sábado, 17 de outubro de 2009

"Ninguém acredita em mercados eficientes"

Joseph Stiglitz*

diz que, após a crise,
teorias simplistas sobre o mercado
darão lugar a teses mais imperfeitas
e realistas





Joseph Stiglitz é um economista em aparente contradição. Dono de um currículo que ostenta o Nobel de Economia de 2001 e uma vice-presidência do Banco Mundial, ele ainda cultiva as ideias e a imagem de um rebelde. Há poucos anos, essa rebeldia lhe conferia um ar de gênio periférico. Apesar de todos os prêmios e honrarias – uma versão do seu CV tem 62 páginas –, muitos colegas de profissão e líderes políticos torciam o nariz para as suas críticas às teorias econômicas predominantes, ao mercado financeiro global ou às distorções da globalização. Depois que a economia mundial mergulhou na maior crise desde 1929, o gênio de Stiglitz começou a sair da periferia em direção ao centro das atenções. Além de celebrado, Stiglitz agora é ouvido. Nesta entrevista, concedida por telefone da Inglaterra, onde também leciona, o economista americano diz que a atual situação econômica comprova teses antes ignoradas, inclusive as suas: “A crise fortaleceu várias correntes da economia moderna”.

EN_Para alguns economistas, a crise financeira global vai provocar grandes mudanças nas teorias econômicas predominantes. O senhor concorda?
Se a queda [econômica] continuar por muito tempo, o ímpeto por mudança vai ser maior. Se a recuperação vier de maneira robusta e rápida, muitos economistas dirão que a crise foi só uma aberração e as velhas teorias são boas o suficiente a maior parte do tempo. Dirão que, apesar de algumas coisas não funcionarem, não é preciso se preocupar. Mas é na experiência como professor que encontro um divisor de águas. Estudantes que em anos anteriores seriam influenciados pela teoria dos mercados perfeitos, hoje acham-na absurda. Na Universidade Columbia, os alunos têm meio ano de teoria dos mercados perfeitos e meio ano sobre mercados imperfeitos, que falam de bolhas, flutuações etc. Numa turma recente, no fim do ano eles ficaram bravos por terem gasto seu tempo estudando a economia dos mercados perfeitos. Isso não acontecia antes da crise.
EN_Que teorias econômicas estão mais ameaçadas?
A ideia de que os mercados são necessariamente eficientes e se autocorrigem foi descartada. Não acredito que alguém, neste momento, possa argumentar que os mercados são eficientes e podem se autorregular. Essas visões já tinham sido questionadas, mas havia quem dissesse que, embora não fossem perfeitas, de forma geral elas proviam uma boa descrição da economia. Acho que ninguém acredita mais nisso. O modelo básico de homem econômico, a noção de que indivíduos são necessariamente racionais, também foi posta em questão. É muito difícil conciliar o comportamento das pessoas no mercado com os postulados da racionalidade.



“Um certo fetichismo levou os
americanos a focarem
em um grupo deideias
divorciadas da realidade.
Essas ideias continuam a ter
alguma ressonância nos Estados Unidos
e será difícil removê-las”


EN_Há consequências práticas dessas mudanças de pensamento?
O Consenso de Washington e as noções econômicas extremas de mercados livres, de liberalização econômica, ficaram totalmente desacreditados. Nenhum governo jamais perdeu tanto dinheiro como o setor privado fez nesta crise. Então, a partir de agora, quando tivermos a velha discussão sobre se o governo é menos eficiente do que o setor privado, as pessoas terão de dizer que o setor privado sabe realmente como perder dinheiro, em uma escala gigantesca. Nenhum governo é perfeito, mas temos de pensar como faremos para que os mercados trabalhem melhor e os governos sejam melhores.
EN_Que ideias estão ganhando relevância?
Há correntes de trabalho que têm sido fortes nos últimos 25 anos. Elas não foram incorporadas em muitas políticas econômicas, mas têm recebido muita atenção acadêmica. Por exemplo, meu trabalho sobre informação assimétrica foi claramente demonstrado nesta crise. Outro exemplo é o trabalho de Daniel Kahneman e Amos Tversky, que ganharam o prêmio Nobel de Economia em 2002, sobre o comportamento irracional sistemático e previsível. As teses deles também foram reforçadas pelos acontecimentos. As teorias que se baseiam em informação imperfeita e racionalidade limitada vão se destacar. De certa forma, você pode dizer que a crise fortaleceu várias correntes da economia moderna.
EN_Um dos motivos para a popularidade das teorias sobre eficiência dos mercados e racionalidade é que elas permitem a criação de fórmulas matemáticas precisas para prever o futuro. Há alternativas?
A matemática que está na base dos modelos atuais está errada. Por causa disso, questões complexas, como a quebra de bancos, foram ignoradas. Um exemplo de alternativa vem da engenharia eletrônica ou de rede. Nesses sistemas integrados, qualquer aumento de força em um ponto pode derrubar todo o sistema. A matemática que a maioria dos economistas utiliza hoje nunca poderia aceitar esse tipo de evento. Mas quando você olha para a crise atual vê que um problema numa parte do sistema contaminou o todo. Há bons modelos matemáticos que exploram isso, mas eles não fazem parte das teses preponderantes. Só agora começam a receber atenção.



