domingo, 19 de setembro de 2010

O velho amor...

Rubem Alves*

Imagem da Internet - Cachimbo tipo Calabash usado por Sherlock Holmes    

Vou falar sobre um velho amor, amor que me foi sempre fiel. Ele não me abandonou. Fui eu que o abandonei. A despeito da minha ingratidão ele continua a me esperar com os mesmos prazeres de antigamente, se eu resolver voltar.
Meu velho amor é um cachimbo. Ele está guardado dentro de uma gaveta, faz anos, o meu último cachimbo. Nunca mais vou usá-lo, mas não vou dá-lo para ninguém nem vou jogá-lo fora. Ele foi um fiel amigo por muito tempo; deu-me momentos de tranqüilidade e prazer. O cachimbo, por oposição ao cigarro, basta tê-lo nas mãos para que a alma se acalme
O perfume do cachimbo provoca em mim memórias felizes. Eu insisto na palavra “perfume”. Cachimbos não cheiram. Eles são objetos mágicos semelhantes aos turíbulos que nas igrejas purificam o ambiente com o seu perfume.
O poeta norte-americano E.E. Cummings foi convidado pela Universidade de Harvard para dar uma série de seis conferências. Ele lhes deu o título insólito de Six nonlectures, Seis des-preleções. Essas seis des-preleções foram publicadas e são um dos livros mais deliciosos que jamais li. Levíssimo, cheio de humor, de poesia e sabedoria, além de ser comoventemente pessoal. Falando sobre sua iniciação à poesia — muito embora a poesia morasse nele desde antes do seu nascimento — ele relata um encontro que teve com o professor Royce que desejava apresentar-lhe alguns poemas de Dante Gabriel Rossetti. E ele descreve esse lugar que o marcou, o mestre lendo poesia para um menino. Disse ele: “era um escritório minúsculo que tinha um cheiro delicioso de fumo de cachimbo.”
Meu pai fumava cachimbo. De todas as fotografias que tenho dele a que mais me comove é uma em que ele está assentado numa poltrona, a mão direita segurando o cachimbo na boca. Não houve pose porque a foto foi tomada sem que ele soubesse. O olhar perdido, ele estava fora do mundo, subindo confundido com as espirais de fumaça. Quem fuma cachimbo corre esse risco, o de descobrir-se retirado do mundo.
A fumaça é um símbolo filosófico, talvez mesmo religioso. Ela é metáfora da vida. Nela estão misturados o Ser e o Nada, a vida e a morte. A fumaça é o Ser que só o é na medida em que deixa de ser. É o rio de Heráclito na sua forma vertical e etérea.
Cigarro e cachimbo: tão parecidos, tão diferentes.
Cigarros são entidades efêmeras. Têm vida curta e morrem de forma indigna, apagados à força, espremidos no fundo de um cinzeiro onde ficam à espera de alguém que os faça desaparecer numa privada, porque seus cadáveres são feios e fedem. Passados alguns minutos acende-se um outro cigarro e tudo se repete.
A psicologia do cigarro é a psicologia da infidelidade: esgotado o prazer, o objeto é jogado fora e trocado por um outro que, por sua vez, será jogado fora também... Não se tem saudades de um cigarro.
Mas pode-se ter saudades de um cachimbo... Quem fuma cachimbo pode dizer: “o meu cachimbo...” O cachimbo é um companheiro. O seu dono cuida dele, amorosamente. A psicologia do cachimbo é a psicologia da lealdade, dos relacionamentos longos. Aqueles que fumam cachimbo sabem os segredos do amor fiel.
Fuma-se um cigarro em meio da ação, a ação acontecendo. O tempo do cigarro é o tempo dos pregões das bolsas de valores.
O tempo do cachimbo é calmo. A lentidão da fumaça que sobe tranqüiliza um mundo agitado. Quando se fuma cachimbo as coisas adormecem sem sobressaltos. Fuma-se o cachimbo em meio ao “fazer nada”. “Fazer nada”, “wu-wei”, a sabedoria suprema segundo o taoísmo, deixar-se levar, abandonar-se ao curso da vida... Quem fuma cachimbo descansa e medita.
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* Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: CorreioPopular online, 19/09/2010

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