inserção digna no conjunto da humanidade. Não me parece que tenha sido drasticamente interrompida. A história do Brasil, como a de tantos outros povos e nações, é uma história de altos e baixos, contornos, zigue-zagues, superação de obstáculos e ao mesmo tempo tombos e quedas. Mas a perspectiva histórica do Brasil tem sido marcada por isto, por um gosto de estar no mundo como nação, como povo, como herdeira de processos civilizatórios importantes que vêm daqui mesmo, dos povos originários, dos povos que propiciaram a existência dessa nação, os colonizadores europeus, os portugueses. O Brasil é tudo isso, é uma resultante interessante de muitas coisas que foram convergindo para cá e garantindo essa alegria, essa capacidade plena de gostar de viver. Acho que é tudo isso que prevalece, que permanece e que conta. Isso que dá indicação de horizonte e do futuro.
Valor: No discurso de posse da ABL, o sr. falou em retomar um discurso civilizatório, e agora os relatórios das equipes de transição mostram uma situação financeira precária em vários ministérios. Como reconstruir o país?
Gil: Crise é oportunidade, no modo de pensar da velha civilização oriental. Estamos diante de uma oportunidade para propor tudo de novo. A Refazenda tá aí de novo. Não tem outra saída não: tem de recuperar sim, as responsabilidades brasileiras estão para além do seu próprio território, do conjunto humano, muito ligado aos destinos futuros da humanidade. O Brasil tem uma importância enorme no mundo. Provavelmente o país não será abandonado.
“Acho mesquinho a gente colocar tudo na perspectiva da nossa própria geração, do nosso próprio tempo. Já foi melhor e pior. E assim será de novo”
Valor: Margareth Menezes foi escolhida tendo o sr. como modelo de ministro da Cultura bem-sucedido. Quais são os desafios que ela vai enfrentar?
Gil: A primeira coisa é restaurar o prestígio da vida cultural, da sua variedade, sua complexidade, nas suas diferentes fontes de criação. Dar valor a uma cultura que é ampla, forte, extensa, variada, com origens muito amplas e complexas. Acho que é institucionalizar de novo a cultura do país num patamar de seriedade, de consideração e de respeito, compreensão sobre a diversidade cultural. Prestigiar os fundamentos estabelecidos pelas grandes instituições internacionais em relação à variedade das culturas, à importância dessa variedade, à importância da diversidade cultural. Criar um ministério que seja digno do nome, do tamanho da instituição governamental. Acho que a primeira coisa é esta, trabalhar, deixar que se trabalhe com respeito e consideração pela capacidade de cada um e de todos. Acho que é isso. Restaurar a grandeza da instituição cultural, no seu sentido mais amplo. Esse é o primeiro papel, a primeira função, tarefa de uma entidade cultural digna do nome de um ministério.
Valor: O sr. sempre diz que cultura é feijão com arroz, o básico para todo mundo. Da sua época como ministro da Cultura, o que mais lhe marcou?
Gil: Eu fui ministro quase seis anos, numa época de emergência do digital na cultura. Fizemos os pontos de cultura em territórios indígenas, nos territórios dos quilombolas, nas periferias das grandes cidades, nas pequenas comunidades no interior do Brasil. Foram 3 mil e tantos pontos de cultura implantados naquele período, com ênfase na digitalização dos meios de comunicação e na interatividade, de indivíduos, cidadãos, grupos humanos.
Enfim, foi um momento importante [...]. Pode ser visto como a história de um grupo governante fazendo jus ao espírito do seu tempo, querendo corresponder às exigências da atualidade nos vários sentidos, reconhecendo o advento de um novo momento tecnológico, uma nova realidade técnica, trazendo avanços civilizatórios. Era um momento em que essas coisas tinham significado. Depois veio um momento em que saíram da pauta, deixaram de ter importância para um sistema, o conjunto governativo do país.
Mas o tempo passa e volta, a seta do tempo caminha para a frente, as conquistas civilizatórias se impõem, cada vez mais, não acredito que seja possível uma regressão na intensidade que esses governantes atuais querem não só no Brasil, mas em vários lugares nas Américas, na Europa, na Ásia, querem proceder um retrocesso na crença de que retroceder é avançar, essa ilusão, esse sentimento ilusório que andar para trás é que vai nos levar pra frente. Eu não acredito nisso não.
Valor: Como compara os dois períodos, na sua época e agora?
Gil: Não dá para comparar os dois tempos, no primeiro ciclo do primeiro governo Lula fizemos tudo que era possível. Na maior intensidade possível. As pessoas estavam mais abertas na época, agora estão diante de desafios enormes, a complexidade das ambições humanas não tinha chegado ao nível de adensamento e intensidade a que chegou agora. Agora a humanidade está diante de desafios imensos, diante de institucionalidades diversas das questões políticas, jogos ideológicos, tudo isso ganhou uma intensidade nos últimos anos que não tinha antes. Agora é muito mais complexo tudo que vem se passando no Brasil e nas grandes democracias do mundo, EUA, França. A Alemanha, ainda às voltas com uma restauração depois do nazismo e já tendo de lidar de novo com o refluxo daquilo tudo.
