segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Que um sacerdote não pode ser mulher

Miguel Oliveira Panão*

 

 Foto de Nadra Nittle em racked.com

Na Igreja Católica co-existem dois perfis teológicos. Um de natureza masculina: o perfil Petrino. E outro de natureza feminina: o perfil Mariano. A diferença entre estes dois perfis fez parte da resposta que o Papa Francisco deu numa entrevista; (sem qualquer valor magisterial) para a revista jesuíta americana America Magazine. Ambos os perfis são princípios teológicos ligados ao ministério no caso do perfil Petrino, e à Igreja, esposa e mãe, no caso do perfil Mariano. Segundo o Papa, o perfil Mariano está muito ligado a um caminho eclesial pouco explorado e tem sido muito subdesenvolvido na formação catequética do povo cristão. Porém, talvez haja nesta visão teológica inspirada no teólogo Hans Urs von Balthasar, uma perspectiva ainda demasiado hierárquica.

O Papa não vê o acesso das mulheres ao ministério do sacerdócio como possível por isso não estar contemplado no perfil Petrino. Porém, dado que a tecnologia viabiliza no século XXI a mudança de sexo das pessoas, por analogia, será poderia a teologia evoluir no sentido de dar corpo à possibilidade das mulheres terem lugar no perfil Petrino? Por outro lado, o subdesenvolvimento do perfil Mariano alertado pelo Papa, não poderia ser superado com homens a serem, também, protagonistas no perfil Mariano? Reconheço que os homens terão muita dificuldade em desenvolver o perfil Mariano na Igreja do mesmo modo que as mulheres o fazem. Os homens não têm o mesmo sentido da maternidade e do acolhimento que as mulheres têm por estas serem mais sensíveis a esses aspectos. Só as mulheres poderão abrir a via eclesial do perfil Mariano no sentido mais pleno, assim como os homens o têm feito para o perfil Petrino. Porém, existem grupos que continuam a insistir na abertura da Igreja à possibilidade de ordenação das mulheres, mas o motivo por detrás dessa ideia parece-me ser uma visão hierárquica da vida cristã. Sacerdotes em cima e o povo em baixo. Um sacerdote não pode ser mulher, mas até que as mulheres possam ser “sacerdotes”, a sociedade secular interpreta esta vocação da vida cristã como batalha para uma igualdade de género. Porém, reafirmo que tudo parece dever-se a uma visão marcadamente hierárquica. Seria preciso mudar de visão e uma via transformativa, em linha com o caminho sinodal, poderia ser a conversão de uma visão hierárquica numa visão ecológica.

A ecologia é a ciência das relações por salientar a dimensão horizontal (mutualismo, interdependência, inter-relações) do relacionamento entre espécies e entre elementos do mundo natural. A raiz profunda de uma visão mais ecológica que antropológica da vida cristã, salientaria como somos todos criaturas do mesmo Criador, e no caso da espécie humana, todos filhos do mesmo Pai e irmãos uns dos outros. Numa família, umas vezes sou pai, outras vezes sou mãe quando a mãe não pode estar presente. Como homem, não tenho muito jeito para ser mãe, mas quando é necessário porque a minha esposa está fora em trabalho, faço esse papel o melhor que posso, embora respire de alívio quando deixo de o fazer. A diferença entre paternidade e maternidade não é uma questão hierárquica no século XXI, mas uma questão que sublinha a riqueza da diferença de papéis. A visão ecológica ajuda a compreender que tudo tende a uma fraternidade universal no mundo biológico, por oposição a uma visão androcêntrica onde a figura masculina do homem (que pretende representar toda a humanidade) domina sobre a figura feminina da natureza. Por isso, questiono se o desejo de que as mulheres possam ser sacerdotes não esteja, sem que as pessoas se dêem conta, a ser alimentado por uma subtil ideia de androgenizar as mulheres.

A teóloga Elizabeth A. Johnson no seu livro “Women, Earth, and Creator Spirit” diz que — «uma das intelecções mais claras até à data é a de que as mulheres tendem a experimentar serem pessoas em conexão fundamentalmente incorporada com os outros. (…) [As] mulheres como grupo neste momento do nosso tempo, articulam a sua auto-compreensão com uma forte acentuação na relacionalidade. (…) Se a relação está no coração do universo, se a mutualidade é a excelência moral, então, a divindade de Deus não consiste em ser ‘contra’ ou ‘superior a’, mas expressa-se numa aproximação livre e em estar conectado numa mútua relação.» — Ou seja, o perfil Mariano protagonizado pelas mulheres seria uma via que estimularia a experiência relacional que se pretende, por exemplo, no caminho sinodal, desenvolvendo uma maior sensibilidade ao que o outro vive. Como diria Mahatma Gandhi — «Eu e tu somos um só. Não posso magoar-te sem me ferir.» — algo que sempre fomos convidados pelo Evangelho a viver — «Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40).

O perfil Mariano seria o modo de a Igreja evoluir no século XXI na direcção de uma sensibilidade maternal que levaria à cura de muitos aspectos que têm minado o campo da Nova Evangelização , como o caso dos abusos sexuais. Se não forem as mulheres a protagonizar esse perfil Mariano, não serão os homens por estarem mais vocacionados para o ministério. O Papa aponta para o grande desequilíbrio no grau de maturidade dos dois perfis, pelo que abrir o sacerdócio às mulheres nesta fase da história do Catolicismo parece-me levar ao domínio do perfil Petrino sobre o Mariano e à acentuação da visão hierárquica que se tem revelado frágil e problemática a vários níveis.

Quando movimentos como o “Nós Somos Igreja” afirma no seu manifesto — «Uma Igreja com uma nova atitude face às mulheres. Desejamos: a plena integração das mulheres; o seu acesso ao diaconato permanente; o seu acesso ao sacramento da ordem e à condução da Igreja; o reconhecimento do seu imprescindível contributo no anúncio do Evangelho.» — e terminam com a frase de S. Paulo aos Gálatas — «Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos vós sois um só em Cristo Jesus (Gal. 3,28)» — parece-me caírem numa certa contradição, sem se darem conta disso, por não reconhecerem o valor que o perfil Mariano tem na Igreja. Pois, não é o que fazemos (ministramos) que nos faz “um só”, mas a presença de Jesus em nós e entre nós. E a razão da contradição será estarem aprisionados a uma visão hierárquica da vida cristã, onde ser ordenado é um estado superior.

A visão ecológica da vida cristã, e que me parece ecoar a partir das palavras do Papa Francisco, embora não o explicite, aponta para a necessidade de motivar a que as mulheres desenvolvam o perfil Mariano da Igreja, de modo a impulsionar toda a humanidade num caminho de vivência intensa e profunda da fraternidade universal. Jesus revelou-nos um Deus-Relação, Pessoas-em-Comunhão. O Pai não está acima, nem o Filho está abaixo, nem o Espírito Santo é a Pessoa-sanduíche da Trindade. Mas o Pai, o Filho, e o Espírito Santo, sendo-Um, distinguem-Se, sem confusão ou separação e abrem-nos a realidade da unidade na diversidade. Quando o perfil Mariano se desenvolver, parece-me que descobriremos um terceiro perfil teológico, ainda menos explorado que o Mariano: o perfil Trinitário. Aquele que une o Petrino ao Mariano, sem confusão ou separação, numa comunhão que superará toda a hierarquização.

 *Professor Universitário), Blog & Autor

Fonte:  https://agencia.ecclesia.pt/portal/saber-aprender-que-um-sacerdote-nao-pode-ser-mulher/

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