terça-feira, 27 de outubro de 2009

"Peço a Deus que a Igreja de Roma se converta e volte ao Evangelho"

"São mais de 20 os sacerdotes católicos espanhóis que se unem à Comunhão Anglicana todos os anos". Quem dizia isso há dois dias era o bispo anglicano de Madri, Carlos López. Um desses sacerdotes é Manuel Carrillo (foto). jesuíta durante 11 anos, que se converteu ao anglicanismo em 2006 e hoje é pároco de sua comunidade de Torrejón de Ardoz. Sumamente feliz pelo passo dado. Pe. Manuel continua solteiro, mas critica a "espada de Dâmocles" do celibato obrigatório, acusa o Vaticano de se "assimilacionista" e reza para que "a Igreja de Roma se converta e volte ao Evangelho".
A reportagem é de José Manuel Vidal, publicada no sítio Religión Digital, 25-10-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.

Quando e por que um jesuíta como o senhor decidiu ingressar na Igreja anglicana?
Fiz parte da Companhia de Jesus de 1987 a 1998, em que pedi minha licença e saí oficialmente da Companhia em 2001. Sempre havia me interessado intelectualmente pelo anglicanismo, mas conheci pessoalmente a Igreja anglicana quando, ainda sendo jesuíta, passei um verão estudando na Irlanda e ia aos domingos a paróquias da Igreja da Irlanda. Naquela época, só por certo afã ecumênico e para conhecer a realidade de um país que, apesar dos tópicos da "católica Irlanda", apresenta uma surpreendente pluralidade religiosa.
Após minha saída da Companhia, vivi uma certa crise espiritual, que hoje leio como uma conversão, e me dei conta de que havia deixado, simplesmente, de acredita na Igreja Católica Romana, mesmo que continuava me sentindo cristão. Após um tempo de luta espiritual, o Senhor me concedeu a experiência de me sentir profundamente pecador e, ao mesmo tempo, salvo só por sua graça mediante a fé. Se colocarmos uma "etiqueta" a essa experiência, diria que então me dei conta de que eu era protestante ou evangélico.
O passo natural seguinte foi buscar uma Igreja onde eu pudesse viver isso em comunidade, e comecei a ir à Catedral do Redentor de Madri no ano 2006. Assim conheci a Igreja Reformada Episcopal (IERE) (foto), uma Igreja ao mesmo tempo respeitosa e "cuidadosa" com as tradições do cristianismo histórico e reformada em sua teologia.

Foi feliz enquanto fez parte da Companhia?
Houve, desde o começo, muitos momentos bons durante meus anos na Companhia. O melhor foi, talvez, um ano que passei, antes de estudar teologia, na paróquia do Pozo del Tío Raimundo, de Madri. No entanto, sempre me faltou alguma coisa. Suponho, visto retrospectivamente, que o Senhor estava me preparando de um modo misterioso, e certamente doloroso, para algo diferente.

Que recordações o senhor guarda de sua época de jesuíta?
Minhas recordações estão muito misturadas. Lembro-me muito positivamente da amizade com muitos companheiros, das oportunidades de estudo, formação e experiências de todo tipo etc. Mas também dos momentos de escuridão que, a meu ver, se derivam de uma vida anômala e irreal, de "torre de marfim", própria das instituições católicas, onde as pessoas vivem uma vida aparentemente entregue, mas afastada da realidade, onde apenas chegam os problemas de fora e, no entanto, aflora uma quantidade de problemas e conflitos que são puramente autogerados.

O Papa Wojtyla "castigou" física e espiritualmente o Padre Arrupe, ex-superior-geral dos jesuítas?
Decididamente sim.

Ignacio Ellacuría é um mártir?
Se entendemos por mártir uma pessoa que entrega a vida em testemunho da fé, sim.

Do que o senhor sente falta do catolicismo?
Nada. Como anglicano, pertenço a uma Igreja que é ao mesmo tempo católica e reformada. A Igreja Católica Romana não só não tem o patrimônio exclusivo do cristianismo histórico, mas também, em muitos pontos, se afastou clamorosamente dele. Por outro lado, o anglicanismo é muito plural, teológica e doutrinalmente, e, dentro dele, suponho que eu me definiria como clara e explicitamente evangélico e protestante. Portanto, não tenho nenhuma saudade de uma comunhão com Roma nem nada do estilo. Pelo contrário, peço ao Senhor para que a Igreja de Roma se converta e volte ao Evangelho.

O que sua família disse quando soube de sua decisão?
Foi difícil para eles, mas aceitam e me apoiam plenamente.

E seus amigos e companheiros jesuítas?
Não trato atualmente com muitos, mas aqueles com os quais sigo em contato sempre foram um apoio nesse passo e em outros.

Sente-se plenamente realizado na Igreja anglicana?
Nenhuma Igreja é perfeita, nem nenhuma esgota e é capaz de conter com exclusividade a verdadeira Igreja de Cristo, que é constituída por todos aqueles que reconhecem Jesus como seu único Salvador, pertençam à comunidade que pertençam. E eu me acho muito satisfeito com a IERE, que, com todas as falhas que possa ter, se reconhece, com modéstia, só como uma parte dessa Igreja universal.

Como é a sua paróquia?
Pastoreio uma pequena comunidade que é uma das mais recentes da nossa Igreja, em Torrejón de Ardoz. É constituída fundamentalmente por imigrantes procedentes de diversos países e tradições religiosas: católica bizantina, ortodoxa, outras Igrejas protestantes etc. São pessoas, às vezes com muitos problemas, mas com uma fome espiritual e um desejo de conhecer e seguir Jesus imensos, que estão me ensinando muito.

