"Jó Joaquim, genial, operava o passado - plástico e contraditório
rascunho. Criava nova, transformada realidade, mais alta. Mais certa?"
O trecho acima do conto "Desenredo" - do grande Guimarães Rosa - veio
me à cabeça logo que acabei a leitura do "Leite Derramado", de Chico
Buarque de Hollanda. Explicarei.
Chico já ganhou seu prestígio como compositor - que é inegável -, mas
no campo da produção literária ainda enfrenta resistências. Sua obra
tem aceitação dual: uns amam, outros queimariam na fogueira todos os
exemplares. Bem... Eu devo confessar que o Chico-compositor é mais
genial que o Chico-romancista, ele acostumou-nos mal, mas representa o
que de melhor se produz hoje no Brasil.
O livro - publicado em 2009 - foi bem aceito pela crítica - não em
unanimidade, claro. Ganhou prêmios de peso: Livro do Ano (polêmico,
oferecido pelo Jabuti) em 2010; Prêmio Portugal Telecom de Literatura de
2010; e a tradução para o espanhol - "Leche derramada" - ganhou
recentemente o Prêmio de Narrativa José Maria Arguedas.
O livro é uma tentativa de retratar as memórias do velho Eulálio
d'Assumpção - sim, esse é o nome. Um monólogo que toma todo o livro a
fim de convencer-nos que seu passado glorioso - que transpõe o Atlântico
e atravessa o império - reverbera a ponto de trazer tal glória ao seu
estado atual: um velho pobre, esclerosado, esquecido num leito de
hospital, esperando a morte chegar.
E onde é que o "passado plástico" de Jó Joaquim entra nessa história?
Na mente cansada e desordenada do pobre - mas orgulhoso - Eulálio,
passados misturam-se e a ordem dos fatos não possui sentido. Ao longo do
livro, os fatos retificam-se frequentemente - nem sempre com aviso.
"Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz
infância, lá na raiz da serra. [...] a fazenda na raiz da serra, acho
que desapropriaram em 1947 para passar a rodovia."
Lembranças da infância e da adolescência misturam-se e repetem-se.
Com humor sempre presente advindo do absurdo das histórias, dos
preconceitos do protagonista - que não são poucos -, da repetição dos
fatos, das releituras. O passado de Eulálio torna-se plástico, pois nem
ele próprio sabe bem como contá-lo e defini-lo.
"[...] e era natural que me causasse espécie entrar comigo no
elevador um grandalhão com cara de nortista, nariz chato, pele grossa.
Indiquei-lhe o elevador de serviço, mas ele me deu as costas e apertou o
botão do meu oitavo andar."
Os detalhes de um passado que mistura esplendor e contos da vida
privada são expostos sem vergonha. As garçoniéres de Paris, os ímpetos
incontíveis, tudo é descrito com detalhes horrorizantes ou cômicos.
"Matilde repetiu, coragem, Eulálio, e já agora, em sua voz
ligeiramente rouca, parecia que meu nome Eulálio tinha uma textura.
Falou meu nome como se o arranhasse um pouco, e quando num volteio se
retirou, tive como temia novo arrebatamento obsceno. [...] Se desejo era
aquilo, posso dizer que antes de Matilde eu era casto."
A morte de Matilde é o ponto que mais possui versões. Por ser um
episódio doloroso, talvez. Ela é apresentada como tuberculosa,
esquizofrênica, mãe irresponsável, esposa infiel e mulher de pouca
saúde. Cabe ao leitor escolher a melhor história ou ficar no maravilhoso
ponto da dúvida.
A linguagem adaptada a um homem que chegou ao século XXI sem sair do
século XIX foi bem colocada. A pontuação é utilizada de modo peculiar.
A(s) história(s) é(são) bem contada(s).
O livro merece, sim, os prêmios e elogios que recebeu. Num tempo de
literatura de mercado, precisamos valorizar os que ainda se põem a
descrever a vacuidade das nossas vidas.
O livro termina com a descrição da morte de um Assumpção - "que já não dizia nada com nada" - numa espécie de sugestão de "não há nada novo debaixo do sol".
Os eulálios continuariam existindo - inclusive literalmente, pois os netos, bisnetos, trinetos tiveram o mesmo nome do orgulhoso Eulálio.
Viva Chico! - Eu indico!
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Fontes: http://lounge.obviousmag.org/a_razao_singular_do_segredo/2013/04/
em artes e ideias por Raul Albuquerque em 19 de abr de 2013 às 16:34
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