Amyra El Khalili*
O debate sobre a “descomoditização” é antigo.[1] Começou bem antes da
fundação do Movimento Via Campesina (1992) e do slogan cunhado pelo
ativista campesino José Bové — “O mundo não é uma mercadoria” (1999).
Essa discussão desenvolveu-se em fins da década de 80 e início da década
de 90 entre alguns operadores de commodities e de futuros desde a
adoção pelos banqueiros e políticos da teoria neoliberal de Milton
Friedman, da escola de Chicago.[2]
A origem dos mercados futuros é também anterior ao capitalismo. Sua
história tem registros há milênios na China e na Índia entre os povos
nômades que levavam mercadorias de um lado para o outro atravessando os
desertos da Ásia, da África e do Leste Europeu e combinavam o preço
futuro (trocas) quando retornassem à porta da casa do freguês trazendo
na volta suas encomendas. Os chineses são os maiores, em volume de
negócios, e os mais agressivos operadores de commodities e de futuros do
mundo.
Mercados sempre existiram com ou sem o capitalismo, porém com o
capitalismo as trocas se tornaram monetárias, ou seja, em vez de
trocarmos as coisas por outras coisas, por exemplo, um pedaço de carne
por pão, uma galinha por um quilo de farinha, passamos a trocar as
coisas por moeda (dinheiro). Daí, o que era feito de forma limitada e
por subsistência (para atender às necessidades básicas) passou a ter
outra conotação e relação de valores.
Poderíamos discutir as trocas de seres humanos por comida, de
crianças por animais, entre tantas outras que também existiam antes do
capitalismo e ainda persistem com todas as duras conquistas pelos
direitos humanos e ambientais. O fenômeno de mercantilizar coisas e
pessoas ou o que deve ou não ser mercadoria, a ética e que tipo de
valores pautam essas atitudes, independentemente de ideologias e
religiões, devem ser estudados à luz da ciência econômica, social,
política, jurídica e, sobretudo, à luz da psiquiatria. Somente o ser
humano mata por prazer. As outras espécies não agem dessa forma.
Voltemos para os mercados futuros e tomemos como exemplo o caso do
matemático chinês David X. Li, cuja fórmula elegante, a Cópula de
Gaussian, foi reproduzida pelos operadores de Wall Street.[3] O método
de David X. Li foi adotado por todos, desde os investidores em títulos,
os bancos de Wall Street, agências de classificação de riscos (rating) e
reguladores. E tornou-se tão profundamente enraizado no “modus
operandi” do sistema financeiro que muitos fizeram dinheiro com este
modelo matemático, porém ignoraram as advertências sobre as limitações
do uso dessa metodologia e seus potenciais riscos. Não existe
probabilidade zero nos mercados futuros. Sempre haverá riscos
proporcionais ao tamanho dos ganhos. Aliás, dependendo do volume
financeiro da aplicação, os riscos podem ser também correspondentes à
capacidade da alavancagem (velocidade e volume entre alta e baixa)
desses mercados. Assim sendo, estima-se que, para cada grama de ouro,
multiplicam-se em torno de 100 vezes a possibilidade de se realizar
prejuízos.
O modelo de David X. Li se desfez, produzindo falhas que apareceram
desde o início da crise em 2008 com a quebra do Banco Lehman Brothers,
engolindo trilhões de dólares e colocando em risco a sobrevivência do
sistema financeiro internacional, que, como papagaio, repete as mesmas
práticas sem qualquer fundamento técnico quando se trata de ganhar
dinheiro rápido com o mantra: “temos que aproveitar as oportunidades que
as crises nos proporcionam!”.
Seriam uma fórmula matemática e seu autor os responsáveis pelo rombo
de Wall Street? A tragédia encontra-se no subprime, o sistema
multitrilionário que permitiu que os fundos de pensão, companhias de
seguros e os fundos de hedge (cobertura) emprestassem trilhões de
dólares para as empresas, países e compradores de casas.
