Você já reparou que os filmes e romances de ficção
científica são classificados com uma frequência cada vez maior nas
seções de cinema de terror e de literatura gótica, ou seja, em um futuro
tenebroso no qual ninguém gostaria de viver? Pode parecer algo
irrelevante, mas para Zygmunt Bauman, um dos pensadores mais influentes
do século XX, é o reflexo de que começamos a buscar a utopia em um
passado idealizado, uma vez que o futuro deixou de ser sinônimo de
esperança e progresso para se tornar o lugar sobre o qual projetamos
nossas apreensões. O sociólogo e filósofo polonês deixou desenvolvida
essa tese da retrotopia (a busca da utopia no passado) em dois escritos,
os primeiros traduzidos ao espanhol depois de sua morte, em janeiro,
aos 91 anos. São o ensaio Retrotopia (Retrotopia) e o texto Symptoms in
Search of an Object and a Name (Sintomas em Busca de um Objeto e de um
Nome) parte de uma obra coletiva sobre o estado da democracia, The Big
Regression (O Grande Retrocesso), que chega às livrarias espanholas no
dia 27 e reúne nomes como Slavoj Žižek, Nancy Fraser e Eva Illouz.
A reportagem é de Antonio Pita, publicada por El País, 24-04-2017.
“O futuro é, em princípio ao menos, moldável, mas o passado é sólido,
maciço e inapelavelmente fixo. No entanto, na prática da política da
memória futuro e passado intercambiaram suas respectivas atitudes”,
aponta. Bauman fala sobre medos como o de perder o emprego, do
multiculturalismo, de que nossos filhos herdem uma vida precária, de que
nossas habilidades de trabalho se tornem irrelevantes porque os robôs
saberão fazer –melhor e mais barato– o nosso trabalho. Em suma, medo
porque tudo o que era sólido (parafraseando Antonio Muñoz Molina) agora é
“líquido”, usando o adjetivo que popularizou Bauman.
“Existe uma brecha crescente entre o que precisa ser feito e o que
pode ser feito, o que realmente importa e o que conta para aqueles que
fazem e desfazem, entre o que acontece e o que é desejável”, aponta.
Bauman argumenta que voltamos à tribo, ao seio materno, ao mundo cruel
descrito por Hobbes para justificar a necessidade do Leviatã (o Estado
forte para evitar a guerra de todos contra todos) e a desigualdade mais
gritante, na qual “o ‘outro’ é uma ameaça” e “a solidariedade parece uma
espécie de armadilha traiçoeira ao ingênuo, ao incrédulo, ao tolo e ao
frívolo”. “O objetivo já não é conseguir uma sociedade melhor, pois
melhorá-la é uma esperança vã sob todos os efeitos, mas melhorar a
própria posição individual dentro dessa sociedade tão essencial e
definitivamente incorrigível”, lamenta. A filósofa Marina Garcés,
professora da Universidade de Zaragoza, elogia a capacidade de Bauman
para “assumir o fim do pensamento utópico e suas consequências”. “Ele
não pretende nos enganar com novas e falsas promessas de futuro, mas
tenta entender o que está acontecendo depois da era das revoluções e
suas várias derrotas”, afirma.
Pensador de inspiração marxista, Bauman cita algumas vezes o filósofo
alemão em Retrotopia, ataca o chamariz da sociedade de consumo de massa
e não renuncia à análise científica das contradições do capitalismo,
mas também “recorre a outras ferramentas” para oferecer “uma visão em
grande-angular”, explica o catedrático de filosofia da Universidade de
Barcelona e deputado socialista Manuel Cruz. “A ideia de que a
materialização da utopia foi perdida é um zumbido no pensamento do
século XX”, mas “na obra de Bauman há um esforço para reconhecer o novo
que traz ‘o novo’”. “Os pensadores que agora consideramos que
representaram uma revolução foram recebidos com um ‘isso nós já
sabíamos’. É preciso tempo para que a sociedade entenda o que tinham de
novidade”, comenta.
Nos dois textos póstumos o filósofo apresenta um desafio e uma
–abstrata e pouco desenvolvida– resposta. O desafio é “conceber –pela
primeira vez na história humana– uma integração sem separação alguma à
qual recorrer”. Até agora, argumenta, o que funcionou é a divisão entre
‘nós’ e ‘eles’, e continuamos empenhados a buscar um ‘eles’, “de
preferência no estrangeiro de sempre, inconfundível e irremediavelmente
hostil, sempre útil para reforçar identidades, traçar fronteiras e
construir muros”. No entanto, essa dicotomia histórica “não se encaixa”
com a “emergente ‘situação cosmopolita’”. Qual é, então, a única
resposta possível? “A capacidade para dialogar”, conclui Bauman depois
de citar de forma elogiosa o papa Francisco.
Garcés se diz “surpresa” tanto pela chamada ao diálogo (“de quem com
quem?”, pergunta) quanto pela invocação da figura do Papa. “Acredito que
é um pedido de socorro” de um Bauman que “tenta desenhar um cenário
para a palavra compartilhada” porque sabe que “já não há soluções
parciais para nenhum dos problemas do nosso tempo”. É a advertência
final do pensador polonês: “Devemos nos preparar para um longo período
que será marcado por mais perguntas do que respostas e por mais
problemas do que soluções. (...) Estamos (mais do que nunca antes na
história) em uma situação de verdadeiro dilema: ou damos as mãos ou nos
juntamos ao cortejo fúnebre do nosso próprio enterro em uma mesma e
colossal vala comum”.
Antidepressivos e Cegueira
A partir de seu posto de professor em Leeds (Inglaterra), Bauman
teria podido lançar um olhar complacente ao presente, depois de ter
vivido a invasão nazista de seu país, a Segunda Guerra Mundial na frente
de batalha, o antissemitismo e os expurgos na Polônia comunista. Em vez
disso, sua análise em Retrotopia é taxativa: “É praticamente inevitável
que respiremos uma atmosfera de desassossego, confusão e ansiedade e a
vida seja qualquer coisa menos agradável, reconfortante e gratificante”.
Nesse contexto, os cada vez mais consumidos tranquilizantes e
antidepressivos proporcionam alívio, mas também “contribuem para cegar
os próprios seres humanos em relação à natureza real do seu padecimento
em vez de ajudar a erradicar as raízes do problema”.
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Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/566932-advertencia-postuma-do-filosofo-zygmunt-bauman 25/04/2017
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