domingo, 18 de outubro de 2009

"Vivi sete vidas. Não tenho medo de morrer

Entrevista com Hans Küng*


Senhor Küng, tenho uma tia com 98 anos que tem um grave problema: ela tem certeza que vai para o paraíso e irá encontrar lá seu marido, filhos e conhecidos, mas se questiona em que estado estarão: jovens, velhos, doentes, sãos?

Entendo que a sua tia tenha tais preocupações. Não se sabe o que pode nos esperar além da porta da morte. Pessoalmente, não posso e não quero imaginar como é o paraíso. Toda pessoa gosta de imaginar, mas deve saber que são só suas imagens. Vivemos em uma época posterior a Copérnico e a Darwin - e portanto não podemos mais imaginar o paraíso como fizeram, por exemplo, Michelangelo e os pintores da Idade Média e do Barroco. Eu não acredito nessas representações simplistas do paraíso, segundo as quais ficaremos sentados em uma cadeirinha de ouro cantando "aleluia".

O Papa Bento XVI acredita seguramente que no além, de algum modo, todos estão sentados juntos. Há não muito tempo, ele dizia que seu antecessor, João Paulo II, estava escorado na sacada da casa do Senhor olhando-nos: então, há um morto que olha lá de cima.

Essa é uma representação surpreendentemente ingênua. O Papa se expressa às vezes de maneira pré-moderna e popular - uma herança da sua fé bávara agrícola. Naturalmente, ele também sabe que o paraíso não é uma casa em cima das nuvens com janelas do céu. Os cristãos iluminados entendem que, no além, nenhum cadáver é ressuscitado, mas que - como dizemos na liturgia - ocorre uma total transformação do modo de ser. Estou curioso para descobrir como será no além.

Senhor Küng, o senhor certamente está desiludido com a sua vida aqui na terra.

Como assim?

O senhor escreveu mais de 60 livros, mais de 30 mil páginas e...

Trabalho com muito prazer. Com toda a modéstia, acredito ter produzido algo que torna o cristianismo, a religião, a ética novamente compreensíveis ao homem moderno.

No entanto, o seu ardor...

Não fui e não sou um fanático, nem um santo. Escrevo para as pessoas que estão em busca.

Apesar do seu compromisso, desde 1989 as duas maiores Igrejas na Alemanha perderam mais de sete milhões de fiéis, e na oração das quartas-feiras em Roma participam anualmente dois milhões e meio de pessoas a menos com relação a alguns anos atrás com João Paulo II. O senhor consumiu seus dedos escrevendo, mas inutilmente.

Não. Tive êxito! Um número incalculável de pessoas me escreve - diariamente - que eu fui uma ajuda para elas. Eu me tornei, involuntariamente, um porta-voz da leal oposição à sua Santidade. Um porta-voz que é levado a sério - até pelo próprio Papa. Estou presente dentro e fora da Igreja. Sem mim, muitos teriam abandonado a Igreja. Muitos me dizem: "Enquanto o senhor resistir dentro da Igreja, eu também resisto".

No entanto, o senhor perdeu a sua batalha. O seu antagonista Ratzinger...

Não é o meu antagonista, e a minha profissão não é crítico do Papa. Sou um reformador, não um subversivo. E não suporto ser sempre chamado de rebelde da Igreja ou...

O seu antagonista se tornou Papa, entrou na história. O senhor será só uma nota de rodapé...

É um desrespeito o que você está dizendo. Você não pode ver o futuro, você...

Mas será assim!

Você acredita? Como uma pessoa entra na história só a própria pessoa decide. Não importa a função, nem o poder. Um exemplo: Tomás de Aquino - não quero me colocar à sua altura - renunciou voluntariamente a qualquer cargo importante na Igreja. O Papa Inocêncio III, seu contemporâneo cultíssimo, foi o mais poderoso de todos os papas. Você conhece Inocêncio III? Não. Esse papa, poderosíssimo em seu tempo, é uma nota de rodapé, mesmo que ainda importante para os historiadores. Mas Tomás de Aquino é constantemente citado ainda hoje como uma autoridade. Não, não me sinto um perdedor.

É claro que o senhor deve dizer e deve ver assim.

