sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Deus existe

Carlos Alberto Rabaça*



O romancista português José Saramago, ao promover o lançamento de seu livro Caim, lançou mão da controvérsia religiosa como estratégia de marketing, tão em moda como nos recentes ensaios de Richard Dawkins e Daniel Dennet. Em suas últimas entrevistas tem afirmado que “Deus não existe fora da cabeça das pessoas que nele creem”. Sua pregação ateísta afirma que “o cérebro humano é um grande criador de absurdos. E Deus é o maior deles”. Saramago volta no tempo e relembra a capa da revista Time que, em abril de 1966, circulou com a pergunta perturbadora: “Deus está morto?”. O escritor retoma a questão afirmando a inexistência de Deus para provocar indignação em almas religiosas. Segundo ele, todo absurdo é possível, pois o culpado é Deus – ou melhor, “deus”. Há, nesse desatino, uma tremenda contradição. Ora, se Deus é culpado, ele admite sua existência.

Intacto, em seu silêncio, que pensará Deus de nós, pobres seres furtivos e ávidos de explicações? E cegos. Tão cegos. Sob gestos e equívocos, alimentamos nossa insolúvel sede de tudo o que não somos e não sabemos. Nunca pressentimos a presença de Deus, ou sequer o sonhamos sob o tremor dos tempos. Vivemos o sentimento da dúvida ou da certeza inútil da inexistência do Senhor. Há musgo e trevas em nós. Não ouvimos o sussurro do Espírito que lateja e vibra com entranhas de misericórdia.

Cecília Meireles, na poesia Falai de Deus com clareza, aqui parcialmente reproduzida, nos transmite sua contribuição nessa questão tão delicada: “Falai de Deus com a clareza da verdade e da certeza: com um poder de corpo e alma que não possa ninguém, à passagem vossa, não o entender. Falai de Deus brandamente, que o mundo se pôs dolente, tão sem leis. Falai de Deus com doçura, que é difícil ser criatura: bem o sabeis. Falai de Deus de tal modo que por Ele o mundo todo tenha amor à vida e à morte, e, de vê-lo, o escolha como modelo superior (...)”.

Saramago, em sua invectiva contra Deus, não apresenta qualquer novidade e tem um quê de coisa velha, tão antiga quanto o filósofo Nietzsche que viveu no século 19. Este considera o cristianismo “a religião dos fracos”. Os “super-homens”, isto é, os que se superam como indivíduos, não devem se deixar dominar pela “mentalidade escrava” dos cristãos. Portanto, conclui Nietzsche, se Deus está morto, vale tudo. Esse tipo de atitude moral não permite que nenhuma norma ética atrapalhe a autorrealização do indivíduo. No livro de Saramago a consciência não transmite o que é certo ou errado, há apenas o que chamamos de “relativismo moral” ou o que Freud pensou sobre o “caráter abissal da existência”. Que sua obra, inocentando o fratricida Caim e transferindo a culpa para Deus, seja mais um desses escritos esquecidos sob a ação do tempo. Este, sim, não perdoa. No limiar do humano, o tempo é que lançará e graduará a coerência de Saramago, materialista desde criancinha.
*Carlos Alberto Rabaça é sociólogo.

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