sábado, 17 de outubro de 2009

Deus está morto?

Livro e filme recém-lançados engrossam o coro dos neoateístas e
juntam novos argumentos
contra a fé religiosa

"Sugiro que 1 bilhão de cristãos se juntem para rezar por um, apenas um, amputado. Peçam para que o membro perdido volte a crescer. Impossível? Isso ocorre diariamente com as salamandras, sem que, presumivelmente, nenhum pastor reze para que aconteça." Essa ideia é uma amostra do terreno lógico sobre o qual se alicerça o mais recente ataque a Deus. Seu autor, o ensaísta norte-americano Sam Harris, estudou filosofia em Stanford e conclui um doutorado em neurociência sobre como o cérebro lida com a crença. Isso deu a ele a base necessária para que escrevesse A Morte da Fé - Religião, Terror e o Futuro da Razão, livro que chega agora ao Brasil pela Companhia das Letras. Entre outras acusações às "ideias fantasiosas" da religião, Harris desmantela a eficiência da reza, prática que todo mundo arrisca quando está passando por uma turbulência num avião ou acompanhando uma disputa de pênaltis.
"A crença na eficácia de uma oração torna-se uma preocupação totalmente pública no momento em que é posta em prática: no mesmo instante em que um cirurgião deixa de lado o bisturi e os anestésicos e tenta salvar o paciente com uma oração, ou que um piloto resolve aterrissar um jato de passageiros apenas repetindo a palavra 'Aleluia', passaremos do domínio da fé pessoal para um tribunal de justiça."
Espantar aparições do além vem sendo um esforço de muita gente de respeito nos últimos anos. Desde o astrônomo Carl Sagan, que no livro O Mundo Assombrado pelos Demônios, de 1996, investiu contra a descontrolada disseminação de pseudociências, até Richard Dawkins e Daniel Dennett, que combateram concepções divinas a partir de perspectivas evolucionistas e cognitivistas. No ano passado, o comediante Bill Maher se juntou ao grupo. Escreveu e assumiu o papel de clone do cineasta Michael Moore em Religulous - Que o Céu Nos Ajude. O título do documentário, resultado da contração das palavras "religioso" e "ridículo", já diz tudo. Maher expõe a religião a todo tipo de gozação, com a colaboração, claro, de fiéis de todos os matizes. Com mais ou menos humor, essas obras têm em comum a oferta de bem-nutridos argumentos para demolir de vez o mais resistente dos mitos: Deus.
Esse grupo, genericamente batizado como neo-ateístas, identifica a influência crescente de dogmas religiosos em esferas centrais na vida de todos, como a política, a saúde e a educação. Atos terroristas, ameaças geopolíticas, guerras de religião, bloqueio de pesquisas essenciais para o combate a doenças e difusão em escolas cristãs de dogmas que relacionam a natureza à criação divina - sob o eufemismo "design inteligente" - e que negam o evolucionismo são as principais evidências das ameaças que esses autores denunciam como influências primitivistas, anticientíficas e, no fim das contas, antimodernas.



