sábado, 24 de outubro de 2009

A religiosidade e o cérebro

Roberto Lent*
A neurociência
começa a desvendar
os processos mentais da crença religiosa,
mostra colunista



Na coluna do mês passado falei de Deus, a propósito da frase atribuída ao Marquês de Laplace (1749-1827), famoso físico francês do período napoleônico. Laplace teria dito a Napoleão: “A hipótese divina, Senhor, de fato explica tudo; no entanto, não permite prever nada. Como cientista, minha função é produzir trabalhos que permitam previsões.”
Essa menção provocou comentários de alguns leitores da coluna, em defesa da religião. Ocorre que a religiosidade, independentemente da existência ou não de Deus ou de alguma força sobrenatural similar, é um fenômeno real e próprio da humanidade.
Podemos questionar se Deus existe mesmo, mas é indiscutível que a religiosidade humana se manifesta desde os primórdios da evolução de nossa espécie. Sendo um fenômeno real, é passível de análise científica. De fato, há muito ela é estudada por filósofos e cientistas sociais – sociólogos, antropólogos, cientistas políticos.
Mais recentemente, a religiosidade passou a ser estudada também pelos psicólogos e pelos neurocientistas. Qual a lógica mental da crença religiosa? Que processos cognitivos e emocionais estariam envolvidos? Que circuitos neurais estariam ativos nessa complexa manifestação mental?
Há poucos dias a prestigiosa revista da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos – a PNAS – divulgou, ainda apenas em versão eletrônica, um trabalho da equipe de Jordan Grafman, pesquisador sênior dos Institutos Nacionais de Saúde daquele país. O grupo de Grafman realizou dois tipos de experimentos de grande relevância para entender essa questão, utilizando voluntários de meia idade, ambos os sexos e nível educacional homogêneo.
Psicologia da religiosidade
O primeiro experimento foi destinado a classificar a psicologia da crença religiosa de acordo com características específicas, empregando uma técnica estatística complexa denominada escalonamento multidimensional. Os voluntários eram solicitados a avaliar o grau de semelhança ou dessemelhança entre 70 afirmativas sobre religião, do tipo: “A religião garante a vida familiar”, “Deus é onipresente”, “Jesus é um personagem ficcional”, “Todo mundo é pecador”, “Deus castiga”, “Existe uma fonte sobrenatural de Criação”, e assim por diante.
A análise multidimensional das respostas permitiu determinar três dimensões do pensamento religioso: o grau de envolvimento de Deus na vida de todos e na existência do universo; a emoção provocada pela crença religiosa; e o conhecimento da religião, doutrinário ou vivencial de cada indivíduo.
É claro que no grupo analisado havia ateus (menor grau de envolvimento de Deus, ausência de emoção provocada pela religião, pouca familiaridade com as doutrinas ou práticas religiosas), bem como crentes de diferentes gradações, para os quais esses parâmetros tinham sentido oposto.
Os resultados desse experimento permitiram supor que, para avaliar o envolvimento de Deus nos eventos terrenos, seria preciso utilizar o processo cognitivo pelo qual somos capazes de prever a ação de terceiros com relação a nós próprios. Quando fazemos um malfeito, presumimos que Deus nos castigará porque a cultura nos ensinou que os malfeitos devem ser castigados. Colocamo-nos no papel de Deus, ao fazer essa previsão, e o nosso cérebro analisa o que faríamos nessa circunstância: o castigo.
Na análise do segundo caso – a emoção provocada pela crença religiosa –, foi possível comprovar que a religiosidade tem um forte componente emocional de natureza social – o tipo de emoção que nos une a outros humanos em diferentes práticas coletivas, da religião ao esporte e à política. É a solidariedade dos que professam o mesmo culto e a emoção de ouvir as preces, os cânticos e demais rituais religiosos.
