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Operação policial gigantesca esvaziou Watertown, no subúrbio de Boston
Que seria uma mente doentia? A mente sadia é incapaz da crueldade?, filosofa escritor policial sobre o atentado
O décimo-primeiro romance policial de Luiz Alfredo Garcia-Roza*
chega aos finalmentes. Mas ele assume que se encontra em reticências.
Quando pensou que o último capítulo seria o definitivo, abriu-se mais
um. Três pontos, porém, faz questão de repetir nessa sua saga: o
delegado Espinosa, a cidade do Rio de Janeiro e um personagem comum. O
homem da multidão.
"Nas grandes cidades, os passos dos criminosos se perdem", justifica o
ex-professor da UFRJ, que escreveu oito livros sobre filosofia e
psicanálise antes de decidir, aos 60 anos de idade, que sua praia seria o
enigma do assassinato. Garcia-Roza não tem muito apreço pelo mundo
cartesiano. Prefere as ambiguidades, as sombras, os cantos ocultos. Daí
que o atentado em Boston lhe pareceu perscrutante desde o início, na
concentração de gente na maratona, até a morte de um suspeito e a prisão
do outro, que foi onde parou esta entrevista.
O escritor carioca centra suas exclamações num ponto-chave, que
independe do desfecho do caso: a mente de um criminoso não é
necessariamente doentia. Ou, literalmente por outro lado, uma mente
sadia é capaz de crueldades, sim. "Não há o Bem e o Mal, mas apenas o
bom e o mau, ambos humanos, demasiadamente humanos." Tampouco alivia o
inconsciente: "Os sonhos de cada um de nós são o que há de pior em
termos de delinquência". Batendo nessas teclas ele nos envolve em mais
uma trama, ao mesmo tempo real e profundamente entremeada de traços de
ficção.
Lógica de bombardeio
"Não vejo muita diferença quanto a se
tratar de um evento esportivo ou da inauguração de uma grande casa de
espetáculos ou mesmo de um comício político. Seria diferente se na
maratona (ou no comício político) uma pessoa determinada fosse o alvo
visado e um atirador escondido no interior de um dos prédios o
atingisse. Claro que no caso da maratona o alvo poderia ser o prefeito, o
governador ou a promotora do evento. Mas o autor do atentado não deixou
nenhuma indicação quanto a isso. A lógica do autor do atentado é a
mesma do autor de um bombardeio aéreo: não visa a ninguém em particular,
o alvo não é uma singularidade, mas um aglomerado (o maior possível) de
pessoas.
Os sem rosto
"A multidão dilui a singularidade das
pessoas e, quando faz isso, fica essa multiplicidade sem cara, sem
rosto, às vezes sem sexo. A polícia investigativa criminal só começou
com o surgimento das grandes cidades justamente porque aí você tem as
multidões. Walter Benjamin já disse: "O conteúdo social originário do
romance policial é a perda das pegadas de cada um na multidão da cidade
grande". Benjamin se referia a uma época em que Paris era uma metrópole
fantástica, mas sem nenhum dispositivo eletrônico. Uma multidão era
realmente o lugar onde você se perdia. Hoje existe um aparato pan-óptico
fantástico ao qual se pode recorrer. Dificilmente uma pessoa escapa
desse controle. E sabe-se lá se os investigadores contaram com os
celulares, esse aparelhinho infernal que foi feito para escutar e depois
descobriram que tira foto. Não tem escapatória mais. Fica difícil fazer
romance policial.
A fera interior
"Se um ataque terrorista é necessariamente
produto de uma mente doentia? Essa é uma questão delicada. O que seria
"uma mente doentia"? Invertendo a pergunta: só uma mente doentia seria
capaz de tamanha maldade? Uma mente sadia é incapaz de crueldade? O Mal é
uma doença e a maldade o seu sintoma? Durante séculos nos ensinaram que
o homem é essencialmente bom. Mesmo porque, para grande parte do mundo
ocidental, ele foi feito à imagem e semelhança de Deus, seu criador.
Crescemos acreditando que o mundo continha nele próprio o Bem, e que o
homem como parte desse mundo reproduzia na sua interioridade o Bem
inerente ao mundo. Imaginemos um grande círculo no interior do qual
colocamos o Bem. O Mal "habitaria" o exterior desse círculo, seria o
outro, o além-muros, o além-fronteiras, a escuridão infinita, o silêncio
eterno, a exterioridade pura ou o puro outro. Seria representado no
nosso imaginário como o estranho, o estrangeiro, a peste, o monstro
assassino. O difícil é admitirmos que o Mal e o Bem possam ambos ser
frutos do próprio homem: não há o Bem e o Mal, mas apenas o bom e o mau,
ambos humanos, demasiadamente humanos. A partir da eliminação dessa
linha que circunscreve, separa e isola o Bem do Mal, a fera e o
assassino passam a habitar a nossa própria interioridade – assim como
habita o alívio quando saem milhares de policiais à caça de um suspeito
para evidentemente matá-lo. A pessoa nunca admitiria que houvesse um
fuzilamento público. Mas aí vai descobrindo que aquilo é confortável
porque ela faria aquilo daquele jeito, mesmo sem consciência.