A responsabilidade, na verdade, é de quem usou a fórmula
inadvertidamente, até porque, em um mercado desregulamentado, ninguém é
obrigado a utilizar nenhuma metodologia, a não ser que seja imposta por
força da lei ou por um lobby poderosíssimo como está ocorrendo com a
adoção da TEEB (“The Economics of Ecosystems and Biodiversity” — A
Economia dos Ecossistemas e da Biodiversidade),[4] cujo relatório foi
coordenado pelo físico e economista indiano Pavan Sukhdev. Como usar a
TEEB e interpretá-la também deve ser responsabilidade atribuída aos que
dela se utilizam. Porém não significa que a partir do momento em que a
ONU adota essa metodologia não deve ser questionado para o quê e com quê
objetivos a TEEB foi concebida.[5]
Como economista brasileira de origem beduíno-palestina, recuso-me a
aceitar fórmulas matemáticas e modelos econômicos impostos de cima para
baixo e de fora para dentro, testando teorias financistas com seres
humanos e o ambiente. Sou autora de uma fórmula matemática que ainda,
por questões de segurança, noção de risco e por não subestimar a
inteligência alheia, não revelei e não pretendo revelar tão cedo.
Diferentemente de David X. Li, não a fiz para ganharem dinheiro com
ela e também, a exemplo do executivo indiano egresso do Deutsche Bank,
Pavan Sukhdev, não a fiz por encomenda dos banqueiros, das corporações e
nem da ONU.
Foi por convicção de que era necessário introduzir uma célula benigna
no corpo da economia cancerígena que produz metástases, como a da crise
de 2008, que a desenvolvi. Iniciei o desenho dessa fórmula em 1990
motivada pela guerra Irã-Iraque, com a minha experiência prática como
operadora nos mercados de commodities minerais, ouro, petróleo e
derivativos (derivado de ativos ou futuros). Como disse anteriormente, a
discussão sobre “descomoditização” se deu muito antes da fundação da
Via Campesina e da notoriedade alcançada por José Bové com sua luta
antiglobalização e anti-industrialização inspirando os Fóruns Sociais
Mundiais.
Sobre a fórmula que criei, trata-se da sequência numérica que
decodifica as matrizes das “commodities ambientais”. É a
“descomoditização” do padrão convencional que determinou o sistema que
promove a “comoditização”. Como a palavra “descomoditização” é mais
complicada e de difícil explicação, tornando-se uma expressão, tanto
quanto a palavra “commodity”, cunhei a expressão “commodities
ambientais”. Sobre este tema esclareço com o artigo “Pós Rio+20 –
Reflexões conceituais sobre a ‘comoditização’ dos bens comuns”.[6]
Compreendo a histeria dos ativistas indianos contra a
“comoditização”, já que eles têm sido as principais vítimas destes
modelos irresponsáveis e utilitaristas pelos alunos da escola neoliberal
de Milton Friedman. Curiosamente, o executivo coordenador do
controvertido e questionável relatório TEEB é um indiano.
Porém, não será porque a palavra “commodities” está sendo demonizada
com toda a razão que devemos omiti-la, ignorá-la ou mesmo substituí-la
por outra que tente minimizar suas consequências sem discutirmos a
essência do seu significado ou como podemos combater o sistema que a
tornou um grande problema socioambiental. Quem disse que commodity tem
que ser o que é? Aqui, em Terra Brasilis, usam-na há mais de 513 anos
sem traduzi-la e, principalmente, sem ser contestada. Foram os europeus e
estadunidenses os que nos fizeram “engolirem-na” com seu jeito
tecnológico de nos fazerem produzi-las, pagando uma miséria por elas,
enquanto os produtores rurais ou agricultores (as) e campesinos (as),
como queiram, correm todos os riscos de clima, safra, financeiros, além
do risco de precificação.
