segunda-feira, 20 de setembro de 2010

O poder nanofísico e a sujeição do indivíduo

 Entrevista especial com Karla Saraiva*
Imagem da Internet

Professores tornam-se especialistas na arte de governar, sobretudo na modalidade de ensino à distância. Nos passos da modernidade líquida, a sujeição também se liquefaz, afirma a engenheira e doutora em educação.
“Os usos das tecnologias nos processos educativos são variados, amplos e estão em permanente reconfiguração”, revela a engenheira civil Karla Saraiva, na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. Para ela, a internet é um marco seja em relação aos processos sociais, seja em termos do uso de tecnologias com viés educativo.
Ela afirma que a “principal modificação que a internet está trazendo para dentro das salas de aula são o que se pode chamar de novos sujeitos”. Trata-se de “alunos que têm um entendimento do mundo e modos de viver bastante diferentes daqueles de gerações anteriores, sendo que essas transformações estão profundamente ligadas ao uso das tecnologias de comunicação e informação atuais”.
Ainda sobre o tema da subjetividade, Karla aponta que, “na modernidade líquida, a sujeição também se torna líquida”. Essa sujeição acontece de forma sutil e, por isso mesmo, muitíssimo mais eficaz: “O poder microfísico de que nos fala Foucault, torna-se, possivelmente, nanofísico hoje”.
E finaliza: “o uso das tecnologias educacionais encontra-se articulado com iniciativas para fazerem do professor um especialista nas artes de governar, o que é particularmente visível quando se trata do papel do professor na educação a distância”.
Esse tema foi objeto do minicurso As tecnologias nos processos educativos e a sujeição do indivíduo, ministrado por Karla Saraiva em 15-09-2010, dentro da programação do XI Simpósio Internacional IHU: o (des)governo biopolítico da vida humana.

IHU On-Line - Como se dá a inserção das tecnologias nos processos educativosKarla Saraiva - Os usos das tecnologias nos processos educativos são variados, amplos e estão em permanente reconfiguração. Focando mais especificamente nas tecnologias digitais, elas são introduzidas ainda na década de 1970, com softwares educativos como o Logo. Mas seu uso, no Brasil, efetivamente se expande a partir da década de 1990, com a entrada da internet comercial no país.
A internet, na minha opinião, funciona como um divisor de águas, tanto em relação a processos sociais de maior amplitude, como em termos de uso de tecnologias com fins educativos. É com a internet que surge a noção de inclusão digital, pois somente a partir dela que se passa a pensar como excluídos aqueles que não usam computadores. A internet torna as tecnologias digitais um aspecto importante da vida social. A partir daí, a preocupação de colocar laboratórios de informática e dar acesso aos estudantes ao uso de computadores cresce rapidamente. No âmbito governamental, surge a preocupação de informatizar todas as escolas públicas e, até mesmo, de providenciar computadores portáteis para os alunos.
Atualmente, as tecnologias digitais são utilizadas tanto como apoio ao ensino presencial, quanto como meio para a realização de cursos à distância. Cabe também salientar que, apesar de haver uma profusão de programas e sítios desenvolvidos com propósitos pedagógicos, muitas atividades que são propostas pelos professores utilizam recursos mais amplos. Muitos ainda se atêm a utilizar a internet como uma grande biblioteca, pedindo aos alunos realizarem pesquisas. A mim parece que seria muito mais efetivo que os professores pensassem trabalhos para o exercício do senso crítico em relação à informação. Em tempos de cibercultura, o problema não é obter informações, mas saber lidar com elas e avaliá-las.
Contudo, avança o entendimento que existe Porém, cabe salientar que para pensar usos mais sofisticados e complexos desse meio é necessário que o professor tenha se apropriado dele, conheça e utilize os múltiplos recursos disponíveis. Professores habituados a utilizar a internet vêm introduzindo formas criativas de seu uso educacional, utilizando ferramentas como redes sociais, o YouTube, blogs e Twitter. Assim como observamos um permanente avanço nos hardwares e softwares, também o uso educacional das tecnologias digitais se transforma. Nos últimos anos, apareceram as chamadas lousas eletrônicas, que são quadros sobre o qual o professor pode escrever e projetar imagens ou sítios da internet. Também os celulares, que são até hoje os grandes vilões da sala de aula contemporânea, estão sendo reabilitados. Celulares com acesso à internet começam a ser utilizados como material pedagógico em algumas escolas. Enfim, como já afirmei, os usos são variados, impossíveis de serem todos descritos e, mesmo, conhecidos. E estão em permanente transformação.

IHU On-Line - Nesse sentido, o que muda na educação em tempos de internet?
Karla Saraiva - Creio que a principal mudança que a internet vem promovendo não seja, neste momento, por meio de seu uso nas atividades didático-pedagógicas. A principal modificação que a internet está trazendo para dentro das salas de aula são o que eu chamaria de “novos sujeitos”. Ou seja, alunos que têm um entendimento do mundo e modos de viver bastante diferentes daqueles de gerações anteriores, sendo que estas transformações estão profundamente ligadas ao uso das tecnologias de comunicação e informação atuais. Televisões com uma infinidade de canais; internet que permite um acesso virtualmente ilimitado a informações e, também, canais de comunicação instantâneos com os mais diversos indivíduos; celulares com recursos que fazem convergir o telefone, a internet e a TV em um único aparelho são alguns dos artefatos que os nossos alunos vêm acessando e que proporcionam experiências que modificam seus comportamentos, valores e maneiras de ser. Embora isso possa ser especialmente evidente entre alunos de classes mais privilegiadas, também isso está presente entre aqueles oriundos de famílias com menores recursos. Seja porque encontram alternativas para tomar contato com essas tecnologias, como, por exemplo, por meio de lan houses (cybercafés), seja porque as transformações culturais atingem uma maior abrangência do que apenas o grupo que vivencia de modo mais intenso o uso das tecnologias avançadas.

