Marcelo Barros*
"Quantas feridas gravadas na carne de muitos que já não tem voz, porque o seu grito foi esmorecendo e se apagou por causa da indiferença..."
(Papa Francisco - Bula de Proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia.
Paulus, 9ª impressão, 2016, p. 21 ítem 15)
Em várias dioceses católicas do Brasil, muitos ministros e fieis se revelam
surpresos ao perceber que os responsáveis pela Igreja decidiram se manifestar
publicamente sobre o que está acontecendo no Brasil. Bispos se pronunciam
contra iniciativas do atual governo, como a Proposta de Reforma da Previdência Social.
Também se declaram contra as mudanças da Constituição, empreendidas pelo
Congresso, sem nenhuma consulta ou respaldo popular. Na Igreja Católica, essa nova
postura profética dos bispos, depois de décadas de uma pastoral mais autocentrada, é uma boa
surpresa. Sem dúvida, devemos isso a esses tempos que vivemos, embalados pela
profecia do papa Francisco. No entanto, além dos bispos católicos e de uma nota
da própria CNBB, também o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs e autoridades
evangélicas têm se unido na denúncia das medidas que vão diretamente contra os
interesses da imensa maioria dos brasileiros.
Infelizmente, para muitos cristãos, o compromisso social e
político não parece fazer parte da fé. Nesse tempo pascal, todas as comunidades
de Igrejas antigas leram as passagens do livro do Êxodo que contam a Páscoa
judaica. Ali, Deus ordenou aos hebreus saírem da escravidão. Ele os conduziu
para a terra prometida e revelou que a vocação de todo ser humano é ser livre e
ter sua dignidade reconhecida. Daqui há poucos dias, leremos nas Igrejas o texto do
evangelho no qual Jesus se proclama o verdadeiro pastor do povo que veio para
que todos tenham vida e vida em abundância (Jo 10, 10). No entanto, muitos
ministros e fieis interpretam o evangelho de forma espiritualista e
individualista. Como se Deus se interessasse apenas pelas consciências e desse
sua salvação só para depois da morte. Mesmo muitos que estão de acordo com as
pastorais sociais e os trabalhos de solidariedade os veem apenas como
consequência da fé e da caridade.
É preciso um processo de conversão para descobrir
que a dimensão social libertadora é o eixo central da revelação bíblica e o
coração da espiritualidade judaico-cristã. Ela expressa a relação com um Deus
que é amor e cujo projeto é a libertação de todos os humanos, o direito à vida
de todos os seres viventes e a comunhão do universo. Esse projeto que a Bíblia
chama de "reino de Deus" nos chama todos a sermos cidadãos. Paulo diz
que deixamos de pertencer ao mundo como sociedade dominante para vivermos
livres. Então, "o mundo, a vida, a morte, o presente e o futuro, tudo é de
vocês e vocês são do Cristo e o Cristo é de Deus" (1 Cor 3, 22- 23).
Nesses dias, muitos bispos e pastores estão se
pronunciando publicamente favoráveis à greve geral dessa sexta-feira, 28. Eles conclamam as
pessoas de fé a apoiarem as mobilizações populares. Setores mais conservadores
se perguntam o que isso tem a ver com a fé. De fato, essa greve geral é um
movimento autônomo dos movimentos sociais. Totalmente laical e nada ligada à
Igreja. No entanto, para quem tem fé, essa greve recorda que, na Bíblia, a
aliança de Deus com o seu povo tem como centro a celebração do sábado.
É o direito sagrado do povo parar o trabalho e descansar. Até
hoje, os rabinos explicam: "Deus criou o sábado para lembrar a todo fiel a
sua dignidade de pessoa livre e que não pode se deixar oprimir". Não é por
acaso que no idioma hebraico dos nossos dias, o termo greve é traduzido por Shabbat
, o mesmo vocábulo que sábado. Quando
lutamos por cidadania e direito dos trabalhadores, estamos revivendo o que uma
canção das comunidades eclesiais de base cantam até hoje: "No Egito,
antigamente, no meio da escravidão, Deus libertou o seu povo. Hoje, Ele passa
de novo, gritando a libertação".
---------
* Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das
tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o
MST. Gosto de escrever e de me comunicar.
Fonte: http://www.marcelobarros.com/blog/democracia-e-espiritualidade-pascal/
Imagem da Internet
Citação da Bula - do Blog.
Nenhum comentário:
Postar um comentário