Assim como a bula de um médico prescreve tomar “diclofenato de
sódio”, nome técnico-científico, e fala-se em biodiversidade,
ecossistemas, biomas no “biologuês”, sirvo-me dos nomes técnicos e
científicos em economia e finanças para prescrever o receituário de um
remédio, mas não me atrevo, no entanto, a aplicá-lo sem antes analisar
com a sociedade se terá efeito positivo ou negativo o tal remédio. Nem
tenho também a pretensão de produzi-lo sozinha, pois considero essa
alquimia um conjunto de muitos fatores, sendo necessário o envolvimento
de diversos atores socioambientais nesta longa empreitada. Quanto a
conceituá-la, ainda é algo que, para ter o efeito desejado, deve ser
assimilado por um considerável grupo de mentes pensantes. Do contrário,
não será conceito, podendo ser apenas um amontado de ideias
interessantes ou não.
Concordo com a ecofeminista e cientista Vandana Shiva sobre sua
afirmação: “alimento não é commodity”.[7] De fato, alimento não pode se
resumir a alguns produtos da pauta de exportação brasileira, por
exemplo: soja, cana, boi, pinus e eucaliptos. A palavra commodity não
encontra tradução ao pé da letra em português, fato este que está
registrado na literatura financeira apenas em inglês por se tratar de
uma expressão mundial de finanças e de comércio exterior.
Como seres humanos, alimentamo-nos com muitos outros produtos, e
melhor e mais saudável seria que não fossem produzidos com veneno, como
os agrotóxicos. Infelizmente, essa maneira de produzir ainda faz parte
de nossa alimentação urbana fast food. São esses os ditos “alimentos”
que compramos no supermercado e nas feiras livres, com poucas ou raras
exceções, com a agroecologia disputando espaços restritos nas
prateleiras dos supermercados e nos poucos guetos a preços inacessíveis
para a maioria dos mortais sem poder de compra.
A cientista Vandana Shiva diz algo que deve ser considerado à luz da
ciência econômica, já que a produção de commodities nem nos alimenta e
nem nos sustenta financeiramente. Há muito tempo, deixou de ser
alternativa econômica, gerando emprego e renda no campo, para ser
concentração de capital na mão dos mesmos capitalizados com a “oportuna”
falta de política agropecuária, de soberania e segurança alimentar que
estão diretamente ligadas às mais das emergências reinvindicações de
campesinos, sem terra, comunidades tradicionais e povos da floresta: a
reforma agrária e o direito à terra.
No entanto, não poderíamos afirmar que “alimento não é mercadoria”,
usando a palavra em português sem explicá-la no “financês”. A afirmação
“alimento não é mercadoria” não encontra respaldo na realidade e no
imaginário das pessoas comuns (não politizadas). Pode ser palavra de
ordem, uma expressão derivada da frase cunhada a partir da justa e
necessária luta de José Bové, que encontrou apoio na Via Campesina. Esta
sim encontra respaldo na realidade em que vivemos nessa economia de
mercado, ao afirmar que “o mundo não é uma mercadoria” — seja em
português como em inglês — “o mundo não é uma commodity”.
Senão vejamos: alimento é mercadoria sim, porque ainda temos que
comprar alimento no supermercado, na padaria, nas feiras livres, nos
hortifrutigranjeiros, nos mercados, nas quitandas, entre outros cantos.
Também o Estado não nos proporcionará alimento gratuito. Mera ilusão
achar que o Estado vai dar comida grátis para todo o contingente dos
mais de 7 bilhões de seres humanos neste planeta, sem contar, é claro,
os demais seres vivos.
Certamente, como defende Vandana Shiva, “alimento não é commodity”,
porque, afinal, não nos alimentamos com monocultura intensiva (uma única
cultura), sendo apenas cinco principais produtos da pauta de exportação
brasileira, e nem podemos deixar de nos alimentar com outras variedades
que são mais importantes e garantem a segurança alimentar e
nutricional, como raízes, verduras, frutas, temperos, condimentos,
leite, ovos, farinhas, carnes diversas (não somente a de gado, frango e
suíno), peixes, e por aí vai afora, sem contar com as plantas que curam.
Medicamentos podem ser tradicionais ou alternativos. Por que estamos
nos matando na medicina convencional com drogas que viciam e provocam
efeitos colaterais?
