é um intelectual que não fala manso quando se trata de discutir as políticas de administração dos museus e dos acervos de arte no Brasil. Costuma fazer um diagnóstico muito pouco condescendente, reclamando da estagnação crônica das coleções públicas. Zero Hora decidiu ouvi-lo a propósito do incêndio que, há 10 dias, destruiu grande parte da obra de Hélio Oiticica – o artista brasileiro de maior projeção internacional, criador dos parangolés e dos penetráveis, inspirador do movimento tropicalista, falecido em 1980, aos 42 anos. Um conjunto de mais de mil itens legados por Oiticica foi consumido pelo fogo, na casa que pertencera a ele, hoje ocupada por seu irmão, no Rio de Janeiro.O episódio, percebido como uma tragédia, pelo menos inflamou o debate sobre a gestão de obras deixadas por artistas mortos.
Zero Hora – Diante de um episódio como o da destruição das obras de Hélio Oititica, aparece uma tendência forte em se culpar a família. Sem entrar no mérito específico desse caso, mas pensando de forma mais genérica, o que se poderia esperar daqueles que, por herança, se tornam responsáveis pela preservação de um legado artístico e cultural?
Paulo Sérgio Duarte – Existem duas respostas a sua questão. O que esperar das famílias? E o que esperar dos responsáveis pela preservação de um legado artístico e cultural? Vamos deixar o aspecto privado para depois e iniciar com a questão pública. No caso do Brasil, seria preciso instituir as artes visuais como um valor simbólico nacionalmente reconhecido. Seria preciso estabelecer uma política de aquisição de obras que incluísse não só os acervos de artistas mortos mas que concedesse bolsas de trabalho e aquisição para artistas vivos. O importante é uma política pública de aquisição de obras acompanhada de investimentos em museus dignos de recebê-las. Isso começa pelos recursos humanos. É preciso acreditar na arte como um valor. Como se acredita que o cinema é. Enquanto a Agência Nacional de Cinema tem mais de 400 funcionários, a Coordenadoria de Artes Visuais da Funarte tem 10. Quanto às famílias, espero que tenham plena consciência da liberdade de expressão e não exerçam o papel de censoras de leituras críticas dos trabalhos.
ZH – Alguns comentaristas, depois do episódio do incêndio, chegaram a mencionar como alternativa o tombamento de acervos como patrimônio artístico nacional. Você considera isso viável?
Paulo Sérgio – O tombamento é um instrumento jurídico de preservação de um bem cultural. Tomba-se a herança de uma família, uma coleção privada, imobiliza-se um patrimônio, pressupondo-se que o Estado exercerá efetivamente o controle sobre esses bens. O tombamento não passa do reconhecimento simbólico do valor do bem, que, na prática, nunca é acompanhado dos investimentos necessários à preservação. Além disso, o tombamento impede legalmente que a obra possa pertencer a acervos fora do país. Acho muito importante que existam obras de artistas brasileiros em acervos internacionais. Já pensou Matisse só na França, Miró só na Espanha, Beuys só na Alemanha? É de uma burrice lamentável.
ZH – Em uma perspectiva ideal, qual deveria ser o papel do Estado na preservação de acervos de artistas já falecidos?
Paulo Sérgio – Se for estabelecida uma política permanente de aquisição de obras de arte, o problema dos mortos desaparecerá e só surgirá em casos excepcionais. A verdade é que nós não temos nada. Em qualquer cidade do Brasil não pode se dar uma aula de História da Arte no Brasil com os acervos expostos. Em São Paulo, a situação está um pouquinho melhor por causa da continuidade na política da Pinacoteca do Estado. Mas nem mesmo lá existem coisas óbvias para a História da Arte no país. Então o problema com os mortos começa muito antes: em que museu eu posso dar uma aula sobre Pancetti, sobre Goeldi, sobre Guignard? Em nenhum museu do Brasil existem salas dignas sobre esses artistas, que evidentemente estão na História da Arte. Graças a Deus, existe o Museu do Pontal, no Rio de Janeiro, um excelente acervo de escultura popular, o Instituto Cultural Inhotim, em Brumadinho, Minas Gerais, um dos maiores parques de arte contemporânea do mundo, e a Pinacoteca do Estado de São Paulo, que, com todas as dificuldades, persegue um padrão exemplar.
ZH – O que seria desejável em termos de uma política pública de aquisição?
Paulo Sérgio – Ela é prioritária. Artista vive do que faz, e vender a obra é fundamental. Comprar também é importante. Mas com que critérios? Que injunções tem com o mercado, com feiras de arte, quem indica o que deve ser comprado? A isenção nesse caso deve ser clara e ser sempre decisão de um conselho e não de um indivíduo. Uma lição da Alemanha é importante: a incorporação de artistas jovens a grandes acervos. Isso é um estímulo. Aqui, outro dia, fui dar uma aula no Museu Nacional de Belas Artes, na sala de arte moderna e contemporânea, no Rio. Tive de explicar para os alunos que, além das imensas lacunas e das ausências de nomes fundamentais, os valores estavam invertidos. Quanto maior a obra, salvo raríssimas exceções, menor a importância do artista. Mesmo um museu raramente visitado cumpre a função de deseducar e não de educar. Essa é a nossa situação. O Museu Nacional de Belas Artes não tem uma política de aquisições, não tem um conselho, aceita doações de forma indigente..
*Professor da Universidade Candido Mendes, no Rio, curador da 5ª Bienal do Mercosul, em 2005, em Porto Alegre, Paulo Sergio integrou durante anos – até o ano passado – o conselho curatorial da Fundação Iberê
Reportagem de Eduardo Veras, ZH, 26/10/2009
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