A ingestão de partes do corpo humano foi prática corrente na Europa
até ao século XX, de acordo com um livro
agora publicado nos EUA e em
Inglaterra.
O autor é zoólogo e gosta de livros de terror.
“Gosto muito do género terror e penso que Stephen King é um dos
autores que mais me influenciaram”, comenta Bill Schutt, que acaba de
publicar um livro sobre canibalismo e que há poucos anos assinou um
outro acerca de animais que se alimentam de sangue, os hematófagos. Não
vão as pessoas pensar que é um perigoso sanguinário, Bill Schutt logo
acrescenta: “Woody Allen também é um dos meus autores de referência, por
causa do humor e da ironia”.
Quando o tema é o canibalismo,
acordam-se fantasmas. Surgem ideias feitas sobre temíveis tribos da
Papua-Nova Guiné e vem à memória uma das mais perturbantes personagens
do cinema, o Hannibal Lecter de Anthony Hopkins.
Em Cannibalism: A Perfectly Natural History – assim
se chama o livro –, Bill Schutt não detalha os aspetos sensacionais.
Apresenta o assunto do ponto de vista da zoologia. “Mas não é um manual
científico, é um livro para o grande público”, esclarece, em entrevista
ao Observador.
O volume saiu agora nos EUA, através da editora
independente Algonquin Books, com ilustrações de Patricia J. Wynne, que
fazem lembrar imagens naturalistas do século XIX. Na versão britânica,
lançada quase em simultâneo, o título é outro: Eat Me: A Natural and Unnatural History of Cannibalism.
O
canibalismo humano aparece no livro, sem rodeios, mas foram evitadas
descrições macabras e o humor intromete-se muitas vezes para aliviar o
tom. “O canibalismo presta-se à distorção mediática”, afirma Bill
Schutt.
Não despendi muito tempo a investigar o canibalismo em contexto criminal. Não acredito que exista um gene canibal, como muita gente defende. Acho que esse tipo de comportamentos faz parte de um espectro de distúrbios mentais que algumas pessoas adquirem. Quis afastar-me dessa parte. Não quero que os leitores pensem que estou a defender o canibalismo criminoso, que é uma coisa horrenda. Gosto de escrever para entreter e utilizo, até, algum humor. Penso que as pessoas vão ficar surpreendidas ao descobrirem que o canibalismo está espalhado por todo o reino animal, incluindo entre humanos.”
Nascido
há 61 anos em Nova Iorque, Bill Schutt ensina biologia na Universidade
de Long Island e doutorou-se em zoologia por Cornell. É também
investigador do Museu Americano de História Natural. Além dos livros
científicos, dedica-se à ficção. No ano passado assinou Hell’s Gate: A Thriller e em junho vai publicar mais um romance: The Himalayan Codex.
Para
escrever este livro demorou quase três anos. Não fez investigação
autónoma, mas acompanhou de perto o trabalho de outros cientistas. Por
exemplo, arqueólogos que ainda hoje estudam um famoso episódio da
história americana: a Tragédia de Dooner Party, em 1847, quando uma
expedição que se dirigia para a Califórnia ficou presa na neve, levando
alguns dos aventureiros, famintos e desesperados, a canibalizarem
outros, que entretanto tinham morrido.
“No reino animal, por muitas razões, o canibalismo é completamente
normal”, afirma Bill Schutt. “É uma forma de alguns progenitores
alimentarem as crias, é uma estratégia de sobrevivência no limite, como
resposta a alterações do meio, por exemplo, quando há excesso de crias,
ou de machos, e falta de alimento. É também uma estratégia reprodutiva
para muitos animais, como alguns peixes que se alimentam dos óvulos em
excesso. Nestes casos, é normal e corresponde a um grau de evolução de
certas espécies.”
“Nos vertebrados, mas também nos insetos, nas
aranhas, nos caracóis, é normal”, prossegue o zoólogo. “Noutros grupos,
como os primatas, é menos comum. Nos humanos, há manifestações de
canibalismo que nada têm que ver com crimes e estão enraizadas na
cultura das comunidades.”
No livro surge o caso do povo Wari, da
floresta amazónica, que até aos anos 1960 terá praticado canibalismo
como forma de ritual fúnebre, o mesmo se passando com povos da
Papua-Nova Guiné e de outras ilhas da Melanésia.
O autor descreve também o canibalismo humano em grupos que ficam isolados,
por causa de desastres ou tragédias naturais, e não têm o que comer.
“Aconteceu centenas de vezes ao longo da história. Sendo horrível, é um
comportamento previsível, como último recurso, porque o corpo está no
limite, em inanição, e as pessoas têm de escolher entre morrer ou comer
mortos.”
