quarta-feira, 22 de setembro de 2010

O mercado é instrumento

ANTONIO DELFIM NETTO*

Estamos todos envolvidos numa rede de relações sociais que permite uma introspecção para tentar entender como agimos e extrapolá-la para entender como agem os nossos parceiros.
Cada um de nós tem em si uma certa dose de altruísmo, simpatia e solidariedade naturais em relação a eles. Entretanto, em larga medida, nosso comportamento: 1º) almeja liberdade de ação; 2º) a consequente apropriação dos seus benefícios; 3º) obedece a incentivos que estimulam o nosso próprio interesse.
Ao longo da história, os homens foram selecionando mecanismos de organização econômica capazes de garantir a sua própria sobrevivência, condicionada às três restrições apontadas acima. Trata-se de processo em contínuo aperfeiçoamento, que combina os "mercados" com um Estado amigável capaz de sustentar o seu funcionamento.
Foi com ele -com suas virtudes e carências-, e a incorporação da ciência e da tecnologia, que nos últimos 250 anos a humanidade multiplicou seu número por 6 e por 11 a sua disponibilidade per capita de bens e serviços. Sempre houve e haverá uma dúvida moral em relação ao funcionamento dos mercados quando se refere a bens críticos, como saúde, por exemplo.
É preciso entender que o "mercado" é apenas um instrumento, um método eficiente, mas dramático, de seleção de quem pode ou não ter acesso aos bens: quem pode pagar leva; quem pode pagar mais leva na frente...
Esse dilema é explorado com competência no livro ("When Altruism Isn't Enough", 2008), organizado pela professora Sally Satel, da Yale University School of Medicine, que teve a felicidade de receber um transplante entre 100 mil americanos que estão esperando doações de rins, fígados, corações e pulmões!
Como resolver esse problema? Pode o "mercado" fazer isso? Talvez sim, como mostram no livro os economistas J.J. Elías e Gary Becker (Nobel de Economia). Um mercado aberto e livre de órgãos eliminaria a diferença entre "oferta" (os doadores) e "procura" (os necessitados), ao preço estimado de US$ 15 mil!
A imaginosa e competente aritmetização do problema é incapaz de esconder a indignação moral que ela produz!
Talvez seja possível sugerir solução menos repugnante centralizada na ação do Estado.
Não parece, porém, factível fazê-lo apenas apoiado no altruísmo. Talvez seja mesmo necessário um "estímulo adequado" para os "doadores".
Por mais indecentes que sejam do ponto de vista moral tais soluções, será que é moralmente justificável deixar morrer anualmente milhares de pessoas por falta de doadores? O ridículo é culpar o mercado. Ele é apenas o mensageiro dos doadores!
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* ANTONIO DELFIM NETTO escreve às quartas-feiras nesta coluna.
Fonte: Folha online, 22/09/2010

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