Certamente eu vejo assim! Mas há uma outra coisa que entristece na vida: que Joseph Ratzinger, que, em 1966, eu chamei para a Universidade de Tübingen, não continuou no mesmo caminho da reforma, como eu fiz. Então, provavelmente temos hoje essa divisão da Igreja católica entre Igreja alta e Igreja baixa. Eu represento a Igreja baixa; ele, a Igreja alta. Todo o meu trabalho estava voltado para que a Igreja alta mudasse. E nisso, e aqui você tem razão, eu tive só um sucesso limitado. Mas quem venceu uma batalha ainda está longe de ter vencido a guerra. Eu acredito que a atual política do Vaticano é um fiasco. A tentativa de empurrá-la novamente para trás, para a Idade Média, a esvazia. Não se pode trazer os velhos tempos de volta à vida!

Mas, diga-me, por que 200 anos depois do Iluminismo ainda se deveria acreditar em Deus?

Sim, justamente como iluminista, eu lhe digo: existem milhares de motivos para não acreditar.

Nisso o senhor tem razão.

Diante da miséria do mundo e da própria vida, pode-se duvidar de Deus ou confiar em Deus. Não há nenhuma prova estritamente científica a favor de Deus. A sua existência não pode ser fundamentada em argumentos logicamente convincentes. Justamente segundo Immanuel Kant: a razão pura teorética fora do tempo e do espaço não é competente. Por isso, a existência de Deus não pode ser baseada em argumentos logicamente convincentes.

Sério?!

Não brinque. Você certamente ainda tem em mente, de um lado, a sua fé de criança, mas, de outro lado, a sua razão também não tem competência na questão da fé. A existência de Deus é uma questão de confiança razoável.

Confiança razoável? Parece-me ser, pelo contrário, irrazoável, e acho que Mark Twain tinha razão: "A fé consiste em crer em algo que se sabe que não é verdade".

Exatamente uma péssima frase de espírito. Porém, eu lhe respondo muito seriamente com uma frase da Carta aos Hebreus: "A fé é fundamento das coisas que se esperam e prova daquelas que não se veem". Portanto, apesar das suas dúvidas há milhares de motivos pelos quais uma pessoa - apesar de todas as contrariedades da vida - pode acreditar em Deus.

Diga-me um.

Sobre isso, justamente, recém escrevi um livro inteiro: "Quello in cui credo" (Aquilo em que creio), em tradução livre). A fé é sobretudo um problema de confiança de fundo. Confiança na vida. Gostaria de convidá-lo a admitir Deus pelo menos como hipótese. Tome a questão filosófica mundial: por que uma coisa existe no lugar de não ser, ou a inexplicável origem das fundamentais constantes da natureza ou da velocidade da luz. Mas também o problema do infinito na matemática, os rastros da transcendência na música - tudo isso pode ser um convite a crer em Deus.

O cientista Richard Dawkins lhe responderia a essas palavras que ressoam tão belas......

Eu diria, ao invés, que ressoam tão verdadeiras!

Ele diria: todas as religiões ensinam coisas sem sentido e são perigosas para a humanidade.

Não me fale aqui desses novos ateus! Dawkins é um ideólogo que reage a uma imagem de Deus superada e argumenta de modo extremamente polêmico, sem porém levar a novas consequências. É um estudioso de ciências naturais, sem abertura a problemas filosóficos. Eu me ocupei dos grandes ateus clássicos, analisei Feuerbach, Marx, Nietzsche, Freud. Eles constituem um desafio para mim, não esse...

"A religião", diz Marx, "é o suspiro da criatura oprimida, a alma de um mundo sem coração, o espírito de situações sem espírito. É o ópio do povo. A abolição da religião enquanto felicidade ilusória do povo é a condição necessária para a sua verdadeira felicidade: a condição necessária para renunciar às ilusões da sua situação, a condição necessária para renunciar a uma situação que precisa de ilusões".

Marx tem razão: a religião pode ser o ópio do povo. A religião pode ser um meio de aquietamento e consolação social. Mas não deve ser isso. As análises de Marx também expressam, talvez contra a sua vontade, algo positivo, isto é, que a religião pode ser muito mais - um protesto contra as condições que temos, protesto contra as circunstâncias por causa das quais sofremos.