Por que o senhor continua sendo célibe, apesar de que seja permitido que os padres anglicanos se casem?
Não sei se tecnicamente se poderia dizer que sou célibe. Eu me considero, simplesmente, solteiro e, mesmo que já tenha 44 anos, não me atrevo a dizer que dessa água não beberei... Talvez, essa seja a diferença com o celibato, pretendidamente sublimado, na Igreja de Roma, que sempre pende como uma espada de Dâmocles, criando toda uma classe de tensões afetivas. Eu mesmo vivi essas tensões e, sem ter mudado minha situação pessoal nesse aspecto, as tensões desapareceram. Não é o mesmo viver sem uma parceira, mas sabendo que o Senhor pode lhe conceder, algum dia, o dom de encontrar uma mulher com a qual compartilhar a vida e um projeto comum, que criar a ideia de que você nunca vai poder viver como as pessoas "normais". E, além disso, rodeado e convivendo com outras pessoas com as mesmas tensões: no fim, tudo se soma e cresce exponencialmente.

O celibato obrigatório do clero secular católico é um anacronismo ou um imperativo econômico?
Não chamaria propriamente anacronismo, se damos a isso um sentido de "antiquado" ou antigo, porque realmente é uma inovação da Igreja Romana e que não existia na antiga Igreja.

O que o senhor sente ao ver que Roma não só abre os braços, mas também concede todo tipo de privilégio aos anglicanos tradicionalistas?
A verdade é que esses anglicanos tradicionalistas, presentes principalmente na América do Norte e na Inglaterra, sempre estiveram olhando para Roma desde o século XIX, com o ritualismo e o Movimento de Oxford, em seu repúdio à Reforma e de tudo o que é protestante. Sempre tiveram uma identidade anglicana pouco clara, e parece que, com essas medidas, também não vão ter uma identidade romana muito mais clara. Até porque a própria realidade na Igreja Católica Romana é provavelmente muito mais plural do que eles creem. Inclusive, o catolicismo "oficial" de Roma é muito diferente hoje dos ideais românticos e medievais que os anglo-católicos mais estritos mantêm.

Vai haver uma avalanche de padres anglicanos para Roma?
Não acredito. Essa oferta afetaria um setor muito reduzido do que hoje é o anglicanismo, isto é, os anglo-católicos tradicionais ou conservadores. Os anglo-católicos liberais são os que podem ser "irritar" mais com a medida. Pelo contrário, os anglicanos evangélicos, por mais conservadores que sejam, não têm nenhum interesse em entrar em comunhão com Roma.

A decisão romana apresenta um precedente e é um agravo comparativo aos padres católicos casados?
Isso são os católicos romanos que têm que dizer. Mas, em todo caso, a admissão desses ministros casados ao sacerdócio católico não é nova e vem ocorrendo há muitos anos.

Na África, onde tanto se estimam a paternidade e a família, a medida vaticana não pode ser uma tentação para que muitos padres católicos passem para o novo rito anglicano, para poder assim se casar e continuar exercendo o ministério?
Todos sabemos a forma um tanto "laxa" com a que o celibato é vivido de fato na África. Por isso, não acredito que ninguém precise dessa manobra para continuar fazendo o que já faz...

Roma se aproveita do fato de que o anglicanismo é a mais avançada das confissões cristãs e vai abrindo caminho na fronteira?
A pergunta já inclui uma valorização que eu não estou muito certo se compartilho. Dentro do anglicanismo, muitos pensam que em algumas partes de nossa Comunhão está se agindo precipitadamente, sem muito discernimento e sem contar com a opinião do resto da Comunhão. Pois bem, todos lealmente, a partir da fé e do compromisso, tentamos nos manter fiéis ao Evangelho de Cristo. Roma, no entanto, tenta explorar essa situação de debate interno que vivemos em seu próprio benefício.

A História pedirá contas da Igreja de Roma por discriminar os homossexuais e por impedir o acesso das mulheres ao ministério?
Isso são os católicos que têm que debater.

Com Bento XVI, a Igreja católica continua involuindo?
Não sei se podemos chamar de involução ou não. Para mim, continua simplesmente igual.

Com essa medida, se encena o ecumenismo de assimilação que Roma pratica?
No anglicanismo, já estamos vivendo um ecumenismo de outro tipo. Por exemplo, estamos oficialmente em comunhão com as Igrejas Luteranas do Norte da Europa e com as Velho-Católicas da Europa Central. Isso quer dizer que nos reconhecemos mutuamente como parte da única Igreja Universal e reconhecemos os ministérios de cada um e a livre circulação de ministros e de fiéis, sem renunciar, por isso, à própria identidade e à independência de cada uma de nossas Igrejas. A posição de Roma, no entanto, é e sempre foi assimilacionista. Ela só concebe a unidade como "volta ao redil", sem refletir se não é ela, talvez, a que um dia abandonou esse redil.

Alguma vez passou pela sua cabeça voltar de novo para Roma?
Não, nunca.
IHU/Unisinos, 27/10/2009

Um comentário:

  1. Excelente entrevista, parabéns!
    Concordo com o Reverendo. Sou anglicano, ministro de uma pequena comunidade da Diocese do Recife (Bispo Robinson Cavalcanti), e nunca voltarei para Roma. Sou Crente! Leiam este artigo: ANGLICANOS INDO PARA ROMA? NÃO EXATAMENTE - http://migueluchoa.blogspot.com/2009/10/anglicanos-indo-para-roma-nao.html
    A paz do Senhor a todos!
    Valdolirio Jr

    ResponderExcluir