A BÍBLIA E SHAKESPEARE


Para combater essas influências, Harris nos encoraja a considerar obsoletos ensinamentos como os difundidos com base, por exemplo, no Corão e na Bíblia, "trabalho de homens e mulheres que viviam no deserto, achavam que a Terra era plana, e para os quais um carrinho de mão teria sido um espantoso exemplo de tecnologia". Considerar um documento desses a base da nossa visão de mundo significa repudiar 2 mil anos de conhecimentos civilizadores que a mente humana apenas começou a assimilar por meio da política secular e da cultura científica. Na própria Igreja, há quem concorde com essa avaliação. Em Religulous, o padre George Coyne, ex-diretor do Observatório Astronômico do Vaticano, diz que a Bíblia não pode ser levada a sério em termos científicos, pois "não havia ciência quando ela foi escrita". Esse desalinho com os dias de hoje faz com que Harris sugira conceder à religião o mesmo status da alquimia, que fascinou a humanidade por mais de mil anos e hoje desqualificaria qualquer um que pretenda ocupar cargos sérios e de responsabilidade.
"Há muitas palavras de sabedoria, consolo e beleza nas páginas de Shakespeare, Virgílio e Homero, e ninguém jamais assassinou estranhos aos milhares devido à inspiração que encontrou ali. A crença de que certos livros foram escritos por Deus (que, por motivos misteriosos, fez de Shakespeare um escritor muito melhor do que Ele mesmo) nos deixa impotentes para lidar com a causa mais poderosa dos conflitos humanos, passados e presentes", escreve o autor.
"Nossas crenças estão nos levando, inexoravelmente, a matar uns aos outros porque, além de não existir apenas uma crença, elas são incompatíveis entre si. O princípio central de cada tradição é que todas as outras são apenas repositórios de erros. Assim, a intolerância é intrínseca a todos os credos"
Ignorar esses milênios de progresso nos mantém reféns das religiões naquilo que temos de mais perigoso: nossa capacidade de destruir outros agrupamentos humanos e, no caso extremo, nos autodestruir também. "A tecnologia tem sua maneira de criar novas exigências morais. Avanços técnicos na hora de promover a guerra acabaram por tornar as nossas diferenças religiosas - e, portanto, as nossas crenças - incompatíveis com a nossa sobrevivência", diz o autor. O antídoto para a progressão da barbárie no século 21 - anunciada nos ataques do 11 de Setembro, espécie de ensaio para o que o autor enxerga como um apocalipse iminente - estaria no esvaziamento do poder da religião, antes que seja tarde.
Assim, o autor não se limita a destruir crenças com base apenas na demonstração de falácias como a força de uma oração, o caráter sobrenatural dos milagres ou em decretar a morte de Deus, caminhos já percorridos inúmeras vezes pela ciência e pela filosofia. Trata, sobretudo, de demonstrar a irracionalidade da fé por meio de exemplos de seu poder destrutivo. Um dos primeiros argumentos do autor insiste num ponto central às religiões predominantes: a intolerância. "Nossas crenças estão nos levando, inexoravelmente, a matar uns aos outros porque, além de não existir apenas uma crença, elas são incompatíveis entre si. O princípio central de cada tradição é que todas as outras são apenas repositórios de erros. Assim, a intolerância é intrínseca a todos os credos. A certeza a respeito da vida futura é simplesmente incompatível com a tolerância nesta vida", afirma Harris.


SEM MODERAÇÃO

Nossas tradições de tolerância, por outro lado, provocaram o surgimento de uma atitude diante das religiões, na figura dos "moderados", que Harris também considera uma ameaça. Eles teriam tomado o caminho aparentemente ético do pluralismo, mas ignoram as afirmações irremediavelmente sectárias de cada uma quanto a ser dona exclusiva da verdade. Acabar com essa tolerância não nos conduziria ainda mais rápido para o abismo? "Eu não prego a intolerância política. Só recomendo que pratiquemos a mesma intolerância que dedicamos a todas as outras formas de falsas certezas, de confusão e de ignorância."
Portanto, não é por dentro, ou seja, pelo caminho indicado pelos moderados, que se abrirão as portas que nos permitirão escapar do entendimento literal desses textos antigos e de sua versão piorada, o fundamentalismo. "A moderação que vemos entre os não-fundamentalistas não é sinal de que a própria fé evoluiu", diz Harris, mas é produto de muitas marteladas da modernidade, que expôs à dúvida certos princípios da fé. Destaca-se entre esses novos fatos o surgimento da nossa tendência para valorizar as evidências e de só nos convencermos de que alguma afirmação é verdadeira se ela for sustentada por provas concretas.
Assim a religião só comprovará - ou não - a sua validade submetendo seus dogmas às condições do conhecimento efetivo e testando sua resistência à dúvida e às evidências, os dois mais eficientes elementos da corrosão científica. Por fim, será apenas demonstrando abertura ao aperfeiçoamento, à aquisição de novos dados e reinterpretações que o "saber" sagrado permanecerá útil aos nossos dias. "A religião não pode sobreviver às mudanças que ocorreram com a humanidade. Do contrário, é pouco provável que nós conseguiremos sobreviver à religião", afirma o autor.
"O fato de que no Ocidente não estamos mais matando gente por crime de heresia demonstra que as más ideias, mesmo que sagradas, não conseguem sobreviver para sempre à companhia das boas ideias"

