Ricardo Bordin*
O depoimento de uma enfermeira
australiana sobre sua convivência durante anos com pacientes sob
cuidados paliativos (desenganados pelos médicos) despertou atenção
mundial há cerca de dois anos. Ela publicou um livro intitulado “Antes de partir: uma vida transformada pelo convívio com pessoas diante da morte”, no qual descreve como sua vida foi transformada pelo contato com os arrependimentos dos doentes terminais dos quais cuidou.
Ao descrever os relatos daqueles que
experimentavam suas últimas semanas entre nós, Bronnie Ware lista
algumas constrições destas pessoas – as coisas que elas, munidas do
conhecimento adquirido no limiar da existência terrena, gostariam de
voltar no tempo para corrigir e fazer diferente.
Os leitores da obra, naturalmente,
tendem a concluir que devem fazer uso destes derradeiros desabafos em
benefício próprio, praticando as lições aprendidas por aqueles que já
estão, em parte, desconectados de nosso atribulado cotidiano – e que, em
tese, possuem melhores condições da avaliar, do alto de sua indesejável
(mas libertadora) conjuntura, o que valeu a pena ou não em suas
jornadas.
Mas há um problema conceitual muito
grave nesta análise feita no epílogo da vida, neste ato de passar a
limpo todos os atos pretéritos ao concluir nossa trajetória corpórea: o
fato de que, em tais circunstâncias, o autor da reflexão não mais
precisa preocupar-se com o maior tormento da humanidade – qual seja, a
escassez.
Nossos desejos e demandas são infinitos;
a possibilidade de tê-los atendidos é limitada. Não há como fugir de
tal realidade, a menos, justamente, que já tenhamos virado a esquina do
falecimento. Enquanto há esperança de seguir respirando por tempo
indeterminado, portanto, não há como desprezar a necessidade
indefectível de despender boa parte do tempo que nos cabe neste corpo
humano buscando a subsistência (nossa e daqueles que de nós dependem).
Vejamos os cinco principais desgostos
(convertidos em conselhos) manifestados por pessoas no leito de morte,
transcritas no livro supracitado, e ponderemos, pois, sobre a real
chance de incorpora-los, ipsis litteris, ao modo de viver das
pessoas comuns. Mais: vejamos se não há uma boa dose de exagero e até,
pode-se dizer, de ingratidão com a evolução dos índices de
desenvolvimento humano registrados nos últimos 200 anos.
Gostaria de não ter trabalhado tanto
Difícil discordar aqui. Poder usufruir
de mais tempo disponível para as coisas boas da vida, desde viajar até
apenas ficar de papo para o ar, é presença constante nas listas de
realizações pessoais. Todos fazemos parte, felizmente, de uma geração
privilegiada, a qual, graças ao sacrifício de nossos antepassados, que
produziram, acumularam e nos transmitiram riqueza, pode se dar ao luxo
de dedicar menos horas trocando nosso trabalho pelos bens que precisamos
para sobreviver.
Nas últimas décadas do século XIX, a
jornada semanal de labor era de, em média, 61 horas (alguns precisavam
encarar de 70 a 80 horas no batente). Atualmente, nos países mais
ricos, ela é de 34 horas (43,5 no Brasil).
À medida que os investimentos em capital
— isto é, em máquinas, equipamentos e instalações mais modernas —
levaram a um aumento na produtividade marginal dos trabalhadores ao
longo do tempo, foi possível que uma quantidade menor de trabalho
gerasse os mesmos níveis de produção.
E na proporção que a concorrência por
mão-de-obra foi se tornando mais intensa, vários empregadores passaram a
competir pelos melhores empregados. E esta competição se deu de duas
maneiras: oferecendo salários maiores e horas de trabalho menores.
Ou seja, já foi muito mais difícil atingir este objetivo.