Assim sendo, proponho adotar outra frase, que compreendo ser mais
adequada ao que se pretende comunicar: “alimento é direito humano e dos
demais seres vivos”. Não deixarei os outros seres vivos de fora desta
pendenga, considerando o aprendizado adquirido com o eco-historiador e
ambientalista Arthur Soffiati, que nos apresenta o desafio do novo
paradigma naturalista organicista contemporâneo:
O paradigma mecanicista continua impregnado no ser humano
ocidentalizado, agora de forma prática. Por outro lado, emerge um novo
paradigma, que poderíamos chamar de naturalista organicista
contemporâneo. Em lugar do “penso, logo existo”, coloca-se agora o
“computo, logo existo”. Computar é processar as informações e
transformá-las em conhecimento para a vida. Todos os seres vivos —
unicelulares ou pluricelulares — computam. Logo, todos podem ser
considerados sujeitos e objetos.
Se entendermos que “alimento é direito humano e dos demais seres
vivos”, estaremos empunhando uma bandeira que encontrará respaldo no
imaginário das pessoas e levantará um questionamento fundamental: por
que temos que comprar alimentos caros e ruins nos supermercados? Se é
que o que está no supermercado pode se considerar “alimento”. Dar uma
papinha industrializada para seu bebê é estar alimentando-o?
Com estas indagações, entre outras, provocamos inquietudes e, dessa
forma, promovemos uma discussão filosófica e mais eficiente nas mentes,
nos corações e nos estômagos, conscientizando as pessoas sobre o que
afinal estamos produzindo e consumindo.
Podemos começar filosofando como o poeta e dramaturgo inglês William Shakespeare: “Ser ou não ser mercadoria: eis a questão!”.
Referências:
1. Descomoditização – ação de não produzir mercadorias com padrão
industrial, mantendo critérios diferenciados, como as produções
artesanais e tradicionais de doces, queijos, farinhas, entre outros
alimentos e produtos.
2. Milton Friedman foi um dos mais destacados economistas do século
XX e um dos mais influentes teóricos do liberalismo econômico. Principal
apóstolo da Escola Monetarista e membro da Escola de Chicago, além de
defensor do laissez faire e do mercado livre. Friedman foi conselheiro
do governo chileno de Augusto Pinochet e muitas de suas ideias foram
aplicadas na primeira fase do governo Nixon e em boa parte do governo
Ronald Reagan. Era pai do teórico David Friedman (disponível em:
).
3. SALMON, Felix. Recipe for Disaster: The Formula That Killed Wall
Street. Disponível em:
.
4. TEEB: A iniciativa The Economics of Ecosystems and Biodiversity (A
Economia dos Ecossistemas e da Biodiversidade) nasceu em 2007 durante o
encontro de ministros do Meio Ambiente do G8+5 em Potsdam, na Alemanha,
e começou a funcionar em 2008 sob coordenação do executivo Pavan
Sukhdev, do Deutsche Bank. O objetivo era abarcar o valor econômico dos
serviços dos ecossistemas e da biodiversidade, a fim de protegê-los de
mais destruição e ações predatórias. O relatório final do estudo foi
lançado em 2010 durante a 10ª Conferência das Partes (COP 10) da
Convenção sobre Diversidade Biológica em Nagoya, no Japão.
5. UNMÜßIG, Barbara. Ninguém pretende colocar etiquetas com preços na
natureza. Entrevista concedida a Pavan Sukhdev. Disponível em:
.
6. EL KHALILI, Amyra. Pós RIO+20: Reflexões conceituais sobre a
“comoditização” dos bens comuns. Disponível em:
.
7. OLIVEIRA, Péricles de. Agronegócio, um modelo esgotado. Entrevista
concedida a Vandana Shiva. Brasil de fato. Disponível em:
.
----------------
*Amyra El Khalili é professora de economia socioambiental e
editora das redes Movimento Mulheres pela P@Z! e Aliança RECOs – Redes
de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras.
Fonte: https://www.ecodebate.com.br/2017/04/05/descomoditizacao-ser-ou-nao-ser-mercadoria-eis-questao-artigo-de-amyra-el-khalili/
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