CHEQUE PÓS-DATADO
Para os que se apegam aos conteúdos da fé como uma área imune às demonstrações científicas, Harris cita como exemplo a atitude entusiasmada dos fiéis quando se trata de encontrar provas de apoio para suas crenças. Segundo ele, diante de alguma pequena evidência, eles se mostram tão atentos a ela quanto os condenados. Isso demonstra que a fé não é nada mais que a disposição para aguardar as provas. É a busca pelo conhecimento em um plano a prestações: acredite agora, viva com uma hipótese não comprovada até o dia da sua morte, e você descobrirá então que estava certo. "Mas, em qualquer outra esfera da vida, as convicções são um cheque que todo mundo insiste em descontar do lado de cá da sepultura."
O filme Religulous traz um exemplo que reforça essa ideia. Diante de um cristão, o apresentador lança a pergunta: "Já que você sabe que vai para o Paraíso, por que não se mata?". O máximo que o entrevistado conseguiu dizer foi algo a respeito de uma missão na Terra para justificar a sua opção em sobreviver.
Isso revela em parte o quanto é difícil criar um ambiente propício para que quem crê formule um encadeamento lógico de ideias, o que poderia pôr fim aos excessos do fanatismo. Para Harris, bastaria que os religiosos desafiassem a própria crença com o devido rigor. Para complicar, há o fato de a resistência das crenças poder ser atribuída em grande parte ao fato de haver tão pouca pressão social contra elas - e tanto suporte social a favor. Ainda é tabu criticar a fé religiosa, enquanto ninguém se incomoda de escutar argumentos contra a crença na astrologia, na feitiçaria, em óvnis etc.
Claro que, apesar da lógica de seus argumentos, Harris não tem a menor fé de que legiões de fiéis abandonem seus dogmas assim que tomarem conhecimento das ideias expostas em A Morte da Fé. Mas, na remotíssima possibilidade de isso acontecer, seria algo bom ou ruim? A acusação da fé como a origem das maiores violências registradas na História e de Deus como o carrasco responsável por todos os males no futuro imediato não deixariam a porta aberta para um mundo sem lei, no qual a ausência da ameaça divina deixaria de ser um último ponto de apoio para o respeito mútuo? Seria o fim da ética?
A resposta do autor tem um toque de esperança, mas sempre com base numa costura lógica. Para os que desconfiam que a dúvida só tem o poder de abalar crenças, mas não o de instalar outros valores, menos ameaçadores, em seu lugar, Harris recorre à História, preservada em livros recheados de evidências e confirmações. "O fato de que no Ocidente não estamos mais matando gente por crime de heresia demonstra que as más ideias, mesmo que sagradas, não conseguem sobreviver para sempre à companhia das boas ideias." Pode crer.

"PERDOAI, ELE NÃO SABE O QUE DIZ"
Líderes católico, judeu e muçulmano atacam as ideias do autor,
mas concordam com algumas delas

Se todo mundo concordasse com as ideias do autor de A Morte da Fé, os três homens ouvidos para a produção deste texto estariam desempregados. Apesar disso, há pontos - poucos, é verdade - em que o xeque Jihad Hassan Hammadeh, o padre José Bizon e o rabino Ruben Sternschein concordam com os argumentos de Sam Harris.
A começar pela afirmação de que, para muitos fiéis, Deus desaprova o respeito a outras religiões ou à opinião dos descrentes. "Deus não concorda, sim. Desagrada-Lhe, sim. Porém Ele nos deu a vida, inclusive para os ateus. Quer tolerância maior do que essa?", diz o xeque Hammadeh, que é presidente do conselho de ética da UNI (União Nacional das Entidades Islâmicas). "Eu concordo que a religião como mágica é complicada para o desenvolvimento normal das funções sociais, políticas e éticas das pessoas. É uma atitude que poderia não ser responsável. Se eu penso que, faça o que eu fizer, pode não me acontecer nada, eu não preciso ter responsabilidade", afirma o rabino da Congregação Israelita Paulista.
Pronto, fim da concordância. Daí pra frente, os religiosos exorcizam as ideias do autor. O ponto que eles mais atacam é aquele em que Harris defende que os maiores conflitos mortais entre humanos têm motivação religiosa. "Nenhuma religião, que se diz de fato religião e que está conectada com uma divindade, é a favor da morte violenta", diz o padre Bizon, assessor da CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil). Para o xeque, orgulho, ganância e inveja são os verdadeiros motores por trás dos conflitos. Já o rabino acusa o autor de generalista e preconceituoso e lembra que o pior massacre conhecido é o Holocausto: "E o nazismo não tinha religião", diz.
Entre os acusados de motivadores de conflitos e inspiradores de assassinatos em massa, o Corão recebe vários ataques em A Morte da Fé. "Se isso fosse verdade hoje, então, desculpe, ele [o autor] não estaria vivo. Já teríamos acabado com ele. Temos 1,5 bilhão de muçulmanos no mundo e [segundo as ideias de Harris] mataríamos as pessoas antes de se tornarem muçulmanas", contra-ataca o xeque.
Um ponto atacado em coro pelos religiosos é a afirmação contida na obra de que os livros sagrados teriam sido escritos, de próprio punho, por Deus. Para o rabino, escrever um livro é um ato tão humano e antropocêntrico que seria ingênuo atribuí-lo a alguma divindade. O xeque diz que o Criador não escreveu, mas impôs as regras a serem seguidas pelas suas criaturas. "Não é Deus o escritor. São os profetas e apóstolos que foram instrumentos da ação divina", afirma o padre Bizon.
Reportagem de CÁSSIO STARLING - Revista GALILEU - outubro de 2009
http://revistagalileu.globo.com/Revista/Galileu/0,,EDG87154-7943-219-3,00-DEUS+ESTA+MORTO.html

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