Contardo Calligaris*
O desejo frustrado de
se vingar é uma poderosa
se vingar é uma poderosa
matriz narrativa
para os nossos devaneios
PODE SER que, ao longo da vida, você nunca tenha sido ofendido. Mas, para a imensa maioria dos humanos, não é assim. Quando crianças, esbarramos em adultos que parecem quase sádicos, na sua incapacidade de nos escutarem e entenderem; logo depois, encontramos os "bullies" da turma do fundão da sala de aula, da praia ou da rua. E assim continua.
A vida de cada um escolhe as encruzilhadas em que sofremos mil violências morais ou físicas, grandes ou pequenas. Com elas, em regra, não ganhamos nada, a não ser que a gente acredite numa justiça divina após nossa morte: quem sofre aqui na Terra será recompensado nos céus. Também podemos nos consolar com a ideia de uma "grandeza" moral que nos seria própria, pela "generosidade" com a qual aguentamos as ofensas, esquecendo-as ou mesmo oferecendo gentilmente o outro lado do rosto.Mas resta uma dúvida (que compartilho com Nietzsche, "Genealogia da Moral", Companhia das Letras): nossa moral aparentemente generosa e a esperança de que Deus, um dia, recompense os ofendidos e puna os ofensores talvez sejam uma grande invenção coletiva, criada, justamente, para que as vítimas sejam confortadas e possam perdoar não tanto aos agressores, mas a elas mesmas, ou seja, perdoar a "covardia" da qual elas acabam se acusando, num eterno lamento por elas não terem revidado na hora.
Em suma, o desejo frustrado de se vingar é uma poderosa matriz narrativa, sobretudo nos devaneios privados, em nosso cinema de bolso, que fica escondido por ele ser pouco conforme com os ditados da moral dominante.
Quentin Tarantino, com "Bastardos Inglórios" (que acaba de estrear e é um de seus melhores filmes), leva esse cinema de bolso para as salas: é uma verdadeira festa de vingança, uma fantasmagoria cuja violência é alegre e libertadora.
A história contada não cola direito com os fatos da Segunda Guerra Mundial? Você acha curioso que um bando de soldados dos EUA, infiltrados na França ocupada pelos nazistas, aja como índios apaches saídos de um bangue-bangue, recolhendo os escalpos dos que conseguem matar? Ou se surpreende com o fato de que eles marquem com uma suástica na testa os poucos que eles decidem poupar?
Pois é, reconheçamos a Tarantino a mesma liberdade que nós nos permitimos em nossos devaneios de vingança.Para o que serve essa liberdade de imaginar? Talvez as ficções e, em particular, o cinema (de bolso ou de sala) tenham algum poder de alterar a história, fazendo justiça, por exemplo. Não digo isso apenas porque, em "Bastardos Inglórios", a vingança final acontece graças a uma sala de cinema. E, é claro, sei que os devaneios, em geral, não se realizam mas também sei que eles nunca são vãos, simplesmente porque são o alimento de nosso desejo.
Um outro filme, lindíssimo, conta com uma distribuição limitada e talvez não chegue às salas do Brasil inteiro (no caso, anote o título e espere o DVD): "Deixa Ela Entrar", de Tomas Alfredson. É um filme sueco, que é apresentado como uma história de terror, e é verdade que há um vampiro no filme. Mas o meu prazer de espectador foi outro...
Acho que já contei: quando era criança, eu tinha uma pequena orquestra imaginária, que levava sempre comigo. Ela me servia para combater o tédio, sobretudo quando acompanhava meus pais em intermináveis visitas a museus. Passei bom momentos com a minha orquestra, mas confesso que teria adorado ter também outros amigos imaginários, mais eficientes na hora dos apuros. Uma vampira que gostasse de mim teria sido perfeita. Já imaginou? Alguém que saísse das sombras e arrancasse os pescoços, as cabeças e os braços dos idiotas que me azucrinavam a vida?
Pois é, "Deixa Ela Entrar" é a história de um menino que tem (ou inventa?) a amiga imaginária da qual ele precisa, para se vingar. De uma amiga assim, todos precisamos.
*Contardo Calligaris (Milão, 1948) é um psicanalista italiano radicado no Brasil. Doutor em Psicologia Clínica pela Universida da Provença (França), onde defendeu a tese "A Paixão de Ser Instrumento", estudo sobre a personalidade burocrática. Professor de Antropologia na Universidade da Califórnia em Berkeley (Estados Unidos), e de Estudos culturais na New School of New York.
Colunista do jornal Folha de S. Paulo desde 1999, Calligaris é autor de diversos livros.
ccalligari@uol.com.br - Texto postado na Folha, 15/10/2009
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