Nossos tataravós (que, por certo, proferiam este lamento com bem mais
frequência em suas partidas deste mundo) nos deixaram de legado os meios
para produzirmos o que precisamos (especialmente seu know-how) sem
“ralar” tanto quanto eles, e é nossa missão, portanto, deixar herança
semelhante a nossos filhos e netos (sempre lhes recordando, todavia, que
nada disso caiu do céu). Mas dar este presente aos brasileiros do
futuro só será possível se…trabalharmos mais e, principalmente, melhor.
Eis aí o paradoxo que nos desafia:
trabalhar menos só é possível após longos períodos trabalhando mais e
aprimorando nossos processos produtivos – seja considerando um único
indivíduo, seja nos tomando como nação ou espécie humana.
Eu queria ter mantido contato com meus amigos
Isso já foi uma tarefa bem mais árdua no
passado também. Afastar-se de alguém querido era quase sinônimo de
passar a desconhecer seu paradeiro. Vê-lo novamente em carne e osso
seria pouco provável. Conversar à distância menos ainda. Sequer se
estava vivo ou morto era dado saber.
Até que começam a surgir os serviços de
envios de telegramas e cartas (com a possibilidade de enviar fotos
impressas nelas), acompanhados da popularização da telefonia fixa e
móvel, seguidos, na sequência, pelo advento da internet e seus
aplicativos de trocas de mensagens e de conversa via áudio ou vídeo.
As redes sociais, a seu turno, vem a
permitir até mesmo rastrear por onde andam os conhecidos e manter-se
atualizados sobre suas vidas – às vezes até demais, é verdade.
Melhor: os meios de transporte coletivo
evoluem sobremaneira e encurtam as distâncias entre as pessoas, a preços
pagáveis até por cidadãos de menor renda (e deve melhorar em breve). Isso para não falar do Uber e o “empoderamento” daqueles que não tinham como pagar as caras corridas de táxi.
Ou seja, está muito mais fácil
hoje passar mais tempo (em presença física ou virtual) com os amigos e
familiares, ainda que eles vivam em cidades longínquas. É tudo uma questão de prioridade – ou de querer, em português claro.
Eu queria ter tido coragem de expressar meus sentimentos
Aqui a situação fica mais complexa. Por
um lado, temos uma superexposição de pontos de vista “permitidos” pela
cartilha politicamente correta, especialmente através da internet e seus
“especialistas de Facebook”; por outro, temos visões de mundo proibidas
por este mesmo censor.
Ou seja, ter coragem de expressar sentimentos só é um atributo indispensável se você for um conservador ou um liberal.
Caso sejas um “progressista”, será estimulado a todo instante a emitir
suas opiniões e “abrir o peito” falando sobre tudo o que pensa sem
pestanejar. Na verdade, é provável que você diga até mesmo coisas que
não pensa, apenas para se enquadrar no primeiro grupo e ficar livre da
patrulha que (na prática) odeia diversidade.
Quanto a expressar sentimentos de afeto
por outras pessoas, talvez este seja um problema no país de origem da
autora, mas não no Brasil – nem de longe. Aqui, em verdade, o pêndulo
extrapolou para o outro lado, e qualquer “bom dia” pode ser respondido
com um “eu te amo”, desvirtuando e tirando por completo o significado de
expressões do tipo.
Há pessoas que afirmam categoricamente
terem milhares de amigos amados, ou seja, vê-se que o conceito de amigo e
pessoa querida foi esticado a ponto de abarcar qualquer um. Pior que
deixar de expressar sentimentos, portanto, é expressar sentimentos
falsos apenas para pagar de popularzão. Talvez isto atormente ainda mais
o moribundo.
Eu queria ter vivido uma vida fiel a mim mesmo, não ao que os outros esperavam de mim
Podemos separar esta “fidelidade a si mesmo” em duas facetas: trabalho e vida amorosa.
O estágio atual atingido pela divisão do
trabalho, visando a especialização e a redução dos custos em escala,
aliado ao avanço da tecnologia, deram origem a profissões até pouco
atrás inexistentes, aumentando a probabilidade de que cada pessoa se
encaixe perfeitamente em um determinado ofício – não importando o sexo.
