Raimundo Fagner.
Quem andava pelos corredores da Câmara dos Deputados se surpreendeu ao ver Fagner e outros artistas em campanha pela aprovação da PEC da Música. Amigo de Tasso Jereissati, Ciro Gomes e Aécio Neves e batalhador dos direitos dos músicos, ele usou seu prestígio em favor da PEC. Numa conversa informal, antes de embarcar para o Rio, o cearense falou do tempo em que morou em Brasília, de Patativa do Assaré e destacou que a MPB tradicional não morreu. “O público, novo e antigo, continua atrás dos artistas principalmente nos shows”. Também comentou a sua volta à música do povão.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Música, que reduz a carga tributária para CDs e DVDs e, consequentemente, o preço final desses produtos é essencial para a sobrevivência do artista?
A princípio, para a sobrevida do mercado, que caiu de uma maneira vertiginosa, devido à pirataria e outras mídias. Tudo isso fez com que o mercado fosse para o fundo do poço. Essa proposta tenta recuperar um pouco o setor; para que se possa fazer um disco mais barato, todo mundo reclama demais. Antes, era muito caro produzir um disco, mas hoje está mais barato, mesmo assim o preço continua alto. A PEC dará um fôlego, mesmo a gente sabendo que tudo mudou muito rápido. De certa maneira, também é um resgate da autoestima para o artista, que sempre lutou pelos ideais dos outros. Os artistas sempre foram usados pelos mais diversos interesses. E agora a gente está descobrindo um pouco da nossa força, mesmo nesse momento de fraqueza do mercado.
A Música Popular Brasileira tradicional morreu?
Não. Aqueles artistas que atendem ao público, como os da minha geração, que têm uma história sempre atualizada, representam uma MPB viva. A nossa agenda está sempre lotada. Acho que o enfraquecimento dessa música dita atual até fortaleceu artistas mais tradicionais. Agora, morreram os modelos de mercado, as maneiras tradicionais de se veicular a música. Mas o público, novo e antigo, continua atrás dos artistas principalmente nos shows.
Como foi a receptividade da música nordestina de qualidade (você, Zé, Elba Ramalho, Ednardo, o pessoal do Ceará…) no chamado Sul Maravilha?
Foi um boom. A gente talvez inventou um modelo de vender discos. A música tradicional brasileira não vendia discos, nem a bossa nova. A elite da MPB dos anos 1960/1970 também não era grande vendedora. Nós inauguramos a onda de vendedores de discos, de arrebatadores de multidões. Trouxemos o povão — o Brasil tem uma conotação nordestina muito forte. Fizemos esse link de trazer o Nordeste para aquela geração pop.
Esse pessoal do Nordeste surgiu em reação ao Tropicalismo?
Não foi uma reação, até porque a gente tinha uma certa influência do Tropicalismo. Era um caminho natural (chegar ao Sul Maravilha). Acho que o Tropicalismo foi muito importante pra gente, no sentido de sinalizar que podíamos criar, inventar, arriscar. E foi isso que nós fizemos. O pessoal do Ceará não era uma coisa de grupo, como foi, de certa maneira, com os baianos, que até hoje têm movimento deles e entre eles. Eles foram uma referência, só que nós chegamos com uma proposta mais popular. Trouxemos uma música com leitura mais nordestina e mais pop. Eles abrangeram culturalmente outras ideias, mas foram uma referência muito importante.
Você mostrou Patativa do Assaré para o Brasil. Qual o poeta que você apresentaria hoje?
Apostaria em Francisco Carvalho,(1) um poeta cearense que há quatro anos musiquei cinco poemas e lancei um disco com as músicas dele; é fascinante. Tem oitenta e poucos anos, é recluso, já ganhou um Prêmio Nestlé de Poesia. É um dos maiores poetas da língua portuguesa. Em nível de Ferreira Gullar ou qualquer outro grande poeta universal da língua portuguesa. Com Patativa a relação foi diferente, ele era um poeta popular e com coragem de sair. Patativa tinha 80 anos e rodei com ele pra onde eu quis. Mesmo sem um olho, uma perna, Patativa tinha um espírito de aventureiro, ao contrário de Francisco Carvalho, um intelectual. Patativa era um homem do povo, mais fácil de carregar. Já o intelectual é mais retraído.
Há diferença entre o Fagner dos discos Manera Fruru, Ave Noturna para o Fagner de hoje?
Naturalmente todo mundo muda, a vida muda. Você só não pode perder a essência. Continuo gostando de poesia; tenho a mesma empolgação — talvez mais comedida. Mas não poupo o que falar, buscar gente nova, me instigar com a poesia, buscar novos músicos, novos compositores, desafios. Neste aspecto, não há nenhuma diferença. A diferença é que você vai mudando, mas a gente termina mesmo caindo no nosso próprio colo.
Para você, música é guerrilha ou diversão?
É diversão, cultura e emoção. Quem vive em cima de um palco a vida toda é porque gosta dessa adrenalida, desse jeito de viver. É uma renovação interior a todo momento. Não existe nada mais fantástico na música do que emocionar as pessoas, de saber que você faz parte emocionalmente da vida das pessoas, que viveram os melhores momentos de suas vidas ouvindo a nossa vida, e isso se repete, atravessa gerações. Guerrilha é só para manter a mesma pegada.
Nesses mais de 39 anos de estrada, o que mais te comoveu e o que mais te revoltou?
