Juremir Machado da Silva*
Não é pouca coisa ter seu nome transformado em adjetivo. Franz Kafka
conseguiu. Ele foi um escritor extraordinário. Praticava um texto claro
e contundente. Imortalizou-se com “A metamorfose”, “O castelo” e “O
processo”. No primeiro, um homem acorda transformado num inseto
repelente. No segundo, um agrimensor é chamado para prestar serviços num
local onde não consegue entrar. No terceiro, um cidadão não alcança
saber pelo que está sendo processado. A vida é cada vez mais kafkiana. O
mundo jurídico nem se fala. Dois exemplos. O Internacional entende que o
Vitória inscreveu um jogador irregularmente no campeonato brasileiro de
2016. Reclama nas instâncias esportivas competentes. Não leva. O
Vitória alega que teve o aval da CBF. A transferência deveria ter sido
pelo procedimento internacional, mas foi nacional. O Inter vai ao STDJ,
que se recusa a julgar.
É possível que a CBF tenha induzido o Vitória a erro. O STDJ pode
julgar. Não quer. O Inter vai ao TAS, uma corte arbitral internacional,
em busca do julgamento que não teve no Brasil. O TAS é um tribunal
recursal. Como não houve julgamento, alega que não pode existir recurso.
Logo, não pode julgar. Kafkiano. A quem aquele que se julga injustiçado
deve recorrer quando o julgamento que reclama não acontece porque
possivelmente o julgador é aliado da parte interessada em não julgar? O
personagem de Kafka chamava-se K. O personagem colorado poderia ser I.
Anda em círculos. Num ambiente de rivalidade o possível injustiçado de
amanhã aplaude a provável injustiça de hoje. Como estou colorado, sou
considerado suspeito para falar. Só posso afirmar que agiria da mesma
maneira se o envolvido fosse o Grêmio (G). Evidentemente que minha
afirmação não tem credibilidade. Kafkiano.
Michel Temer resolveu mudar de estratégia em relação ao julgamento de
que é objeto no Superior Tribunal Eleitoral (TSE). Em vez de continuar
tentando empurrar a decisão com a barriga para as chamadas “calendas
gregas”, que no momento se situam depois das eleições de 2018, resolveu
investir em algo mais rentável: tirar do julgamento as acusações mais
graves, as provas mais cabais e os testemunhos mais comprometedores. É
mais ou menos assim: T era acusado de roubo de uma bicicleta. Durante a
investigação descobriu-se que matou uma pessoa. Apareceram novas
testemunhas. A defesa de T alega que esse segundo crime e essas novas
testemunhas, surgidas depois da primeira acusação, objeto do processo,
não podem ser consideradas pelos juízes. Kafkiano. Pode-se julgar pelo
supostamente menos grave, mas não pelo mais devastador. A tese poderá
ser acolhida. Por que não?
O TAS e o TSE são como Gregor Samsa. Podem passar por metamorfoses
brutais de um dia para outro. As instituições são castelos
indevassáveis. Os indivíduos sofrem processos que só podem ser
esclarecidos nessas fortalezas onde não podem entrar. No caso esportivo
até lhes restaria a justiça comum. São advertidos de que se recorrerem a
ela acordarão como baratas repugnantes. Nos casos políticos os
julgadores pretensamente neutros, indicados em alguns casos pela parte
julgada, despertam para as consequências econômicas e sociais das suas
decisões. Não querem “mais confusão”. Kafkiano.
Outro dia, acordei transformado numa borboleta.
Pena que durou pouco.
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* Jornalista. Escritor. Colunista do Correio do Povo.
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2017/04/9728/processos-kafkianos-na-pos-verdade/
Imagem da Internet
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