Por fim, o estudo da terceira dimensão do pensamento religioso – o conhecimento da religião – fez supor que a memória e o raciocínio seriam necessários para conectar os dados da doutrina com as experiências da vida de cada um.
Circuitos neurais da religiosidade
O segundo experimento de Grafman e seus colegas consistiu em apresentar frases semelhantes aos voluntários, enquanto eles eram submetidos a um exame de imagem por ressonância magnética funcional. Esse tipo de exame permite identificar as áreas cerebrais mais ativas quando o sujeito realiza algum tipo de operação mental, mediante o registro do pequeno, mas perceptível, aumento do fluxo sanguíneo dirigido àquela região do cérebro.
A crença no envolvimento de Deus nos acontecimentos que nos rodeiam implica considerá-lo como uma terceira pessoa, como comentamos acima, e assim imaginar ou prever quais seriam suas ações e reações em cada circunstância. A previsão das ações e pensamentos de terceiros é possibilitada por uma função que os neurocientistas cognitivos chamam “teoria da mente”, cuja base neural tem sido bastante estudada.
Ao cruzar com uma pessoa na rua, por exemplo, você intui se ele seria um ladrão ou um pedinte, um vendedor ou um simpático turista, baseado em uma série de critérios – da vestimenta à expressão facial. Com isso você é capaz de prever – nem sempre com sucesso... – o que a pessoa fará e como você deverá se comportar.
Quando os sujeitos do experimento foram expostos às frases típicas do envolvimento de Deus nos acontecimentos terrenos (“Deus protege a nossa vida”, “Deus pune os nossos pecados”), foram consistentemente ativadas as áreas cerebrais relacionadas à teoria da mente.
Diferentes foram as regiões ativadas pelas frases que implicam um conteúdo emocional próprio da religiosidade (“Deus se zanga com os meus pecados”, “Deus te ama”). Neste caso, as regiões cerebrais mais ativas foram aquelas que interpretam as nuances afetivas da linguagem, bem como aquelas que avaliam o grau de emoção dos acontecimentos e das pessoas. Você fica chocado e abalado quando presencia um crime, e comovido quando vivencia um ato de solidariedade. São ativadas nesses casos as mesmas áreas cerebrais que atribuem emoção aos “atos de Deus”.
Por fim, os pesquisadores analisaram os circuitos neurais envolvidos com a avaliação racional da doutrina e da vivência da prática religiosa (“Deus proíbe o adultério”, “A religião perdoa a violência em legítima defesa”). Nesse caso, você imagina situações que vivenciou, ou simplesmente consulta sua memória sobre os ditames que aprendeu no passado em sua educação religiosa. As regiões cerebrais ativadas são exatamente aquelas que possibilitam a imaginação visual (o córtex que processa a visão, por exemplo), e aquelas que guardam os dados conceituais aprendidos, ou como dizem os neurocientistas, os dados da memória semântica.
Ficamos no seguinte ponto: a existência de Deus é uma crença, e por isso inacessível ao método científico – acreditar em Deus é uma opção de cada um que não tem necessidade de prova. Já a religiosidade é um dado da realidade humana, e como tal é passível de abordagem científica. Os neurocientistas começam a produzir as primeiras respostas de como o cérebro humano realiza essa atividade tão sutil, apaixonada e constante em todas as culturas.

SUGESTÕES PARA LEITURA
D. Kapogiannis e colaboradores (2009) Cognitive and neural
foundations of religious belief. Proceedings of the National Academy of Sciences of the USA, www.pnas.org/cgi/doi/10.1073/pnas.0811717106.
M. Bloch (2008) Why religion is nothing special but is central. Philosophical Transactions of the Royal Society London, vol. 363: pp.2055-2061.
P. Boyer e B. Bergstrom (2008) Evolutionary perspectives on religion. Annual Review of Anthropology, vol. 37: pp.111-130.
Roberto Lent Professor de Neurociência Instituto de Ciências Biomédicas Universidade Federal do Rio de Janeiro , Acesso 24/10/2009

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