sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Nunca fomos tão solitário

Para Noreena Hertz, no livro “O século da solidão”, a interação social está em risco na era do individualismo tecnológico, e os políticos extremistas se aproveitam disso — Foto: Divulgação

Para Noreena Hertz, no livro “O século da solidão”, a interação social está em risco na era do individualismo tecnológico, e os políticos extremistas se aproveitam disso — Foto: Divulgação

Economista britânica Noreena Hertz diz que tecnologia tem contribuído para criar multidão de pessoas sós, o que alimenta o populismo

Por Vivian Oswald — Para o Valor, de Londres

O mundo pode estar prestes a testemunhar uma nova revolução digital, se os prognósticos da indústria de tecnologia para o chamado metaverso se confirmarem. Do Vale do Silício, nos Estados Unidos, a Shenzhen, seu equivalente chinês, o potencial de negócios bilionários é o combustível que move as empresas que disputam a conquista das novas fronteiras da internet. Não por acaso, o conceito de ficção científica que levou o Facebook a adotar para si o nome “Meta” despertou rapidamente o tal “espírito animal” dos mercados.

O frenesi, contudo, é visto com desconfiança por quem se debruça sobre as conexões humanas (ou a falta delas) e seu impacto na economia. Para Noreena Hertz, badalada economista  britânica, o metaverso vai aprofundar o que ela considera um dos grandes males do século XXI: a solidão. E nós nunca fomos tão solitários, segundo ela, que acaba de lançar no Brasil o livro “O século da solidão” (Record, trad. Marina Vargas, 462 págs., R$ 89,90).

“É uma perspectiva aterrorizante. Será que devemos deixar que avatares substituam a interação pessoal, cara a cara? Devemos nos perguntar quem vai determinar o nosso futuro. Será que queremos que seja o [Mark] Zuckerberg? Definitivamente, não”, diz ao Valor.

Semanas antes, a acadêmica já havia descrito o estranhamento que lhe causou a primeira experiência profissional no metaverso. “Aquilo é muito solitário”, queixou-se a uma plateia reduzida na primeira edição presencial do Festival Literário de Oxford desde o início da pandemia.

Contavam-se nos dedos as cadeiras ocupadas no Sheldonian, o emblemático teatro do século XVII da Universidade de Oxford. Não foi por falta de interesse pela palestrante. Eleita pela “Vogue” uma das mulheres mais inspiradoras do mundo e pelo “The Observer” um dos maiores pensadores da nossa era, Hertz é uma best-seller. Os assentos vazios eram consequência do vendaval que varria as ruas da cidade naquela manhã e da hesitação que as pessoas têm de voltar a frequentar eventos com público de verdade, sobretudo quando o número de contaminações por covid-19 volta a disparar na Europa.

Aliás, segundo ela, as pessoas se resignaram muito depressa a assistir e consumir o mundo a distância, sem contatos, por cliques solitários; a prova cabal de que esse processo de isolamento já estava em curso. Foi apenas agravado pela pandemia nos últimos quase dois anos.

 

A crescente desconexão entre as pessoas criou um exército de centenas de milhões de solitários pelo planeta e está por trás de um sem-número de desafios da atualidade. A ascensão da extrema direita é um deles. “Solidão e populismo andam de braços dados”, afirma.

Esse foi justamente o elo comum que encontrou entre os apoiadores de lideranças políticas durante os cinco anos em que saiu em busca de uma explicação para o avanço rápido da direita no espectro político mundial. “Não era classe, educação, gênero ou idade”, conta. “Na verdade, quanto mais eu pesquisava e entrevistava pessoas, mais percebia que se tratava de um estado emocional. Eram eleitores que se sentiam fundamentalmente desconectados, invisíveis, não ouvidos, sós. Quem votava em Donald Trump tinha muito menos amigos do que quem votava em Hillary Clinton. Foi aí que entendi que as emoções, muito mais do que fatos, orientam as escolhas das pessoas, e que os políticos que falaram explicitamente com os solitários se saíram incrivelmente bem.”

E a extrema direita aprendeu rápido que isso garantia votos. “Historicamente, contudo, os partidos de centro e esquerda sempre foram os primeiros a entender as pessoas que se sentiam marginalizadas, economicamente esquecidas”, diz.

Segundo Hertz, a extrema direita usa a ideia de comunidade como arma, que mira nos solitários. Foi assim com a francesa Marine Le Pen, o americano Trump e o brasileiro Jair Bolsonaro. Os comícios eram grandes festas, com jogos, bebidas e distribuição de coletes e bonés que os identificavam como membros de uma mesma tribo.

“Oferecem uma espécie de teatro de comunidade, que é muito excludente. A narrativa do ‘nós’ contra ‘eles’ agrada. Permite que se agarrem à ideia do ‘nós’. Atinge diretamente quem se sente desconectado de amigos, da família, do empregador, dos outros cidadãos e dos políticos tradicionais, que, francamente, deixaram a desejar na última década”, diz.

A extrema direita opera a partir da divisão e não da união da sociedade, ao explorar, por exemplo, tensões raciais, religiosas e étnicas. “Pessoas solitárias, ansiosas e desconfiadas, desesperadas para se sentir incluídas, que veem cobras constantemente, são a sua audiência real - e a mais vulnerável”, diz.

A estratégia funciona porque essas pessoas veriam o mundo de maneira desproporcionalmente hostil. “Vimos isso nas pesquisas. Quanto mais tempo um camundongo é deixado em isolamento em uma gaiola, mais agressivo ele se torna em relação a novos camundongos”, relata. Não por acaso, Hertz lembra que dados recentes publicados no Reino Unido mostram que as crianças estão mais violentas agora, após os sucessivos confinamentos.

