Desde que terminaram as desastradas experiências do socialismo real e acabou em fracasso o planejamento sem sistema de preços, o único método razoável de administração das sociedades ocidentais, neste século XXI, parece ser uma combinação pragmática do processo democrático na política com o processo capitalista na economia.
Creio que ainda antes de deixarmos o tumultuado (intelectualmente) século XX, Norberto Bobbio, em Destra e Sinistra, já afirmava que “dizer-se de esquerda é atualmente uma das expressões menos verificáveis do vocabulário político”. Autores tão distantes dele, como o competente John Roemer, acabam concordando que “esquerda” é hoje “igualitarismo”, mas mantêm a fé na possibilidade concreta de um socialismo democrático. Pois foi essa fé que o magnífico Joseph Stiglitz colocou em dúvida no Whither Socialism?, com novos e surpreendentes argumentos da teoria econômica.
Se há ainda algum sentido na distinção entre direita e esquerda, ele se refere à forma de encarar a igualdade, que é uma das aspirações fundamentais da justiça política. A questão é que, além da igualdade, o homem necessita de um sistema produtivo relativamente eficiente, o que até agora não se conseguiu sem mercado e liberdade. O mercado não existe sem a liberdade, de forma que esses são valores perfeitamente compatíveis. O mesmo não se pode dizer de mercado e igualdade, pelo menos do mercado apoiado na propriedade privada como conhecemos hoje.
A ideia de igualdade é o poderoso demônio que atormenta o homem cada vez que ele tem tempo para o pensamento crítico. Ela é provavelmente permanente na história. Já em Aristóteles, 300 anos antes de Cristo, há uma longa discussão sobre o tema.
Quase todas as utopias, de Platão em diante, sempre fizeram restrições à acumulação de riquezas. E, de Thomas More a Karl Marx, elas enxergam na propriedade privada a origem da desigualdade. Mas o que hoje parece claro é que a eliminação da propriedade privada leva a dificuldades no funcionamento do mercado e à completa sujeição do indivíduo ao Estado.
A história mostra que os regimes de economia centralizada tendem a sacrificar a eficiência produtiva e a liberdade em favor da igualdade. Os regimes de economia descentralizada, por sua vez, tendem a sacrificar a igualdade e, às vezes, a liberdade em favor da eficiência produtiva.
Parece que a única solução para esse dilema é a combinação orgânica do processo democrático como forma de organização política para assegurar liberdade e relativa igualdade, com a organização econômica pelo processo capitalista para realizar o desenvolvimento material.
Democracia e capitalismo não são coisas. São processos de solução de conflitos nascidos da prática cotidiana que se interpenetram e tiram a sua capacidade de evoluir da resolução, sempre incompleta e imperfeita, dos problemas criados por sua própria dinâmica.
O processo democrático corrige os excessos do capitalismo a ponto de o mesmo nome designar realidades muito diferentes. Por sua vez, as exigências do capitalismo colocam limites aos excessos de democratismo. É essa interação que fixa os contornos da política do possível, numa dialética eterna, onde não há vencidos ou vencedores.
É claro que os homens são iguais e desiguais ao mesmo tempo. Mas o processo democrático de resolver os conflitos, combinado com um processo econômico que busca certa racionalidade, parece constituir um mecanismo adaptativo eficiente para administrar essa delicada questão
Ela permite explorar todos os caminhos e acumular conhecimentos pelo aprendizado decorrente das múltiplas tentativas de resolver o problema. É por isso que essa combinação tem condições de sobreviver. Ela pode ir compondo uma sociedade que vai acomodando, pragmaticamente, três valores não inteiramente compatíveis: liberdade, igualdade e eficácia produtiva.
E é isso que vamos ver quando esta crise terminar.
*Economista. Colunista da Carta Capital - 14/10/2009, p.43
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