MAIS GOVERNO_
Para Stiglitz,
está morta a ideia de que os mercados
são eficientes e
capazes de autocorreção,
o que abre espaço
para aumento da regulamentação




EN_O senhor vê um novo Keynes no horizonte? Alguém que possa ser tão importante e influente como o economista britânico foi nas décadas de 30 e 40?
Não sei. A crise colocou em evidência o trabalho que fiz com Bruce Greenwald, que explica de forma bem robusta o tipo de fenômeno que está ocorrendo agora. No livro Rumo a um Novo Paradigma em Economia Monetária, publicado em 2003, nós desenvolvemos teorias que mostram como a quebra de um banco poderia ter efeitos no sistema financeiro todo, de uma forma que quase vimos em setembro do ano passado. Nós desenvolvemos modelos sobre esse fenômeno antes...
EN_O senhor está dizendo que é candidato a ser um novo Keynes?
Isso eu não sei. O que estou querendo dizer é que há um grupo de pessoas que tem apresentado várias ideias demonstradas pela crise atual.
EN_Os centros de ensino nos Estados Unidos e na Europa são responsáveis por boa parte da teoria econômica dominante. O senhor vê agora uma descentralização do conhecimento?
Sim. Um certo fetichismo nos Estados Unidos levou [os americanos] a focar em um grupo de ideias divorciadas da realidade. Essas ideias continuam a ter alguma ressonância nos Estados Unidos, e será difícil removê-las. Mas na América Latina, na China, na Índia, vejo uma receptividade muito maior às críticas a essas ideias. Esses são lugares onde um novo debate intelectual tem ocorrido há bastante tempo.
EN_Em países como o Brasil, que tipo de agenda pode surgir?
Aqui temos discutido, por exemplo, o papel do Banco Central, as metas de inflação... Muitas das doutrinas dos bancos centrais foram abaladas pela crise. Está claro que Alan Greenspan [ex-presidente do Fed] não fez um bom trabalho. E, dos países que foram bem [nesta crise], há muitos que não focaram nas metas de inflação e perceberam que tinham uma responsabilidade não apenas com a inflação das commodities, mas também com a estrutura financeira. Eles todos tomaram uma posição mais variada em relação às metas de inflação. Eu, aliás, acho que as metas de inflação são uma dessas ideias simplistas que só são justificadas no contexto de modelos teóricos muito básicos, que agora estão sendo rejeitados.

“Acho que as metas de inflação são uma dessas ideias simplistas
que só são justificadas no contexto de modelos teóricos muito básicos,
que agora estão sendo rejeitados”,
afirma Stiglitz

EN_Além das metas de inflação, o senhor vê outras discussões?
A que envolve a noção de que desregulamentação financeira e do mercado de capitais é o melhor caminho. Essa é uma ideia que até recentemente foi pouquíssimo contestada. Essa noção mostrou-se perigosa. Em alguns casos, ajudou a propagar a crise. Em outros, a criá-la. Isso não quer dizer que é preciso aceitar qualquer tipo de regulamentação, mas você precisa ter um conjunto de regras apropriadas. Os extremos de desregulamentação que os Estados Unidos seguiram estavam claramente errados. O Brasil nunca foi pego por isso da mesma forma, mas é certamente um ponto em que é preciso ter cuidado.
EN_É mais fácil para países em desenvolvimento mudar suas crenças?
Muitos países em desenvolvimento estavam tentando descobrir de forma mais proativa qual é o equilíbrio ideal entre governo e mercado. Nos Estados Unidos, temos uma amarga ironia: porque acreditávamos que o governo não deveria fazer nada, agora temos um governo mais intervencionista do que nunca. Os Estados Unidos estão vivendo em um deserto ideológico agora. Ninguém quer admitir que todos tiveram de se voltar para o Estado porque o setor privado não conseguiu se consertar. Mas, na maior parte do mundo, não há uma barreira ideológica tão forte.
EN_Em artigos recentes, o senhor disse que alguns países em desenvolvimento poderiam aprender lições erradas da crise.
Agora entendemos que é preciso ter um papel para o governo, mas temos que saber qual é esse papel. E só porque os Estados Unidos adotaram uma postura de “estado de bem-estar corporativo”, não significa que esse modelo deva ser seguido. Esse é o pior modelo econômico. Espero que outros países não o sigam, porque nós mostramos o que não deve ser feito. Infelizmente, algumas pessoas imitam os Estados Unidos mesmo quando fazemos a coisa errada.
*Economista. Nobel de Economia de 2001.

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