Paulo Ghiraldelli Jr.*
Na cultura grega, o rapsodo Homero pode
ter sido quem organizou o que veio de uma tradição oral de educação
popular, o canto dos poemas épicos Ilíada e Odisseia.
Esses poemas deram aos gregos sua identidade como “helenos”, os que
participaram da Guerra de Troia, uma guerra feita em torno do rapto da
princesa Helena. Ora, na cultura judaica, a necessidade de se escrever
algo que, depois, iria ser o Velho Testamento, também se fez
tardiamente. Jesus mesmo ensinou e pregou a partir de uma tradição oral.
A base maior de nossa Bíblia, como é conhecida hoje, é fruto do
consenso católico do Concílio de Niceia, ocorrido somente no século IV
de nossa era. Portanto, já segundo a fusão da própria cultura helênica,
ou melhor, greco-romana, com a cultura judaica e outras.
A Bíblia é um livro clássico. O
livro mais vendido do mundo. A religião judaico-cristã não é a maior do
Planeta em número de adeptos, mas certamente é singular em termos de
organização material e intelectual. A existência do Estado do Vaticano e
do Papado atesta essa força. Assim, mesmo no Oriente, não é difícil
encontrarmos a Bíblia nos lugares que menos esperamos. Ela é
polifônica, são inúmeras vozes falando de pontos históricos e
geográficos diferentes. Sua unidade é obviamente imaginária, mas isso
não significa que ela não possua um fio condutor. Levando a sério o
filósofo Paul Ricoeur, penso que não seria errado dizer que um bom fio
condutor que podemos seguir para ler a Bíblia é tomá-la como sendo a história de um personagem que, tudo indica, é o principal: Deus. A Bíblia é uma espécie de história de Deus.
Do ponto de vista filosófico, gosto de tomar a Bíblia
segundo dois grandes acontecimentos. O primeiro é de ordem ontológica e
ética, o segundo é de ordem moral. No primeiro, Deus se revela para
Moisés no episódio da Sarsa Ardente, expondo quem é e ditando leis para
tribos que deveriam formar uma nação coesa, mesmo que errante. No
segundo Deus se apresenta como Jesus, buscando fazer uma revolução no
coração das pessoas, dando novas regras de convívio, agora para uma
nação que não poderia mais, sempre, contar com as regras então recebidas
de Moisés.
O episódio da Sarsa Ardente é
profundamente filosófico. Deus não diz seu nome, mas afirma-se
estranhamente para Moisés dizendo “Eu sou aquele que sou”. É um
enunciado que podemos ler da seguinte maneira: “Eu sou aquele que é”.
Quem? Ora, o que é! O oposto do nada. O que não é nenhuma
entidade embora esteja na base de cada uma e de todas. Tudo aquilo que
é, é, portanto, funda-se como entidade porque antes de tudo é. Moisés
não era nada tolo. Vendo que a formulação filosófica seria de difícil
entendimento para um povo acostumado a fórmulas antropomórficas das
divindades, insistiu com a voz da Sarsa Ardente no sentido de se
apresentar de modo claro, e então Deus ensinou um modo de ser tratado:
sugeriu que fosse apresentado também como o Deus dos antepassados do
povo de Moisés, o Deus de Abrahão, de David etc. Moisés voltou com as
Leis nas mãos, a famosa “Tábua”. Junto disso, trouxe essa dupla
formulação na cabeça, uma filosófica e outra histórico-popular.
Aos intelectuais quem falou foi o “Eu
sou”. Ao povo quem falou foi “o Deus de Abrahão, de …”. Para a vida do
dia a dia isso importava menos. Valiam mais, daí em diante, as leis das
“tábuas” trazidas por Moisés. Mas a lei que deveria conformar o ethos
do povo de Moisés não estava de todo separada da ontologia. Ela trazia
um pé popular na ontologia. O primeiro mandamento pedia amor a Deus e só
a ele. Em termos filosóficos isso significava: as entidades possuem o
ser, tudo no mundo só é porque é, ou seja, funda-se enquanto
participante do Ser; enquanto que o próprio Ser é tudo e ao mesmo tempo
independente de tudo. Amar a Deus, isto é, querer ficar junto de Deus, é
simplesmente reconhecer que cada entidade não é tudo, pois o que é, o
Ser, é que é sua base. A união é com o que é, não com cada coisa que existe. O que existe é contingente, alterável, mas o que é
é, e permanece fundando o campo do inalterável, do que está acima do
tempo e do espaço, trata-se do Ser ou, na linguagem bíblica, de Deus.
