Luiz Felipe Pondé*
Somos quase todos relativistas. O filme "Silêncio", de Martin Scorsese,
dá um excelente exemplo para a discussão do relativismo cultural
(cristianismo católico jesuíta x budismo no século 17 no Japão).
Relativismo é um tema antigo. Na filosofia, data, no mínimo, dos
diálogos platônicos em debate com sofistas famosos, como Protágoras e
Górgias. "O homem é a medida de todas as coisas", segundo Protágoras.
Afirmação fundadora do relativismo, que, nos dias de hoje, virou "cada
um é cada um". O relativismo sofista foi reforçado pelos achados da
antropologia.
O leitor, assustado, me perguntará: O que vem a ser "relativismo
nutella"? "Nutella", aqui, é conceito. Produto de uma filosofia das
redes, "nutella" significa algo que não é de raiz. Algo inautêntico. Por
exemplo, como diz o próprio oráculo das redes, um marxista de raiz
viajava para Moscou, um marxista nutella sonha com a Disney e Nova York.
Poderíamos dizer que nutella aqui é sinônimo de "fake", falso. Ou coisa
de mimado querendo dizer que é adulto. Nutella é comida de criança. No
caso da esquerda, Lênin seguramente teria horror à moçadinha nutella,
que se diz revolucionária hoje porque abraça causas via Face.
Esclarecido o conceito de "nutella", via filosofia das redes, voltemos
ao fenômeno do relativismo nutella.
Pois bem. Minha tese hoje é que quem defende o relativismo em aulas de
humanas prega para conversos. Falar de relativismo nas universidades é
fácil. Defender o relativismo no Ocidente é praticar relativismo
nutella. Discutir um tema que, aparentemente, parece ser corajoso é ser
nutella. Hábito comum nosso esse de tratar de questões difíceis em
ambientes absolutamente seguros, como defender o direito à diversidade
sexual nos cafés da Augusta.
Dizer que os cristãos foram opressores em ambientes ocidentais é ser
nutella. A crítica ao colonialismo em restaurantes em Paris é ser
nutella. Falar de diversidade cultural ou sexual entre conversos é ser
nutella. E como não ser nutella nesse caso?
Proponho que defendamos o relativismo com gente que, de fato, crê que
devemos viver segundo uma fé religiosa única. Gente que, de fato,
pratica essa fé religiosa única, acreditando que quem não a faz está
errado e merece sofrer por conta desse erro. Quero ver alguém defender o
relativismo diante de qualquer forma de fundamentalismo religioso.
Você defenderia o relativismo religioso diante de uma assembleia do
Estado Islâmico? A defesa nutella de uma ideia pressupõe o ambiente
seguro. Como ser de esquerda dando uma entrevista para a maioria dos
jornalistas. Ou defender o aborto para feministas. Ou defender a cura
gay para evangélicos reacionários.
Claro, dirá o leitor, não há gente assim entre ocidentais. Mesmo
cristãos crentes hoje em dia são "soft" em termos de práticas
excludentes ou intolerantes. Teólogos ocidentais são os primeiros a
admitir que formas distintas de crenças religiosas podem estar em
diálogo e mútua tolerância. O traço do relativismo é se conter diante
das certezas de cada um. Implica uma certa redução do valor da crença em
si. Ou mesmo uma defesa da ideia universal de amor à humanidade como
argumento que sustentaria essa tolerância.
Mas, e se alguém recusasse ser amado dessa forma? E se alguém
considerasse essa proposta de amor universal um modo de colonialismo em
si (como os budistas de "Silêncio") e defendesse a morte desses
proponentes do amor universal?
E se alguém considerasse o próprio conceito de humanidade um truque para você ser como ele quer que você seja?
E como passar do relativismo cultural ao multiculturalismo sem defender
parques temáticos étnicos? O multiculturalismo pressupõe a anulação
artificial da dinâmica humana em si, que é dissolver culturas em formas
novas de culturas.
O relativismo funciona bem como conceito quando falado em ambientes
seguros, mas funciona mal quando defendido em ambientes que não creem
nele como modo de vida. E mais: Quantas vezes por dia você é, de fato,
relativista? Normalmente, a regra é: relativiza-se o que, na verdade, já
não se acreditava.
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* Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela
Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião,
ciência.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2017/04/1874082-voce-defenderia-o-relativismo-religioso-diante-do-estado-islamico.shtml
Imagem: Ricardo Cammarota/Folhapress
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