Essa é a uma interpretação arriscada. "A crítica da religião", diz ainda Marx, "é o germe da crítica do vale de lágrimas do qual a religião é a auréola".

Religião só reverbera? Nisso, Marx - como Feuerbach - provoca um curto-circuito. A religião é mais do que uma projeção. Como a fé, a esperança e o amor, ela não se exaure só no fato de fazer suportar a miséria dos homens consciente ou resignadamente! Não, a religião pode ser um motivo excepcionalmente forte, como diz Marx, não só para interpretar o mundo de forma diferente, mas para mudá-lo.

Meu Deus, mas que mundo o seu Deus criou. Enquanto nós estamos aqui falando, crescem sem parar as montanhas de cadáveres. A cada cinco segundo uma criança com menos de 10 anos morre de fome ou de sede. Estamos falando de míseros trinta minutos - 360 crianças mortas!

Por que Deus não impediu o mal? O filósofo grego Epicuro já volta essa pergunta contra a religião no ano 300 a.C. Mas talvez devemos nos perguntar antes: por que os homens não impediram o mal? Com relação ao mal, toda pessoa que crê em um Deus bom e vivo é confrontado neste mundo a um mistério que...

O senhor chama de mistério a morte de crianças pela fome?

Não. O mistério é por que Deus não impediu o mal. A dor imerecida de crianças não pode ser justificada com nenhuma argumentação. "Por que sofro? Essa é a rocha do ateísmo" é dito na tragédia de Büchner "A morte de Danton". Sim, por que sofremos? Essa é a pergunta original do homem. Você, senhor Luik, sabe dar uma resposta?

O senhor, professor Küng, o senhor é o cristão crente. Eu espero ansiosamente a sua resposta.

Que não é fácil. Também pertence ao mistério por que os homens não fazem mais contra a dor. De todos os modos, não podem atribuir toda a culpa a Deus. A humanidade, justamente no "avançado" século XX, experimentou o mal em uma medida até então desconhecida: extermínios de Estado, Auschwitz, a industrialização do massacre. Como Deus pôde permitir isso? O mistério do sofrimento não pode ser explicado com os meios da razão.

Muito fácil.

Nem por meio da psicologia, nem por meio da filosofia, nem por meio da moral a escuridão do sofrimento se deixa transformar em luz. Deus permanece incompreensível.

Senhor Küng, além das palavras difíceis: o seu Deus estava em Auschwitz?

Palavras difíceis? Deus não é responsável pelo horror do holocausto. Certamente, se Deus existe - e eu acredito nisso -, então Deus estava também em Auschwitz.

Mas que Deus é esse que está em Auschwitz e não impede Auschwitz?

Esse é um grito de protesto que eu compreendo. E é minha convicção que a monstruosa realidade de Auschwitz não pode ser liquidada mesmo com ardentes especulações sobre um Deus que sofre. A isso se dedica uma teologia do silêncio. Mas até em Auschwitz a fé era possível: crentes de diversas religiões voltaram a Deus a sua oração até na fábrica da morte, porque estavam convencidos de que, apesar de tudo, Deus existia. E você, de sua parte, deve se perguntar: o seu ateísmo explica o holocausto? A sua falta de fé explica o mundo, consegue consolar quem está no sofrimento sem sentido? Não! Nenhum dos grandes espíritos da humanidade que eu li resolveu o problema original do sofrimento e do mal.

Mas nem o cristianismo que - é quase absurdo - fala do Deus bom, benévolo, indulgente. Um Deus que tudo sabe, que tudo guia.

Essa é uma representação medieval do Deus onipotente, que guia todos os eventos cósmicos.

Então eu estudei mal a religião!

