VLADIMIR SAFATLE*
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Pauta sobre como o Estado busca impor normatividades ao corpo e
à sexualidade está ausente do debate eleitoral
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ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS seriam, ao menos em tese, momentos privilegiados para discutir pautas de modernização social. Entende-se por tal modernização o conjunto de procedimentos que visam adequar as leis às exigências de universalização de direitos.
Dentro desse conjunto de procedimentos, há, no entanto, um importante núcleo que visa modificar a maneira que o Estado procura impor normatividades ao corpo e à sexualidade. Como não poderia deixar de ser, tal núcleo está mais uma vez ausente do debate eleitoral. Os últimos 40 anos viram a paulatina institucionalização da consciência de que o Estado deve afastar-se, ao máximo, da tentação de legislar sobre os corpos e sobre a sexualidade de seus cidadãos.
Excetuando-se casos de abusos não consentidos do outro (como a violação) ou de práticas sexuais com aqueles que não são responsáveis por seus atos (como a pedofilia ou o abuso de doentes mentais), o Estado não teria nada a dizer a respeito de tais questões.
Essa indiferença necessária do Estado poderia abrir o espaço para a ampliação do processo de reconhecimento social das diferenças e de universalização de direitos. Esse foi um dos motores para que o aborto e a modificação da estrutura do casamento fossem aceitos em boa parte das sociedades democráticas. No entanto, o Brasil continua inexplicavelmente na contramão desse processo.
Peguemos o caso do aborto. Nos anos 80, uma artista plástica norte-americana, Bárbara Kruger, fez um belo cartaz pró-aborto onde se lia: "Seu corpo é um campo de batalha".
De fato, essa é a perspectiva correta para a abordagem do problema. É necessária muita imaginação para levar a sério o dogma de que um feto do tamanho de um grão de feijão, absolutamente dependente do corpo materno, teria o mesmo estatuto jurídico que uma pessoa.
A questão não concerne o "respeito à vida", até porque não estamos de acordo a respeito do que "vida", enquanto objeto a ser defendido pelo ordenamento jurídico, deva significar. Por não estarmos de acordo, não é possível que a sociedade civil seja refém de um conceito teológico de vida que os católicos procuram nos empurrar (até porque, boa parte das igrejas protestantes tem posição muito mais mitigada a respeito do aborto). A questão concerne, na verdade, o modo de intervenção estatal e de disciplina moral dos corpos.
Valeria ainda a pena lembrar que o aborto é e sempre será liberado para aqueles que poderão pagar por clínicas clandestinas. Esses sempre encontrarão um jeito para levá-lo adiante. Já os demais sempre continuarão abortando, pois eles já votaram pela liberação do aborto. Infelizmente, eles votaram com agulhas de tricô.
Por fim, sobre a questão a respeito do casamento entre homossexuais, é dificilmente compreensível que ela não esteja na pauta do debate eleitoral. Sua proibição estigmatiza uma parcela da população e cria constrangimentos sociais que nunca poderiam ser aceitos por uma sociedade que luta pela efetivação de princípios igualitários.
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* VLADIMIR SAFATLE é professor no departamento de filosofia da USP
Fonte: Folha online, 20/09/2010
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