Arnaldo Jabor*
Como alguns devem ter notado, tirei férias recentemente e
fui correndo para Paris. Essa vida de articulista e comentarista pode
envenenar a alma. Além dos processos que tenho enfrentado, minha
profissão é prestar atenção nos 'malfeitos' políticos, eufemismo do
governo para roubalheiras e cinismo. É como trabalhar no Instituto
Butantã - um dia a cobra te morde. Por isso, de repente começa a pintar a
depressão não apenas pelas coisas que acontecem no País, mas, pior,
pelas coisas que 'não' acontecem. Vejam nos jornais como as notícias são
sobre fracassos: a meta não atingida, a obra inacabada, a lei que não
pegou, o assassino que foi solto; em suma, nosso problema principal é a
paralisia secular, descrita uma vez por Mario Henrique Simonsen
brilhantemente: "O Brasil é um país sob anestesia, mas sem cirurgia". E a
ideologia do partido no Poder é manter essa paralisia em nome do Estado
e seus comedores. É deprimente o que o Brasil 'não' faz.
Por isso, saí de férias, em busca de beleza e civilização. E fui
direto para o Museu Picasso. Na saída, minha mulher Ananda Rubinstein
disse, iluminada: "Picasso me dá vontade de viver!" É isso mesmo. Ele
não nos faz sonhar com algo que não esteja presente, palpável, vivo. Ele
não tinha uma "mensagem" para passar ao mundo ou besteiras assim. Ele
pintava a própria mudança, seu viver, seu envelhecer, suas comidas e
amores, até os maravilhosos e eróticos quadros de velhos apalhaçados, de
mosqueteiros loucos nos últimos meses de seus 92 anos. Picasso pintava a
forma das coisas desconhecidas. Peguem um acrobata seu, um beijo na
praia, um Minotauro estuprando uma virgem, peguem suas amantes viradas
ao avesso e ali só existirão o corpo e suas peripécias. A arte deve
ensinar a viver.
Picasso mudou o olho humano. Cézanne já tinha pintado a geometria da
natureza, declarando: "Eu sou a consciência da paisagem que se pensa em
mim". Cézanne recortou o espaço e Van Gogh captou o tempo. Olhem um Van
Gogh e vejam o tempo passando sobre as coisas. Nada para em Van Gogh: a
igreja se move, os lilases ventam, a matéria fervilha em cada pincelada,
as cadeiras, as camas, as coisas passam, parece que vemos os átomos
girando, os girassóis rodando, vemos a morte passando no rosto do doutor
Gachet.
Depois, Picasso chega e pinta os dois: o espaço-tempo. Uma de suas
viúvas disse que Picasso não podia ficar com a mão parada. Mexia em
tudo: de um peixe comido ele tirava a espinha e fazia uma cerâmica, de
um selim de bicicleta ele esculpia uma cara de boi, o regador em um
homem, um automóvel em macaco, um beijo na praia em uma fome voraz entre
corpos, virava mulher em flor e flor em mulher.
Fez cerca de 36 mil quadros, além de esculturas, tudo. No museu,
vemos que ele se recusava a ser "importante", a ser "metafísico", de ser
um pintor "acima" da vida. Em sua arte, há uma permanente luz até de
caricatura. Picasso é um pintor popular. Por isso, as filas se formam
para ver seus quadros. Picasso era um rude espanhol, um torcedor de
futebol, um comedor de mulheres, um sacana aficionado por touradas e que
não queria humilhar ninguém. Picasso era um espantoso retratista da
realidade, só que a "realidade" para ele não era essa série de arestas e
volumes verossímeis a que estamos acostumados, pousados no horizonte da
perspectiva - era transiente e louca. Por outro lado, Picasso nunca
acreditou na babaquice do abstracionismo metafísico, que almeja uma
"essência" de algo finalmente flagrado, "para longe", "mais além" da
aparência suja do mundo. Os grandes artistas buscam a realidade pois,
como disse Woody Allen, "ninguém sabe o que é a realidade, mas ainda é o
único lugar onde se come um bom bife".
Picasso sempre amou justamente essa face "suja" do mundo; sempre
viveu em busca da figura, sim, da figura, mas que, para ele, era muito
mais complexa que as chatas realidades que o burguês chama de
"naturais". Para ele, nada existia além do olho que, esse sim, pode ser
ampliado como um telescópio ou caleidoscópio, se não estiver domesticado
por ideologias ou narcisismo de 'gênios'. Picasso nunca precisou do
dada ou do surrealismo para sair "fora" da aparência. Picasso não
deformava nada, como costumam dizer - seu olho negro profundo que nos
fita sem parar parece dizer: "Eu vejo todos os lados das caras, dos
corpos, eu vejo as figuras dentro das outras, eu vejo o espaço entre as
pessoas, as linhas invisíveis que as ligam, os vazios dentro delas, eu
vejo também o ridículo da beleza como algo "sublime" a se chegar. Não há
nada a se atingir, por isso a minha frase "Não procuro; acho" é tão mal
interpretada. Ela não quer dizer que eu tenho talento milagreiro ou
algo assim. Não. Essa frase quer dizer que eu não sei, antes, para onde
estou indo; eu só chego ao quadro ao final. Raramente sei o que farei, a
priori; por isso (cá entre nós), não gosto muito de Guernica, feito para criticar a guerra... É legal, mas meio alegórico....
Picasso era um grafiteiro. Não buscava "auras". Seus quadros são até
mal-acabados, nas coxas, como o cotidiano. Não foi por acaso que
Jean-Michel Basquiat, o gênio pichador, comprou um Picasso com o
primeiro milhão que ganhou. Basquiat também, do fundo do desespero que
viveu quando era um mendigo desconhecido, nunca desprezou a vida, com
seus quadros espantosos e sofridos. Picasso nunca teve a romântica
amarelidão do sofrimento em busca do "sentido" ou do "belo". Pintava a
própria experiência, felicíssimo, de bermudas, comendo, trepando e
fumando, nunca acreditou que o "artista só é grande se sofrer".
Nós não vemos Picasso; ele é que nos vê. Por isso, faz tanto sucesso.
Ele nos explica. Picasso sabia que a morte acontece, mas não existe. Só
existe a vida. Ele é uma lição de sabedoria para a arte contemporânea,
tão caída nas agruras de uma distopia 'bodeada' que faz do futuro um
cemitério deprimente. Como Picasso mostrou, a "obra de arte deve ser
exaltante", frase de Stravinski que ele provou em sua obra. Saí do museu
pensando no PMDB e PT, mas com mais vontade de viver.
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* Cineasta. Escritor. Colunista do Estadão.
Fonte: Estadão on line, 23/04/2013
Imagem da Internet : Obra de Picasso:Weeping Woman 1937
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