Não. Deus é espírito, que age dentro, com e no meio dos homens, mas que respeita a sua liberdade. E essa liberdade também compreende inevitavelmente o mal. O homem que sofre não pode chegar ao segredo dos projetos do criador sobre o mundo. O sofrimento, enorme, insensato - tanto individual quanto coletivo - não pode ser compreendido teoricamente, mas, no melhor dos casos, superado praticamente. Os judeus - os cristãos também - têm, como sofrimento extremo, a figura de Jó diante dos olhos. Esse homem perde tudo, sem culpa alguma: o patrimônio, a família, a saúde, torna-se mendigo, é atingido pela lepra. Lamenta-se com Deus e rejeita todos os argumentos a favor de Deus. Com isso, mostra que o homem não necessariamente deve acolher o sofrimento. Ele tem o direito de insurgir, de protestar, de se rebelar contra um Deus que lhe parece cruel, pérfido e astuto - e por meio dessas provas, Jó reencontra Deus!

Isso é uma fábula.

Isso é literatura mundial altamente dramática. Mas ainda mais do que Jó, para mim, como cristão, é Jesus, aquele Jesus que é abandonado, flagelado, que é caçoado, que morre lentamente na cruz, aquele que participou da terrível experiência do holocausto.

Para o senhor, como cristão, essa morte é certamente uma morte salvífica que...

... que remete para além da miséria, da dor, da morte! Até para céticos como o marxista Horkheimer era insuportável acreditar que a miséria tivesse a última palavra. Deve haver uma última justiça justamente para os pobres, os miseráveis deste mundo! E as crianças que sofrem sem culpa podem ter o conforto de que essa vida não é tudo, mas que têm diante de si uma vida sem dor.

É o senhor mesmo quem diz: a fé é ópio.

Não, não é ópio. É conforto.

O senhor tem agora mais de 80 anos e...

...Estou consciente do fato de que o meu fim terreno está próximo. Antes eu pensava - a minha vida foi uma vida cansativa - que não chegaria aos 50 anos. Agora, faço as contas com a morte, cada hora pode ser a última. Quem tem a morte diante dos olhos todos os dias tem menos medo dela. Estou pronto. Vivi sete vidas. Não me permito nenhuma nostalgia de velhice, não me fixo espasmodicamente em querer ser jovem. Às vezes me perguntam: "Como gostaria de morrer?". Sorrindo, respondo: "Durante uma viagem de trabalho!". E então acrescento: "De todos os modos, não em uma casa de saúde".

"Estou pronto.

Vivi sete vidas.

Não me permito nenhuma

nostalgia de velhice,

não me fixo espasmodicamente

em querer ser jovem."

O seu amigo, o professor de retórica Walter Jens, afundou-se em um mundo além do pensamento, além das palavras, está louco. Foi um defensor da ajuda ativa a morrer. Sua mulher Inge diz: "Não aproveitou o momento certo em que poderia passar da vida para a morte".

Para mim, a vida é um dom de Deus do qual sou responsável. E isso até o último suspiro. Está entregue à minha responsabilidade, e não à da Igreja, ou do Papa ou de um padre, de um médico, de um juiz. É minha responsabilidade, e, definitivamente, sou responsável da mais alta instância: Deus. Digo apenas que não gostaria de perder o momento certo.

O que espera do fim da vida?

Como disse, estou curioso. A morte é a primeira para todos. Tenho a fundada confiança de não cair no nada. "Isso é tudo", disse Kurt Tucholsky, que se tirou a vida em 1935. Ele escreveu: "Se tivesse que morrer agora, diria 'Isso é tudo?' - e 'Não entendi muito bem'". E: "Foi um pouco barulhento". Mas não, eu não penso assim! Não é tudo. Eu acredito na vida eterna.

Walter Jens me dizia uma vez que encontraria com prazer Heinrich Böll e Willy Brandt lá em cima.

Naturalmente, eu também me encontraria com muito prazer com determinadas pessoas. De todos os modos, preferiria Mozart a Brandt, e gostaria de conhecer Thomas Morus. Mas o que eu sei? As fantasias não tem nada a ver com a seriedade do morrer.

E o que o senhor dirá a Deus, no caso de que exista, quando lhe perguntar: "O que fez para tornar o mundo melhor?".

Sei que ele não me fará essa pergunta, porque ele sabe disso sem perguntar.

*Teólogo alemão. Crítico de Ratzinger. A reportagem é de ARNO LUIK, publicada na revista alemã STERN, 15/10/2009. A entrevista publicada em alemão, foi traduzida do italiano por Moisés Sbardelotto, IHU/Unisinos, 18/10/2009

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