sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O latim ainda está entre nós

Deonísio da Silva*

O dia dos mortos é parecido com a Quarta-Feira de Cinzas, quando nos dizem: “Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris” (“Lembra-te, homem, que és pó e ao pó voltarás”).

O filme Quo vadis, de 1951, baseado em romance de Henryk Sienkiewicz, manteve o título em latim. Refere a pergunta que São Pedro faz a Jesus: “Quo vadis, Domine?” (“Para onde vais, Senhor?”). O diálogo dá-se na Via Ápia. Ao discípulo, que está fugindo, o Mestre responde que vai a Roma para ser crucificado outra vez. São Pedro pergunta em latim, mas Jesus responde em inglês.

Antigamente, todos os alunos, mesmo os pouco brilhantes e os desinteressados, aprendiam vários provérbios, versos e trechos antológicos de prosa em latim, bem antes de chegarem à universidade.

Um dos mais conhecidos era este, de Cícero: “Quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?” (“Até quando, Catilina, abusarás de nossa paciência?”). É a abertura de uma das Catilinárias. E este trecho inicial terminava com a exclamação: “O tempora, o mores!”. (“Oh tempos, oh costumes!”).

Cícero uniu a reflexão filosófica à ação política. Escreveu diversos tratados sobre o conhecimento, a velhice e a amizade, bebidos em fontes gregas. Ele e Demóstenes são os maiores exemplos da oratória clássica. Com as quatro Catilinárias que pronunciou no Senado, na presença, aliás, de Catilina, questor e pretor romano que tinha a ambição de ser cônsul, Cícero evitou um golpe de Estado.

Outra expressão muito conhecida era “ab ovo”, desde o ovo, com o significado de “desde o começo”. Era ensinada com o exemplo de Horácio, que louva Homero porque este, para escrever a Ilíada, não chegou ao nascimento de Helena, gerada num ovo, segundo a mitologia. “Nec gemino bellum Trojanum orditur ab ovo”. (“Para contar a guerra de Tróia, não começa com o ovo”).

“Gula plures occidit quam gladius” (“A gula mata mais do que a espada”). Esta é de São João Crisóstomo, ensinando moderação nas refeições. Terenciano dizia que “habent sua fata libelli” (“os livros têm seus destinos”), combatendo, já naquele tempo, o esquecimento de obras fundamentais. E Plínio, o moço, recomendou a especialização: “Multum, non multa” (“Muito, não muitas”). Ler muito, mas não sobre muitos assuntos. O conselho tem o fim de combater a dispersão.

A herança latina ainda se faz presente em expressões como habeas corpus, que tenhas o corpo (instrumento jurídico que garante a liberdade diante do abuso dos poderosos); pro forma, por formalidade; pro labore (recebimento) pelo trabalho; ex officio, do ofício (por obrigação); in memoriam, em lembrança (homenagem); ad referendum, para ser aprovado; a priori, antes (da experiência), a posteriori, depois (da experiência); a fortiori, com razões mais fortes. Etc.

O crítico literário Fábio Lucas conta que um escrivão, depois de ouvir tantas expressões latinas de advogados que frequentavam seu cartório, repreendeu assim a pressa de um deles, que puxava com força um processo no meio da pilha: “A fortiori, não”.

Há uma sabedoria resumida nos provérbios, mas nos latinos parece ter havido um resumo dos resumos, de que é exemplo este, sobre a condição para a paz pública: “Concordia civium murus urbium” (“A concórdia entre os cidadãos é a muralha das cidades”).

E, por fim, o provérbio que ainda aparecia no fundo de vários relógios, no tempo em que eles davam pancadas: “Feriunt omnes, ultima necat” (“Todas nos ferem, a última nos mata”).
*Deonísio da Silva é escritor e professor da Universidade Estácio de Sá, doutor em letras pela USP e acaba de relançar De onde vêm as palavras (16ª edição, Editora Novo Século).
Jornal do Brasil, online - 29/10/2009

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