Após 33 anos, Pitanguy e Sant'Ana, cirurgião e paciente,
se encontram para falar de beleza, amizade e Deus
Em primeiro lugar, a intenção foi fazer uma entrevista entre um operado e seu cirurgião.
Só que o meu cirurgião, no caso, é uma divindade. E foi um grande prazer entrevistá-lo em sua visita recente a Porto Alegre. Encontrei um Ivo Pitanguy, aos 84 anos, disposto, mentalmente ágil e cheio de humanidades na sua mente e no seu coração.
Ele se recordou com impressionante nitidez daquele dia, 33 anos atrás, em que operou meu rosto na sua clínica da Rua Dona Mariana, bairro Botafogo, no Rio de Janeiro. Sabe Deus o quanto me foi feliz e realizador este encontro com um dos maiores cirurgiões mundiais de todos os tempos.
Eis a entrevista*. ECCE HOMO!
Paulo Sant’Ana – Eu ia caminhando para a sala de cirurgia e o senhor caminhava ao meu lado. Eu ia fazer um lifting, porque havia tido uma paralisia no rosto. Então eu lhe fiz um apelo: doutor Ivo, aproveite para tirar as quatro rugas da minha testa. O senhor disse: não, isso é muito trabalhoso, sai muito sangue. Quando acordei da cirurgia, não havia as quatro rugas.
Ivo Pitanguy – Temos uma longa história juntos. Eu me lembro como se fosse ontem. O interessante é que você sempre teve uma grande alegria de viver. E, no momento em que o conheci, vi que essa alegria que sentimos juntos se harmonizava. Me senti na posição de amigo querendo fazer, quem sabe, o que eu não tinha pensado. Então, na calma da sala eu procurei interpretá-lo e senti que poderia te dar um pouquinho mais do que tínhamos conversado. Aquilo me deu uma grande alegria.
Sant’Ana – É lícito mexer-se na obra criada por Deus, o corpo humano, ou senhor considera que o cirurgião é um agente de Deus?
Pitanguy - Somos pequenos agentes. Deus tem outros agentes mais importantes do que nós. Deus é o todo. Deus, na realidade, nos deu, nos criou, e nós somos uma parte da natureza que é o conjunto do que é Deus. É muito difícil definir o que não é Deus, é mais fácil achar que tudo é um pouco de Deus. Então, é sorte sabermos alguma coisa na vida. Você como grande jornalista, eu como cirurgião. Procuro dar o melhor de mim mesmo. É um pouco do que Deus nos deu também.
Sant’Ana – O senhor tem convicção de que é Deus esse ímã, essa força superior que está em todos os lugares, que preside a realão dos homens?
Pitanguy - Acho que existe uma grande orquestra. Nós somos um dos instrumentos que, dentro dessa orquestra, procuram a harmonia.
Sant’Ana – Eu tenho uma frase que diz: a velhice é a pior doença. Eu pergunto: o cirurgião plástico é o melhor médico para a pior doença?
Pitanguy - O que o ser humano tem que fazer é viver. Nós todos temos vários platôs de vida, são platôs que vamos subindo. Vamos passando um platô e encontramos, em um determinado momento, determinadas pessoas, determinados instantes de vida. E depois existe um outro platô mais alto. O importante é não acharmos que chegamos ao cume. Temos sempre quer procurar um caminho.
Pitanguy - Todos somos um pouco o avanço da tecnologia. Eu, como cardíaco, tenho uma válvula Carpentier, que é um avanço da medicina. No nosso campo, somos muito artesanais. Não estamos dentro da grande maquinaria da cirurgia. O que fazemos é uma cirurgia que depende muito da interpretação e da criatividade do cirurgião.
"É muito difícil definir o que não é Deus,
é mais fácil achar que tudo é um pouco de Deus".
Sant’Ana – Por que o senhor escolheu a cirurgia plástica?
Pitanguy - Comecei jovem como cirurgião geral em um hospital de urgência. Meu pai era cirurgião, e eu talvez tenha sido muito influenciado por isso. Vias as pessoas que chegavam, percebi que a primeira função do médico era salvar a vida. Depois vi que muitas pessoas ficavam estigmantizadas, não se sentiam totalmente dentro de sua própria estrutura, porque ficava uma cicatriz ou uma deformidade. O ser humano não é só a parte somática. A sua estrutura de forma é toda uma parte anímica, psicológica. Essa energia que flui é o equilíbrio entre as partes.
Sant’Ana – A cirurgia plástica serve, então, a outros valores além da beleza?
Pitanguy - O que é reparador e o que é estético se confundem. A criança que nasce com lábio leporino, que nasce com o lábio aberto. A primeira função é aproximar aquele lábio, portanto, é reparadora. Mas se depois daquilo houver uma mudança de um lado para o outro, e o cirurgião procurar então integrar socialmente aquela criança, fará uma cirurgia estética. Uma senhora que teve muitos filhos, tem um abdômen que se distendeu. O cirurgião corrige o abdômen, aproxima os músculos, faz uma cirurgia reparadora. Mas também não deixa de ser estética.
Sant’Ana – O senhor se considera, além de cirurgião, um clínico?
Pitanguy - Me considero médico. O médico é clínico antes de ser cirurgião. Procuro entender as pessoas e, ao procurar entendê-las, procuro fazer o que há de mais nosbre no ser humano, que é me irmanar com o outro para pode ajudá-lo. A medicina não é uma ciência exata. A medicina é uma arte aplicada.
Sant’Ana – A Santa Casa embeleza algumas mulheres pobres?
Pitanguy - Algumas, não. Tratamos centenas de milhares de pessoas. Temos uma assistente social, uma psicóloga, temos dietólogas, temos uma estrutura montada muito grande. São vários professores associados e eu sou responsável. Atendemos a população carente do Rio tanto em cirurgia estética quanto reparadora, sem diferenças.
Sant’Ana – Dizem alguns estetas que a personalidade de uma pessoa, no rosto dela, está no nariz.
Pitanguy - O que expressa a personalidade na face é o que está por dentro das pessoas. Há pessoas sem harmonia na face que têm uma grande delicadeza interna e nos transmitem beleza na sua convivência.
Sant’Ana – Alguém já lhe pediu para ficar feio?
Pitanguy - Não. Acho que a feiúra é um apanágio não muito procurado. Como dizia o filósofo Francis Hutcheson, o belo é o verdadeiro. O bom é o verdadeiro. Agora, a interpretação do belo representa apenas a interpretação na beleza no seu sentido simples. Ela é um conjunto que emana também de dentro da alma, de dentro da pessoa.
Sant’Ana – Há casos em que o senhor aconselha a pessoa a não fazer a cirurgia?
Pitanguy - Muitas vezes a pessoa chega, você vê que é normal. Mas, por algum motivo, ela não gosta da sua cara. É muito perigoso fazer alguma coisa nesses casos. Muitas vezes, quando uma pessoa quer alguma coisa além do que você poderia dar, o melhor é não operá-la. O melhor é um tratamento psicoterapêutico.
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*A entrevista completa está na ZH impressa.
Fonte: ZH impressa, 26/09/2010.
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