“Tenho a certeza de que o canibalismo teve lugar em
algumas culturas ao longo da história, porque há provas disso, mas,
também acho que houve menos do que muitos acreditaram”, explica Bill
Schutt.
Hoje, quando os arqueólogos e os antropólogos caracterizam um grupo como canibal, usam critérios mais apertados. Antigamente, ao encontrarem ossadas humanas com golpes, concluíam quase sempre que tinha havido desossa, logo, a comunidade praticava canibalismo. Já não é assim. Há muito maior cuidado agora. Marcas de corte em ossos podem significar muitas outras coisas. Outra das razões para acreditarmos que o canibalismo não foi uma prática assim tão disseminada está no facto de sabermos hoje que a palavra foi usada por muitas culturas dominantes para subjugar outras, a partir da época dos Descobrimentos, sobretudo. Os povos eram classificados como canibais com o objetivo de serem desumanizados e dominados. Não digo que o canibalismo não existisse no Caribe, por exemplo, quando os espanhóis lá chegaram, mas muitos grupos foram acusados desta prática apenas para que a destruição da sua cultura se fizesse sem remorsos.”
Ainda
no livro, lê-se que o aventureiro alemão Hans Stadin, que em meados do
século XVI serviu a bordo de um navio português, deixou um relato
escrito sobre as aventuras no Brasil, garantindo que os índios Tupinambá
comiam os inimigos para os aterrorizarem e afastarem. Vários
companheiros do alemão foram devorados, mas nele, aparentemente, ninguém
quis pôr o dente.
Um questão de dieta
Neste ponto vale a pena voltarmos atrás para perguntarmos ao autor o
que entende por canibalismo. A resposta é pronta: “Consumir o corpo, ou
partes do corpo, de um ser da mesma espécie, o que inclui fluídos
corporais.” Ingerir sangue de outra pessoa, no contexto de um ritual,
também é canibalismo? “Completamente”, afirma. E ingerir secreções de
outra pessoa durante práticas sexuais? “Não propriamente, mas é uma área
um pouco nebulosa”, reconhece.
Absorver a saliva de uma pessoa que se beija na boca não é canibalismo, tem de haver um consumo, tem de se ingerir, esteja o corpo morto ou tenha sido morto para esse fim. Mas também pode estar vivo. Durante a II Guerra Mundial, por exemplo, militares japoneses comeram partes do corpo de prisioneiros de guerra Aliados que ainda estavam vivos.”
Tabu
cultural no Ocidente desde a Grécia Antiga, segundo Shutt, o canibalismo
humano foi considerado repelente por autores como Shakespeare, na peça Titus Andronicus, ou Daniel Defoe, no famoso Robinson Crusoé.
No entanto, era praticado na Europa para fins científicos até ao início
do século XX, com ossos e sangue de humanos incluídos em preparados
medicinais.
“Um dos últimos vestígios do canibalismo medicinal é a
ingestão da placenta por parte de algumas mulheres, ou dos seus
companheiros, depois do nascimento dos filhos, o que ainda hoje se
verifica”, sublinha.
Mas por que razão surgiu este interdito São
vários os motivos, diz o zoólogo, introduzindo uma explicação baseada em
conceitos académicos.
Acredito que é uma criação Ocidental. Não quer dizer que outras culturas não tenham o mesmo tabu, provavelmente, sim”, começa por dizer. “Há razões biológicas pelas quais consumir partes de seres da nossa espécie é errado, e isso talvez ajude a explicar a criação do tabu. Há um conceito na biologia evolutiva chamado ‘aptidão inclusiva’ [“inclusive fitness”], segundo o qual podemos medir quantos genes de cada pessoa existem numa certa população. Se consumirmos os que nos são próximos, estamos a reduzir a ‘aptidão inclusiva’, ou seja, o número de genes nossos na população. É como se a seleção natural obrigasse os humanos a não praticarem canibalismo. Outro fator, são as doenças ligados às práticas canibais.”
Por exemplo, o kuru, que atingiu tribos da Papua-Nova Guiné. É semelhante à doença de Creutzfeldt-Jakob,
muito falada na década de 1990 através da variante das “vacas loucas”.
“São doenças degenerativas incuráveis, sempre fatais”, explica o autor.
“Não digo que sejam estas as duas únicas razões para os gregos terem
criado este tabu. Talvez quisessem também demonstrar o que os separava
de povos que eles achavam pouco civilizados.”
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Fonte: http://observador.pt/2017/04/02/canibalismo-pouco-civilizado-mas-perfeitamente-natural/
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