Quaisquer deuses são entidades. Deus não, ele é. “Eu sou o Eu sou”, disse a Voz a Moisés diante da Sarsa Ardente.
Caso Moisés fosse um filósofo grego,
talvez ele tivesse visto não a Sarsa Ardente, mas recebido as Musas que,
então, lhe diriam um poema sobre a natureza, um poema sobre o ser,
afirmando a imutabilidade, a perenidade e a perfeição deste. Ele seria
Parmênides de Eleia. Mas Moisés tinha outra cultura, outras necessidades
e, ao invés de filósofo, era líder político.
As leis do povo de Moisés não foram leis éticas no sentido banal, político do termo. Eram leis geradas pelo que é. Moisés trouxe uma organização para o ethos
vinda do campo ontológico. Mas o mundo caminhou e a ética sozinha logo
não bastou. Era preciso uma moral. O mundo de língua grega não tinha
propriamente uma palavra para moral. Com a cultura romana se fundindo
com a grega o latim deu essa palavra: mores. O que seria? Algo parecido com ethos,
ou seja, costumes e regras para viver, mas não a regra para a vida da
cidade, a vida pública, e sim regra para a vida particular. Ora, os
Mandamentos ou as Leis de Moisés eram claramente éticas e, portanto,
políticas. Faltava para os judeus um conjunto de regras mais determinado
para a vida íntima, para a vida pessoal, digamos assim. Um povo que
vive dominado por outros, para se preservar, não pode viver nas regras
éticas, uma vez que estas são as regras dos dominantes. Precisa ter
regras privadas, no que se faz em casa, no que se faz sem que o soldado
romano entenda e venha colocar o dedo. Assim começa a outra parte da Bíblia,
a do Novo Testamento. Deus aparece não mais com Ser e Juiz, mas como
Homem, como quem tem de viver na intimidade em um mundo particular.
Todas as regras de Jesus, então, quase
que subvertem os Mandamentos. Não se trata de oposição, embora também
seja. Mas, é mais correto ver as regras de Jesus como uma forma de dizer
para os judeus o seguinte: “dai a César o que é de César”. Ou seja: se
os judeus nunca vão ter uma cidade, então as Leis de Moisés, os
Mandamentos, não nos servem sempre, pois eles são para o comando da vida
pública. Enquanto os judeus permanecerem como nação que pode, a
qualquer momento, ser desterrada, ou nação que vive em sua própria
Terra, mas dominada por outros, o que tem de valer são as regras que
podem ser obedecidas enquanto leis da consciência. Leis da consciência
são regras da vida íntima, justamente o lugar em que pode haver
liberdade para se decidir. Foi isso que Jesus trouxe. Ele recolocou para
os judeus a liberdade perdida. Ele libertou os judeus de um modo
diferente da libertação que Moisés propiciou, fugindo do Egito. Ora,
sabemos bem que é a tradição judaico-cristã que faz valer a vontade e a
liberdade da vontade, ou seja, a própria ideia de liberdade individual
moderna. Nesse sentido, Jesus deu continuidade ao Velho Testamento.
Jesus trouxe regras de convívio
particular, pessoal, e organizou tais regras naquilo que o filósofo
Pascal considerou como elemento superior à razão e à fé: a caridade.
Nesse sentido, o episódio mais importante do Novo Testamento é o do Bom
Samaritano. É nele que se dá a fusão do Velho com o Novo Testamento.
Jesus reconhece a identidade política do outro, mas ensina a não reagir
como o romano, mas segundo um novo comportamento, o de fé de que há
sentido e bondade no mundo, e que então é possível ser atendido até por
quem não esperamos. O Samaritano pode ser bom. O Samaritano, tido como
horrível, cumpre a lei simples que os bons devem cumprir, isto é, a de
desprezar diferenças étnicas e tudo o mais e colaborar com o outro. Dar a
outra face é apenas uma radicalização teatral disso, mas não deixa
também de ser metafórica e literalmente uma verdade cristã.
Essa é a história de Deus, ou parte dela. Está na Bíblia. Não é uma história para crentes e ateus, é uma história para inteligentes. Trata-se de uma história para filósofos.
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Filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ.
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/a-historia-de-deus/ 15/04/2013
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