domingo, 18 de outubro de 2009

Percepção universal da realidade

Obras de Elias Canetti revelam um olhar ampliado
e a profissão de fé na literatura




Ao cultivar uma prosa libertadora, que dá voz aos oprimidos por um regime totalitário, a romena naturalizada alemã Herta Müller acabou sendo premiada com o Nobel de Literatura deste ano - para os jurados, sua obra "desenha as paisagens dos desamparados com a concentração da poesia e a objetividade da prosa". A escolha e a justificativa fazem pensar que o júri sueco apoiou-se no pensamento do escritor búlgaro Elias Canetti (1905-1994) para tomar sua decisão. Afinal, para o também ganhador do Nobel (de 1981), os autores são personagens em luta contra a opressão do poder e a inconstância das massas.
Canetti sempre vislumbrou a literatura como a busca de uma compreensão universal da realidade. Para ele, a palavra é a base de muitas realidades, daí sua devoção a escritores que julgava essenciais para o entendimento e aperfeiçoamento, digamos assim, da humanidade - como Franz Kafka, Karl Kraus, Robert Musil e Hermann Broch. Há muito sem ganhar nova tradução em português, a prosa de Canetti chega agora às livrarias de uma só vez em três volumes. A Estação Liberdade providenciou a edição de Festa Sob as Bombas - Os Anos Ingleses (tradução de Markus Lasch), a respeito da década que passou na Inglaterra, e Sobre a Morte (tradução de Rita Rios), compilação de textos em que prega a resistência à finitude. Já a José Olympio, em sua coleção Sabor Literário, inclui Sobre os Escritores (tradução de Kristina Michahelles), impressões sobre poetas, personagens notáveis e autores que influenciaram sua experiência literária.
Canetti tornou-se uma figura singular pela perseverança, "um homem que conseguiu abarcar a vastidão cultural de seu tempo e exprimir-se nos mais variados gêneros literários para estudá-la, criticá-la, enriquecê-la", na opinião do poeta e tradutor Ivo Barroso, expressa em texto publicado pelo Estado em 2005, quando do centenário de nascimento do escritor. É necessário, portanto, entender a forte personalidade de Canetti - figura que moldou uma sólida cultura à base da vivência em diversos países - para que seus textos tenham a devida fluência. Filho de judeus sefardins (que foram expulsos da Espanha no século 15), Canetti nasceu na cidade búlgara de Rustschuk, onde viveu os primeiros seis anos de vida. Em seguida, morou na Inglaterra, Áustria, Alemanha e Suíça.
Tal peregrinação permitiu a Canetti a inclusão de uma série de experiências linguísticas e vivenciais que lhe foram decisivas na escrita de sua obra, na qual se destacam Auto de Fé (de 1935, seu primeiro e único romance, que se tornaria uma referência na literatura mundial), Massa e Poder (de 1960, que alcançou enorme notoriedade por sua visão estritamente pessoal do tema - autores como Marx e Freud, tão em voga na época, só são citados de passagem), A Consciência das Palavras (1964, que traz ensaios sobre ficcionistas e reminiscências, entre outros temas), além dos volumes autobiográficos - A Língua Absolvida, A Luz em Meu Ouvido e O Jogo dos Olhos, iniciados em 1977.
Festa Sob as Bombas também se insere nessa linha confessional; nele, Canetti recorda os anos em que viveu na Inglaterra (de 1911 a 1913 e, depois, entre 1939 e 1971). O que distingue esses escritos de caráter pessoal dos demais é principalmente o bom humor. Aqui, Canetti diverte-se ao retratar figuras tão distantes como nobres mimados e imigrantes paupérrimos.
Autor do posfácio da obra, o pesquisador e crítico literário Jeremy Adler apresenta uma faceta pouco conhecida do escritor tido como intransigente e, por vezes, colérico. O volume traz também um texto muito transparente sobre o relacionamento de três anos de Canetti com a também escritora Iris Murdoch - romance conturbado no qual o autor descreve suas relações sexuais como "frias e apáticas".
Foram as insinuações de Iris, aliás, que sugeria ser Canetti um "misógino prepotente", que convenceu a filha do escritor, Anna, a contrariar seu desejo - antes de morrer, Canetti confiou à Biblioteca de Zurique todo seus textos inéditos com a condição de só serem publicados 30 anos após sua morte, ou seja, apenas a partir de 2024. Disposta a rebater as acusações de Iris Murdoch, no entanto, Anna iniciou a liberação antecipada dos escritos, começando com Festa Sob as Bombas e continuando com Sobre os Escritores. Aqui, é possível delinear o estilo do autor búlgaro, especialmente o vigor com que exaltava ou demolia seus ídolos literários.
Nos textos desse volume, Canetti trata de pensadores de diversas épocas, como Confúcio, Nietzsche, Goethe, Platão, Kafka, Freud e George Büchner, sem divagações ou caminhos alternativos. Como bem observa um dos organizadores do livro, Peter von Matt, "a sua veneração era devoração; o seu desprezo era um vômito". É por meio desses escritos que se percebe claramente o eterno conflito que Canetti mantinha com a crítica literária, a qual, segundo ele, observa, mede, avalia, compara e valoriza, criando uma terceira categoria inexistente em um meio em que as obras ou são excelentes ou péssimas.
Finalmente, Sobre a Morte, compilação de breves anotações e de passagens mais extensas extraídas de sua produção e que tratam da finitude humana. Durante boa parte de sua existência, Canetti refletiu e escreveu sobre a morte, criando pensamentos que parecem contraditórios - para ele, ao mesmo tempo em que não se deve jamais esquecer a morte, é necessário também sempre resistir à ela.
Despontam aqui frases lapidares como esta: "Morre-se muito facilmente. Teríamos de morrer com muito mais dificuldade." Na verdade, tais sentenças resumem a resistência que Canetti sempre pregou, seja no sentido literário ou na vida cotidiana. Para ele, o verdadeiro escritor é aquele que traz um ímpeto de universalidade para compreender a sua época, ao mesmo tempo em que mantém a vigilância que o obriga a também estar contra essa sua época.
Ao receber o Nobel, Canetti disse em seu discurso que seus escritos se caracterizavam "por uma enfoque amplo, uma variedade de ideias e de pontos de vistas, além de seu vigor artístico". É esse caminho que auxilia a também entender a recente escolha do nome de Herta Müller para receber o mais ambicionado prêmio literário do planeta.


Festa Sob As Bombas - Os Anos Ingleses
Elias Canetti
Estação Liberdade, 223 págs., R$ 46
Sobre a Morte
Elias Canetti
Estação Liberdade
160 págs., R$ 35
Sobre os Escritores
Elias Canetti
José Olympio
210 págs., R$ 32
Reportagem de UBIRATAN BRASIL, estadão, 18/10/2009

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