É um período muito intenso da humanidade que tem de ser tratado com muita dedicação, muito carinho, muito espírito de sacrifício. É como criar filhos, como ser pai e mãe, como cuidar do futuro daqueles que representam o futuro hoje, os meninos e meninas que estão chegando agora, temos de ter esse espírito de abnegação.
Valor: Nessa época como ministro o sr. botou a ONU para sambar, tocando e cantando, com Kofi Annan — secretário-geral da ONU — na percussão. Todos falavam da magia daquele momento. Como avalia aquele tempo da política externa da época e o que espera do governo Lula nessa área?
Gil: Pois é, o nosso africano estava lá, defendendo as nossas raízes, as nossas origens. Foi um momento de diplomacia efetiva acontecendo ali de maneira intensa, plena, de concertação no sentido pleno da palavra. Depois o país caiu, mas é o movimento geral, de altos e baixos, aceleração e frenagem. Acho mesquinho a gente colocar tudo na perspectiva da nossa própria geração, do nosso próprio tempo [...]. Me recuso um pouco a dizer que já merecíamos ser mais felizes. A condição humana é uma condição trágica nesse sentido, o alcance do que se tenta não é o que se almejava, não é aquele que a promessa de vida colocou pra nós, às vezes as coisas são menores. Assim é a natureza, estamos embutidos nesse jogo permanente, fazer e desfazer, construção e destruição. É da vida humana dentro da condição da natureza. Acho mesquinho que a totalidade do bem esteja contida no seu tempo de vida como se os tempos na frente ou anteriores não contassem. E contam. Já foi melhor e pior. E assim será de novo.
Valor: Recentemente o sr. passou por duas situações extremas. Uma na semana da eleição, quando uma passeata inteira parou em frente ao seu apartamento e ficou gritando “Gil eu te amo”. A outra, oposta, foi no Catar, quando o sr. foi agredido por pessoas cheias de ódio.
Gil: É isso, eles representam uma impertinência, uma insistência com relação à negação do que é a melhor forma de ser e estar para nós, uma insistência da negatividade, do ódio, da agressividade gratuita, essas coisas que têm classificado um setor relevante da sociedade nos últimos tempos. Não é só Brasil, é uma parte importante da humanidade que está voltada para essa parte de sistemas políticos governamentais duros, rígidos, reeditando o que já tivemos no nazismo, no fascismo, em outros momentos históricos. Ali eram representantes disso, da intolerância, da incapacidade de tolerar os opostos, de conviver com os opostos, o que extrapola e vai além de si mesmo, o outro, o desrespeito pela alteridade, pelo fato de sermos múltiplos, muitos, vários e diferentes. Tem gente que não tolera a diferença, não suporta e não admite a diferença. Aqueles rapazes ali representavam isso, me xingando, não me tolerando, querendo a extinção do outro. É o nazismo.
Valor: Revi hoje os “Doces Bárbaros”, o documentário do Jamico sobre o grupo (o sr., Caetano, Bethânia e Gal). Lembra o tempo em que a transgressão e a afirmação da liberdade pessoal e musical era muito presente na vida dos jovens. Ao mesmo tempo, aqui na Academia, o sr. fez referência a esse tempo no seu discurso de posse, lembrando a capa do seu segundo disco, em que usava fardão e pince-nez, de uma forma irônica. Tem saudade daquele tempo? Sentia-se mais livre?
Gil: Estava seguindo um pouco o modo habitual de colocar a nossa juventude em contraposição ao peso dos velhos tempos das tradições, ao peso das instituições, vendo a Academia como uma instituição tradicionalista ou tradicionalizante, diante da qual deveríamos opor nossa juventude aberta, solta, transgressora. Era feliz porque era jovem, tinha 20 e poucos anos, comprometido com valores transgressores. Mais feliz do que em outras épocas não necessariamente, era a felicidade daqueles momentos, daquela condição. Hoje sou um homem de 80 anos de idade. É um outro momento de vida, é uma outra forma de refletir, de tentar compreender a existência.
Hoje tenho respeito pelo passado como tenho pela memória do meu pai ou da minha mãe. Tudo o que eu fiz para contrariá-los [gargalhada], hoje eu faço para estar de acordo com a expectativas que eles tinham em relação a mim... Hoje eu digo assim: vim aqui para a Academia, pensando que meu pai estaria de acordo com esse gesto, minha mãe também. Naquele momento, era uma rebeldia, de acordo com meu tempo de vida, com a minha juventude, com as expectativas de transformações que a juventude em cada momento da história sempre traz, algumas gerações mais, outras menos. A minha teve um papel importante no sentido de afirmar volúpia, valentia, compromisso transformador, tudo isso. Agora tem a velhice. É outro momento da vida...
Valor: Para terminar, o que o sr. diria para o Lula nesse início de governo?
Gil: Lula? [Concentra-se] Tenha muito amor, muito amor na maneira de considerar tudo ao seu redor, todos os seus compromissos como governante, mas acima de tudo como ser humano, colocar tudo isso è frente de tudo e todos os processos que vão ser exigidos que você controle: processo político, processo econômico, processo social. Que você coloque o amor à frente de tudo isso, ao seu redor.
Valor: Acha que Lula está indo bem?
Gil: Acho que sim. É um homem velho, o homem velho é o rei dos animais, como diz Caetano.
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