Some-se a isso o fato de que, há não
muito tempo, se fazia necessário que todos os membros de uma família
(incluindo os filhos pequenos) trabalhassem para garantir seu sustento.
Ainda que alguém do grupo fosse dotado de um talento diferenciado,
dificilmente ele seria descoberto e lapidado, pois estudar era um luxo
para muitos.
Não mais: agora boa parte dos jovens em
idade escolar estão estudando (só não me pergunte o quê), podendo ser
direcionados para ocupações condizentes com seus dons naturais.
Em relação à vida sentimental e à
sexualidade, jamais houve, em nosso hemisfério Ocidental, tamanha
liberdade para escolha (por vezes confundida com libertinagem). Na
verdade, qualquer mísera dúvida ou confusão da criança ou do
adolescente, em relação a seu comportamento e a suas preferências, já
tem se mostrado suficiente para convencê-los de que são homossexuais ou
transgêneros – sem chance de contraditório. Talvez aí é que resida o
verdadeiro problema – ao contrário do que costuma compreender o senso
comum.
Eu gostaria de ter me permitido ser mais feliz
Bom, aí é tudo uma questão de valorizar
as chamadas pequenas coisas da vida mesmo. Por mais clichê que possa
parecer tal frase, cada vez mais é notável que vidas “chatas e
enfadonhas”, cuidando da família e do papagaio, são desprezadas em nome
de “viver la vida loca“, redundando em altos índices de
depressão experimentados por pessoas que buscam um ideal de felicidade
distorcido e inatingível.
Conclusão:
Se você sentir que precisa aproveitar
mais ou de forma diferente sua vida, a fim de evitar arrependimentos
durante seus últimos suspiros, não jogue tudo para o alto, pois vai cair
na cabeça de alguém – possivelmente algum familiar (o pai do Filho
Pródigo da parábola que o diga); virar hippie não é tão fácil ou
agradável quanto parece; chutar o pau da barraca porque “a vida é curta”
pode dar dor no pé;
Faça transições dentro da velocidade que
as circunstâncias permitirem, sem desespero – o anjo da morte não está
olhando por cima do seu ombro (possivelmente o anjo da guarda lá
esteja); pense nas consequências deste processo para aqueles que o
cercam;
Se precisar de mais dinheiro para tais
mudanças, trabalhe e poupe, ou estude e persiga profissões mais bem
remuneradas; corra atrás das condições necessárias, e não as exija de
ninguém;
Se durante tais esforços pensando no
longo prazo você abotoar o paletó de madeira, paciência, mas é fato que o
amanhã sempre chega para 99.998%
de nós (basta observar a expectativa de vida mundial crescente), então
tenha razoável certeza de que irá colher os frutos de seus planejamento e
dedicação; na pior das hipóteses, seus filhos farão a colheita por
você, e estará (muito) bem justificada sua empreitada.
Por fim, reflita bem se sua vida é tão
ruim assim quanto parece ser – ou quanto tentam te convencer que é. Pode
ser que o seu filme (aquele que dizem passar diante dos olhos) seja
mais bonito do que você imagina…
--------------
* Atua como Auditor-Fiscal do Trabalho, e no exercício da profissão
constatou que, ao contrário do que poderia imaginar o senso comum, os
verdadeiros exploradores da população humilde NÃO são os empreendedores.
Formado na Escola de Especialistas de Aeronáutica (EEAR) como
Profissional do Tráfego Aéreo e Bacharel em Letras Português/Inglês pela
UFPR.
Fonte: http://rodrigoconstantino.com/artigos/o-leito-de-morte-nao-e-o-melhor-dos-conselheiros/?utm_medium=feed&utm_source=feedpress.me&utm_campaign=Feed%3A+rconstantino
Nenhum comentário:
Postar um comentário