IHU On-Line - A partir disso, como se dá a questão da sujeição do indivíduo, tomando em consideração o conceito de modernidade líquida de Zygmunt Bauman?
Karla Saraiva - A meu ver, na modernidade líquida, a sujeição também se torna líquida. Não mais as pesadas instituições de sequestro, com sua vigilância, sua imobilização do corpo, seus regulamentos a serem obedecidos. A sujeição do indivíduo na modernidade líquida se dá de modo muito mais sutil e, por essa razão, mais eficaz. O poder microfísico, de que nos fala Foucault, torna-se, possivelmente, nanofísico hoje. Cada vez mais capilarizado e invisível, tirando daí sua força. E nessas novas formas de sujeição, a contribuição da internet e das tecnologias digitais são inestimáveis. Por um lado, elas nos enredam em infinitas redes de comunicação que possibilitam nossa localização imediata a qualquer tempo e em qualquer lugar.
A divisão moderna entre público e privado, trabalho e lazer, empresa e lar, cada vez está mais pálida. Estamos sempre “logados”, sempre “online”. Seduzidos pela vantagem de podermos nos comunicar ininterruptamente e acessar informações quando quisermos, franqueamos nossa vida para um permanente controle. Esses artefatos eletrônicos, a que nos sujeitamos de modo tão alegre, dos quais já não nos permitimos nos afastar, por um lado, potencializam um gradativo avanço das relações de trabalho em nossas vidas.
Já não é possível “fechar a porta do escritório e ir embora”. Por outro lado, essas redes nos submetem a uma avalanche de informações que nos tornam alvo cada vez mais fácil de campanhas de marketing e nos colocam em processos de subjetivação ativados pelas opiniões e conceitos normalizadores que aí circulam. No campo educacional, o uso da internet vem prolongando a jornada de trabalho de professores para além dos muros da escola: cada vez mais as instituições exigem que eles façam um sítio, atualizem um blog, respondam a e-mails, colocando-os em um fluxo comunicacional contínuo. Em nome da qualidade da educação, os professores estão sendo submetidos a uma sujeição sufocante por meio das tecnologias digitais. Também os alunos são capturados por essas redes sutis, que tecem comprometimentos que se estendem para além do horário de aula.

IHU On-Line - Em que medida essas tecnologias aplicadas à educação se configuram em um controle biopolítico do indivíduo?
Karla Saraiva - Conforme apresentei no minicurso do XI Simpósio Internacional IHU, entendo que a educação hoje vem atenuando o uso das tecnologias disciplinares, enfatizando cada vez mais as tecnologias de controle, que sujeitam professores e alunos. Essas tecnologias de controle oferecem um maior campo de possibilidades de ação, o que muitas vezes é tomado como uma maior liberdade. Mas cobram como contrapartida uma maior produtividade, um maior governo de si, um maior comprometimento. Considero que as tecnologias digitais aplicadas ao campo educacional produzem novas estratégias para conduzir as condutas dos sujeitos mais alinhadas com a organização da sociedade contemporânea e com maior capacidade de produzir subjetividades que possam responder de modo mais adequado às suas demandas.

IHU On-Line - Que relações podem ser estabelecidas entre as tecnologias na educação e a governamentalidade mencionada por Foucault?
Karla Saraiva - De acordo com aquilo que já venho apontando nesta entrevista, o uso das tecnologias digitais na educação transforma os modos de sujeitar os sujeitos, produzindo estratégias para governar alunos e professores. No minicurso que conduzi, mostrei que, de modo geral, as tecnologias digitais são utilizadas dentro de estratégias pedagógicas que buscam tornar os alunos mais responsáveis por sua aprendizagem e que exigem um maior controle sobre si. Nesse sentido, o uso das tecnologias educacionais encontra-se articulado com iniciativas para fazerem do professor um expert nas artes de governar, o que é particularmente visível quando se trata do papel do professor na educação à distância.
Também focando a educação a distância, mostrei que o perfil do aluno que se pretende formar é bastante condizente com as condições da governamentalidade neoliberal contemporânea, que vêm se impondo nas sociedades como uma racionalidade que atravessa os mais diversos campos sociais. Levando-se em conta que essa governamentalidade neoliberal busca tornar cada um empresário de si, segundo já apontava Foucault, pretendo mostrar como o modo que se tem pensado a educação a distância poderia contribuir para a formação daquilo que se vem chamando de comportamento empreendedor.
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*Graduada e mestre em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Karla Saraiva é doutora em Educação pela mesma instituição com a tese Outros tempos, outros espaços - internet e educação. De sua produção acadêmica, destacamos Educação à distância: outros tempos, outros espaços (Ponta Grossa: UEPG, 2010). É professora e pesquisadora da Universidade Luterana do Brasil – Ulbra, em Canoas, no Rio Grande do Sul.Fonte: IHU online, 20/09/2010

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