Apesar da derrota recente de Trump e de outros líderes de extrema direita pelo mundo, a professora admite que é cedo para dizer que a onda que alçou esses personagens ao poder perdeu o apoio. O futuro deles vai depender de como lidaram com as diferentes crises provocadas pela pandemia, sobretudo a econômica. “Terão de mostrar se tiveram competência para salvar empregos e vidas.”

 

Esta pode se apresentar como uma nova janela de oportunidade, “até porque é sabido que a solidão aumentou de maneira significativa durante a pandemia”. A maneira como vão conduzir a narrativa pós-pandemia - habilidade que provaram  dominar antes dos partidos tradicionais - será decisiva. Na Holanda, Portugal e Chipre, segundo Hertz, a popularidade das legendas de extrema direita cresceu no último mês, segundo dados da Bloomberg.

Nada disso significa que os partidos tradicionais estejam fora do jogo. O momento atual pode ser uma oportunidade para eles também. Adaptação aos novos tempos, contudo, pode significar uma radicalização de posições, como ocorreu na Dinamarca, onde os partidos de centro adotaram uma retórica anti-imigração para ocupar espaços da extrema-direita ascendente.

“É um risco, um desfecho muito deprimente. Há uma oportunidade para a política da esperança, no lugar da política do ódio. Mas essa esperança não pode ser construída em castelos de areia. Precisa considerar os elementos da solidão, com todas suas motivações estruturais. Muitas comunidades se sentem abandonadas desde a crise financeira de 2008”, diz.

As causas da solidão de dimensão histórica estão na urbanização, nas novas tecnologias, nas redes sociais, no consumo excessivo e no individualismo que vem com ele, no fim das atividades em comunidade, das associações, sindicatos, das bibliotecas públicas (600 fecharam só no Reino Unido nos últimos dez anos). O neoliberalismo tem sua grande parcela de culpa, acusa Hertz, pois precipitou o aumento da disparidade de renda, criou uma camada da população que se sente deixada para trás, um imenso contingente de “perdedores” numa sociedade em que só os “vencedores” têm vez.

Ela ressalta que não tem nada contra o capitalismo, muito pelo contrário, mas critica o modelo disseminado a partir da década de 1980 sob a batuta do presidente americano Ronald Regan e da primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, a Dama de Ferro. Ao garantir mais poder e liberdade aos grandes negócios e empresas, o neoliberalismo permitiu que os mercados ditassem as regras do jogo, marginalizando ainda mais o cidadão comum. Criou uma sociedade consumista e individualista onde a competição suplantou a cooperação.

Por mais que veja luz no fim do túnel, os cenários traçados pela acadêmica britânica - todos amarrados em inúmeras pesquisas e conduzidos com um texto leve - trazem perspectivas de futuro que dão medo. No Brasil, segundo ela, uma pesquisa do instituto Ipsos identificou que 50% das pessoas se sentem solitárias o tempo todo ou em parte do momento. A pandemia aprofundou a desconexão, ceifou empregos, intensificou as desigualdades. “A pobreza aumenta a solidão”, afirma.

As facilidades oferecidas pelas novas tecnologias reduziram os contatos humanos. Segundo Hertz, são inegáveis os danos que redes sociais causaram à sociedade. “Estamos falando de disseminação de fake news, de narrativas falsas, das inverdades de líderes populistas, de divisão e polarização”, afirma.

Há países que reconhecem a necessidade de ação urgente. O Reino Unido, por exemplo, estuda uma nova legislação que pode impor penalidades às companhias de tecnologia e até responsabilizar diretamente seus executivos. “As gigantes de tecnologia lucram com o ódio, com a sua capacidade de roubar a nossa atenção do mundo real de interação, de nos manter viciados nas telas. E eles fazem muito pouco para evitar tudo isso”, afirma.

Embora não responda claramente se se sente solitária como indivíduo, Hertz garante que não se sente só ao pregar a necessária reconexão que vai garantir a reconstrução da economia global depois da pandemia. “Meu livro foi lançado há 14 meses e posso lhe dizer que dou entrevistas sobre ele todos os dias”, diz.

Muitos governos, e vários a têm procurado, já teriam acordado para o fato de que a solidão impõe um custo social e financeiro cada vez mais alto, além de ser uma ameaça à democracia. Afeta a saúde mental e física dos cidadãos. “O efeito da solidão sobre um indivíduo é o mesmo que se ele fumasse 15 cigarros por dia. São custos imensos para os orçamentos de saúde pública”, diz Hertz. Trabalhadores solitários produzem menos e largam o emprego mais facilmente.

“Antes da pandemia, 40% deles se sentiam solitários. Um em cinco diz não ter um único amigo no trabalho. Só isso já significa uma importante sangria para a economia global”, destaca. Talvez por todas estas razões a solidão seja tema recorrente até mesmo no Fórum Econômico Mundial de Davos, onde Hertz costuma ser chamada para falar.

A reconexão exigirá esforços de governos, do setor privado e sobretudo dos indivíduos. Ela precisa ser construída no dia a dia, “nos 30 segundos de contato com o verdureiro, na reativação das bibliotecas comunitárias, da vida em comunidade”. É nesse microcosmo, segundo ela, que o cidadão aprende a praticar a democracia, a se solidarizar e ouvir o outro.

As bases do mundo pós-pandêmico, e isto está claro com as novas variantes da covid-19 surgidas nos países que tiveram menos acesso a vacinas, vão depender ainda mais de solidariedade e cooperação. “A sociedade egoísta, em que tudo gira ao meu redor, em que as pessoas sentem que precisam tomar conta de si porque ninguém o fará, será sempre inevitavelmente solitária.”

Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2021/12/10/nunca-fomos-tao-solitarios.ghtml

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