Rubem Alves*
Imagem da Internet
“As palavras e os sons não serão por acaso pontes etéreas e ilusórias
entre coisas que estão separadas eternamente?
Sons e nomes não foram dados às coisas para que
o homem possa achá-las mais refrescantes?
Falar é uma deliciosa tolice,
com a fala o homem dança sobre as coisas.”
(Nietzsche)
Recebi um presente de uma mulher que desconheço. Veio embrulhado em papel bonito. Abri. Era um quadrinho bordado a ponto de cruz. Está pendurado à minha frente. Nele está escrito: “Deus abençoe esta bagunça”. Não sei como ela adivinhou pois ela não me conhecia e nunca havia entrado no meu escritório. Mas o fato é que ela adivinhou que as coisas que eu escrevia nasciam de uma grande bagunça. Penso bagunçadamente...
Faz tempo publiquei dois livros com o nome de Quarto de Badulaques. Quartos de badulaques eram quartos de bagunça, onde as coisas eram colocadas sem nenhuma ordem. Eles eram a delícia das crianças. Os quartos arrumados amarram a imaginação. A ordem tem uma voz imperativa. Como se ela gritasse: “É assim que as coisas devem estar...” A ordem é autoritária.
A bagunça, ao contrário, é uma voz permissiva, não há lugar certo para os objetos. O espaço está aberto a muitas possibilidades. A ordem marcha. A imaginação dança.
Ela era uma mulher bonita, longos cabelos claros. Mas o seu corpo era morada de um demônio sedutor e terrível chamado “compulsão pela ordem”. Ela só tinha um pouco de tranquilidade quando a empregada ia embora, os filhos estavam na escola e o marido ainda não voltara do trabalho. Estava sozinha na casa. Tinha então a certeza de que nenhum objeto sairia do lugar – porque não havia ninguém que o movesse.
Kurt Goldstein (1942), neurologista, fez um estudo sobre os efeitos das lesões no cérebro de feridos de guerra. Os efeitos variavam segundo a parte do cérebro que havia sido lesada. E ele observou que, quando uma certa parte do cérebro era lesada o ferido apresentava uma curiosa alteração de comportamento: ele se tornava obsessivo em relação à ordem no seu ambiente. Nas entrevistas ele passava o tempo todo compulsivamente organizando os objetos que se encontravam sobre a mesa, não suportando qualquer alteração na sua posição. Esse fenômeno levou-o à conclusão de que, antes do ferimento, quando o cérebro estava inteiro, de posse de todas as suas funções, ele não precisava de uma ordem material, objetiva, para organizar seu mundo. O cérebro convivia bem com a desordem, ele percebia ordem na desordem. Mas quando o cérebro era lesado e suas funções normais prejudicadas, o cérebro necessitava de uma “bengala” em que apoiar o seu comportamento.
Esse experimento de Goldstein sugere que a “bagunça” não significa necessariamente um defeito de caráter e de educação. Significa, possivelmente, que o bagunceiro põe uma ordem virtual na desordem objetiva.
A delícia de um quebra-cabeças está precisamente na “bagunça” das peças. Quando o trabalho termina e todas as peças estão colocadas em ordem o “brinquedo” acaba e a inteligência se assenta na poltrona... É isso que acontece com aquelas pessoas que colam o quebra-cabeças depois de armado. Ele nunca mais será brinquedo. Nunca mais fará pensar. Hegel escreveu, no prefácio à Fenomenologia de Espírito, que o triunfo da razão é uma orgia bacanal na qual nem um dos participantes está sóbrio E Nietzsche confirma: “Desconfio de todos os sistematizadores e fujo deles. O desejo de construir um sistema é falta de integridade. Digo-lhes: é preciso ter caos dentro de si mesmo a fim de dar à luz uma estrela dançante. Digo-lhes: vocês ainda têm caos dentro de vocês.
_________________________________
* Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio Popular online, 26/09/2010
Nenhum comentário:
Postar um comentário