Sempre me comovem pessoas como Patativa, Luiz Gonzaga, minha querida Mercedes Sosa, que foi embora agora e foi uma referência muito forte pra mim. Ela me abriu as portas da América Latina. Gosto de fazer fusões, como o trabalho que fiz na Espanha, misturando o Nordeste com o nordeste daquele país. O que mais me emociona mesmo é o carinho e o olhar do público. O que mais me revolta é a mediocridade do ambiente artístico. A música pressupõe uma coisa de muita sensibilidade, mas sempre vem uma montanha de interesses suspeitos, de pessoas alienadas.
A invasão estrangeira nos grotões do Nordeste prejudica a cultura local ou isso é um caminho sem volta?
É um caminho sem volta desde antes da globalização. Mas o nordestino sabe misturar essa invasão com seus costumes, seus hábitos.
Em algum momento de sua carreira você pensou em mudar o jeito de cantar para conquistar um público sem grande formação musical?
Sempre atraí o grande público cantando o que eu queria cantar. Minha formação foi de muita música popular, dos grandes cantores brasileiros — Roberto Carlos, Altemar Dutra, etc. — sempre povão. Depois convivi com uma corrente cultural forte nos anos 1970. Saí de uma formação popular para participar de um movimento cultural muito intenso, de certa maneira, sem ter muita base intelectual. A minha música passou a ser intelectual por conta dos meus parceiros. Depois senti a necessidade de cantar mais para o povão, virei muito cult nos anos 1970, trabalhando com o pensamento dos meus parceiros. Mas a necessidade de chegar ao povão era grande e muito pessoal. Comecei a gravar músicas mais populares e isso gerou muita crítica. Uma crítica pós-ditadura em que todo mundo era comunista e odiava o popular, porque achavam que tudo que era povo, era massa de manobra. O que eu fiz de popular era uma coisa que estava dentro de mim mesmo.
Qual o balanço que você faz do Ministério da Cultura do governo Lula?
Não tenho uma posição definida. Acho que houve uma frustração, por parte de muita gente, na gestão de Gilberto Gil, não por mim, mas por gente ligada a ele. Acharam que ele perdeu a oportunidade de ter avançado em muita coisa de interesse dos artistas. Disseram que ele puxou muita lata da sardinha para a Bahia — acho que devia ser um compromisso dele, afinal a Bahia é um verdadeiro país, onde as necessidades são muitas. Houve uma certa queimação, até porque ele nunca foi político, foi um teórico, daí a importância da sua música. Mas considero que foi um atraso devido à história dele. Esperava-se muito mais.
Chico César assumiu a Secretaria de Cultura de João Pessoa. Você aceitaria um papel semelhante em Fortaleza?
Não. Já tentaram me seduzir muitas vezes. Estou com Tasso Jereissati e com Ciro Gomes desde 1986. Todos os assédios políticos eu já passei. Eu sou um político sem mandato e prefiro ficar assim. A política me ensina a enxergar o meu país, minha profissão, onde eu vivo, as injustiças e as coisas que a gente precisa fazer.
Qual foi sua impressão ao chegar em Brasília pela primeira vez?
Cheguei aqui no primeiro mês de 1970. Chorei da entrada do Eixão Sul até a Rodoviária. Estava vindo do Ceará, da boemia, de uma vida linda e fui obrigado a vir aqui para fazer a universidade (arquitetura e depois administração na UnB). Essa imagem de entrar no Eixão não estava nos meus planos. Não entendia nada disso aqui. Foi uma ruptura na minha emoção saber que ficaria aqui. Mas aprendi muita coisa, adoro Brasília. Pude me organizar, fazer grande amizades. Em 1971 ganhei o Festival de Música do Ceub e virei celebridade na UnB; eu nem estudava, minha intenção mesmo era ir embora. Mas Brasília tem uma relação muito familiar. Me sinto bem quando estou aqui. Recebo boas energias. No ambiente político também. Estou trabalhando pela PEC da Música e, onde eu entro, as pessoas me recebem muito bem como artista e cidadão. Elas sabem da minha ligação política, o Aécio Neves é meu irmão também. Esses anos todos venho trabalhando na política sem ganhar dinheiro, mas conquistando grandes amizades. Me sinto em casa quando estou em Brasília, sabendo de suas virtudes e seus defeitos.
O que você achou dessa piração de Belchior de sumir do mapa outra vez?
Belchior foi meu parceiro no Ceará, meu melhor parceiro. Depois, nunca tivemos contato, até porque ele preferiu morar em São Paulo e eu no Rio. Nós nunca trocamos telefone. Quando vieram me procurar sobre Belchior eu já não sabia dele há muito tempo (risos).
Você está envolvido também com obras sociais, tem uma fundação em Fortaleza e Orós (CE), sua cidade natal; fale um pouco desse trabalho.
A fundação tem 10 anos e faz um trabalho musical fantástico para 500 crianças. Já ganhamos prêmio do Criança Esperança e do Unicef. Este ano, estamos concorrendo ao prêmio mais importante para uma fundação, o Prêmio Itaú Unicef, que será anunciado no dia 13 de novembro.
1- Burocracia
Eles te advertem que a aurora foi abolida
por tempo indeterminado.
Eles te comunicam que o trigo e o vento
vão ser exportados para o arco-íris.
Eles te aconselham a esquecer
o corpo ensanguentado dos acontecimentos.
Eles te ensinam que o orvalho não cai
sobre aqueles que semeiam dúvidas.
Eles te mandam esvaziar as palavras
de toda a possível reminiscência.
Eles te fiscalizam do alto dos edifícios
escanchados nalgum dragão lunar.
Eles te dão um ataúde azul
e te ordenam que é tempo de morrer.
- Francisco Carvalho -
Reportagem de José Carlos Vieira, Sérgio Maggio e Severino Francisco - Correio Braziliense, 25/10/2009
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