sexta-feira, 7 de abril de 2017

Processos kafkianos na pós-verdade

Juremir Machado da Silva* 
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Não é pouca coisa ter seu nome transformado em adjetivo. Franz Kafka conseguiu. Ele foi um escritor extraordinário. Praticava um texto claro e contundente. Imortalizou-se com “A metamorfose”, “O castelo” e “O processo”. No primeiro, um homem acorda transformado num inseto repelente. No segundo, um agrimensor é chamado para prestar serviços num local onde não consegue entrar. No terceiro, um cidadão não alcança saber pelo que está sendo processado. A vida é cada vez mais kafkiana. O mundo jurídico nem se fala. Dois exemplos. O Internacional entende que o Vitória inscreveu um jogador irregularmente no campeonato brasileiro de 2016. Reclama nas instâncias esportivas competentes. Não leva. O Vitória alega que teve o aval da CBF. A transferência deveria ter sido pelo procedimento internacional, mas foi nacional. O Inter vai ao STDJ, que se recusa a julgar.

É possível que a CBF tenha induzido o Vitória a erro. O STDJ pode julgar. Não quer. O Inter vai ao TAS, uma corte arbitral internacional, em busca do julgamento que não teve no Brasil. O TAS é um tribunal recursal. Como não houve julgamento, alega que não pode existir recurso. Logo, não pode julgar. Kafkiano. A quem aquele que se julga injustiçado deve recorrer quando o julgamento que reclama não acontece porque possivelmente o julgador é aliado da parte interessada em não julgar? O personagem de Kafka chamava-se K. O personagem colorado poderia ser I. Anda em círculos. Num ambiente de rivalidade o possível injustiçado de amanhã aplaude a provável injustiça de hoje. Como estou colorado, sou considerado suspeito para falar. Só posso afirmar que agiria da mesma maneira se o envolvido fosse o Grêmio (G). Evidentemente que minha afirmação não tem credibilidade. Kafkiano.

Michel Temer resolveu mudar de estratégia em relação ao julgamento de que é objeto no Superior Tribunal Eleitoral (TSE). Em vez de continuar tentando empurrar a decisão com a barriga para as chamadas “calendas gregas”, que no momento se situam depois das eleições de 2018, resolveu investir em algo mais rentável: tirar do julgamento as acusações mais graves, as provas mais cabais e os testemunhos mais comprometedores. É mais ou menos assim: T era acusado de roubo de uma bicicleta. Durante a investigação descobriu-se que matou uma pessoa. Apareceram novas testemunhas. A defesa de T alega que esse segundo crime e essas novas testemunhas, surgidas depois da primeira acusação, objeto do processo, não podem ser consideradas pelos juízes. Kafkiano. Pode-se julgar pelo supostamente menos grave, mas não pelo mais devastador. A tese poderá ser acolhida. Por que não?

O TAS e o TSE são como Gregor Samsa. Podem passar por metamorfoses brutais de um dia para outro. As instituições são castelos indevassáveis. Os indivíduos sofrem processos que só podem ser esclarecidos nessas fortalezas onde não podem entrar. No caso esportivo até lhes restaria a justiça comum. São advertidos de que se recorrerem a ela acordarão como baratas repugnantes. Nos casos políticos os julgadores pretensamente neutros, indicados em alguns casos pela parte julgada, despertam para as consequências econômicas e sociais das suas decisões. Não querem “mais confusão”. Kafkiano.

Outro dia, acordei transformado numa borboleta.

Pena que durou pouco.
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* Jornalista. Escritor. Colunista do Correio do Povo.
Fonte:  http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2017/04/9728/processos-kafkianos-na-pos-verdade/
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