Luiz Sérgio Henriques*
Um paradoxo está na origem da moderna esquerda brasileira, aquela que tomou forma nos anos da resistência ao regime instaurado em 1964. Deixemos de lado a aventura da luta armada entre os anos 1960 e 1970, a qual, independentemente das boas intenções dos seus partidários - e, muito particularmente, sem tocar na infâmia da tortura, em certo momento tornada prática de Estado -, nunca esteve à altura do desafio imposto pela acelerada modernização conservadora efetivada pelo regime autoritário, no sentido da expansão e do aprofundamento de uma economia e de uma sociedade verdadeiramente capitalistas.
A luta armada, naquele contexto, representou antes um "colapso da razão", para usar a frase cortante de um estudioso do porte de Gildo Marçal Brandão. Nada de unidade entre teoria e prática, mas, na verdade, anulação de qualquer teoria significativa sobre o País, em nome de um ativismo revolucionário que só poderia ter conduzido, como conduziu, à derrota.
Mas abandonemos este tema e nos concentremos, sobretudo, nas condições em que se deu a passagem da "primeira" para a "segunda" esquerda. Consideramos aqui como primeira esquerda, ou esquerda histórica, aquela que teve sua maior expressão no velho PCB, o partidão, e que suscitou adesões e repulsas apaixonadas, tendo marcado a vida política e intelectual do País, apesar dos prolongados e muitas vezes duríssimos períodos de clandestinidade. E como segunda esquerda, aquela que, sob a direção quase incontrastada de Lula - como antes a de Luís Carlos Prestes -, reaglutinaria o "novo sindicalismo", grupos remanescentes da luta armada e amplos setores do catolicismo popular num partido presumidamente pós-leninista, que em 2002 alcançaria a Presidência da República.
Conviveram no velho PCB almas distintas - e aqui me socorro de outra expressão de Gildo Marçal. Uma delas buscava inserir legitimamente os subalternos no jogo político, e não custa lembrar a atuação valiosa dos comunistas na Constituinte de 1946. A outra alma, contudo, era insurrecional: sua matriz tanto podia residir na marca de origem - o pertencimento à III Internacional de extração marxista-leninista - quanto na tradição nativa do golpismo, bastando mencionar a influência tenentista na canhestra tentativa de assalto ao poder em 1935.
O fato é que, no imediato pós-1964, profundamente traumatizado, o PCB encontrou em si forças que ajudaram a definir uma eficaz resistência democrática ao autoritarismo. Uma resistência que, pela própria natureza, só teria êxito se fosse muito além da limitada força do próprio PCB, treinado, de todo modo, naquilo que se chamou significativamente de "moderação na adversidade".
Toda essa tensão propriamente política - voltada para a construção de uma ampla frente democrática e a ruptura com o regime por meio da convocação de uma Constituinte, tal como de fato ocorreria em 1986-1988 - constituiu, paradoxalmente, o último grande serviço prestado pelo velho PCB à democracia brasileira. Em meio às suas múltiplas divisões, intelectuais desse partido chegaram a admitir, no final do regime autoritário, a luminosa ideia de que a democracia política era um "valor universal" - e me valho, como é sabido, do título de um ensaio de Carlos Nelson Coutinho, de inspiração gramsciana e berlingueriana.
A vitória estratégica do PCB, por uma dessas duras réplicas da História, foi contemporânea da sua definitiva ultrapassagem pela "segunda esquerda". E esta não nasceu generosa com a forma política que se esvaziava. Ao contrário, desde o começo se fazia portadora de uma narrativa com características "fundacionais": a história do movimento operário teria começado no moderno ABC, pela primeira vez livre da tutela do Estado, da armadilha "populista" e das alianças pluriclassistas.
Até este ponto se pode dizer que se tratava de mais uma das intermináveis querelas entre partidos de esquerda e que para o novo partido se afirmar seriam inevitáveis cotoveladas e pisões. Mera exigência do "mercado político", tão impiedoso quanto o mercado propriamente econômico. No entanto, vendo-se bem, era mais do que isso. Na raiz do PT, creio não exagerar se identifico elementos da "antipolítica": mesmo jogando-se competitivamente nas disputas eleitorais, e com laivos de exclusivismo, esse partido se apresentava, invariavelmente, como expressão pura do social contra a mediação representada pelas formas elitistas da política. Uma expressão de protesto radical, nascido das entranhas da sociedade, "contra tudo o que está aí", como se a História do País fosse um equívoco de 500 anos, a ser corrigido por um novo e incorruptível cavaleiro da esperança.
Difícil dizer ainda hoje se o principal partido do País, ocupante da Presidência da República num período de renovado dinamismo econômico e social, com maciça expansão das camadas médias, poderia assumir como sua a concepção do valor universal da democracia, com tudo o que isso implica em termos de aceitação do Estado Democrático de Direito como o terreno mais propício aos subalternos. Mas não só isso: precisamente como um valor em si mesmo, que requer, entre outros pontos, a "recíproca legitimação dos contendores" e o cabal respeito ao regime de freios e contrapesos que assinala toda comunidade política madura, capaz de resolver pacificamente seus inumeráveis conflitos num sentido de liberdade dos indivíduos e plena incorporação dos "de baixo".
Seja como for, trata-se de exigência a ser feita com vigor ao partido no poder e, de resto, com igual intensidade, a todos os demais. Sem dúvida, seria bem mais confortador ter a certeza de que o principal representante da "segunda esquerda" é também o "partido da Constituição" - ainda que, há apenas duas décadas, tenha votado contra o seu texto final.
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* ENSAÍSTA, É TRADUTOR E UM DOS ORGANIZADORES DAS OBRAS DE ANTONIO GRAMSCI EM PORTUGUÊS (WWW.GRAMSCI.ORG)
FONTE: Estadão online, 26/09/2010
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