A vítima universal
"Um atentado como esse de Boston nos afeta
pela mesma razão que somos afetados pelo terremoto da Nicarágua, pelo
tsunami da Tailândia, pelo ataque às Torres Gêmeas de Nova York, pelo
Holocausto, pelas guerras fratricidas da África. Porque as vítimas são
nossos semelhantes; somos afetados individualmente por identificação e
coletivamente enquanto humanos, embora nada de parecido tenha acontecido
conosco, em nosso país. Além do mais, alguns desses acontecimentos
acompanhamos ao vivo pela televisão no instante em que ocorreram, como o
ataque às Torres Gêmeas. Foi como se estivéssemos olhando pela janela. O
choque do segundo avião nós o sentimos no momento em que ele se deu, ou
nos segundos que o precederam. Na Maratona de Boston, não podemos
esquecer que dezenas de brasileiros participavam da corrida e outros
tantos, parentes e amigos, assistiam. Milhares de brasileiros moram em
Boston. Somos afetados, apesar dos 8 mil quilômetros que nos separam.
Assim como o fantasma de Hiroshima nos afeta até hoje.
A humilhação
"De fato, a humilhação tem um papel central
na explosão de diversas formas de violência, entre elas o terrorismo,
como afirmou a psicóloga alemã Evelin Lindner. A humilhação diminui a
potência humana: potência de pensar e potência de agir. O sujeito
torna-se sujeitado. Aquilo que marca a condição humana (o sujeito em
ato) cede lugar à satisfação da necessidade (o comportamento animal).
Quando esse limite inferior da potência humana ameaça se romper, quando o
ato (efetivação do sujeito) corre o risco de ser reduzido à
domesticação animal, pode ocorrer a explosão de diferentes formas de
violência. É como se o homem, ao chegar próximo do seu ponto de
entropia, explodisse para dar início a uma nova ordem.
O anonimato
"Um atentado não assumido por seu agente ou
cujo autor não é descoberto pode perder o estatuto de atentado. Pelo
seu efeito devastador, ele precisa de um autor, um Whodunit (who done
it?, quem fez isso?). Caso esse autor/agente permaneça desconhecido, ele
pode tanto ser referido a uma exterioridade imaginária e demonizado
como pode ser referido à interioridade. O agente pode ser não o outro
exterior, mas o próximo, o semelhante, o vizinho ao lado. Mas essa
interiorização do exterior só será possível se a linha que separa o Bem e
o Mal, o Interior e o Exterior, for removida ou eliminada.
Saturação
"A exibição repetida das explosões em
Boston e toda a atenção da mídia em torno delas acentua num primeiro
momento a sordidez do terror. Mas, se essa exibição se torna excessiva,
ela tende a saturar a percepção do telespectador e mudar seu foco de
atenção para outros aspectos afastados do atentado propriamente dito,
assim como o relato repetido de um evento tende a eliminar a carga
emocional (triste ou alegre) do fato narrado.
Os suspeitos de costume
"Se, num primeiro momento, há uma tendência
a punir "com todo o peso da Justiça", há igualmente o risco de uma
busca frenética de "culpados" cometer excessos e injustiças
irreparáveis. Num primeiro momento, não passou pela cabeça de ninguém
(ou de quase ninguém) que o autor do atentado pudesse ser um cidadão
americano, isto é, pertencente ao interior, ao círculo do Bem, daí a
tendência quase imediata de se procurar o criminoso na exterioridade,
isto é, extramuros, o estranho, o estrangeiro, o vizinho muçulmano, o
exterior mais à mão. Caso o autor (o Mal) não fosse encontrado na
exterioridade, a busca se voltaria para o interior, para o íntimo, o
familiar, a casa, o quarto fechado. O resultado disso poderia ser a
angústia, em lugar da paranoia.
A caça
"A partir do momento em que se estabelece
que aquele ou aqueles sujeitos são culpados, eles passam a ser, além de
culpados, extremamente perigosos. Se são extremamente perigosos, devem
estar muito armados. E, se estão muito armados, você vai chegar
atirando. Forma-se um grande esquadrão de execução, típico dos grupos
que saem para caçar. De certa maneira, falando de forma figurada e
generalizando um pouco, toda noite saímos fazendo isso nos nossos
sonhos. É quando liberamos esse monstro interior, esse recalcado. Os
sonhos de cada um de nós são o que há de pior em termos de delinquência.
A rigor, se o sonho é dominantemente agressivo, matamos gente ou
matamos seres que estão no lugar de gente. Somos caçadores em potencial.
De modo que, quando se instaura uma perseguição desse tipo a um
suspeito, é como se essa licença para matar passasse a valer quando
estamos acordados. Aí a chance do outro é mínima.
O herói
"A imagem da cidade enclausurada reflete o
pavor do monstro. Tem um monstro solto na rua: fechem as portas,
tranquem as janelas. Ora, e aí? Vai ficar todo mundo preso e o monstro
lá fora? Não, tem que acabar com esse monstro. Daí os heróis policiais,
individualizados numa corporação. Triste do país que precisa de seres
idealizados. Os seres humanos normais não conseguem dar conta da
situação que eles mesmos criaram? O herói é um ser excepcional, é um
super-homem. Mas não precisa de heróis. Precisa de eficiência."
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PONTO POR PONTO
*LUIZ ALFREDO GARCIA-ROZA
Escritor e psicanalista, autor de livros de ficção policial, entre eles 'O silêncio da chuva'
Escritor e psicanalista, autor de livros de ficção policial, entre eles 'O silêncio da chuva'
Reportagem por MÔNICA MANIR - O Estado de S.Paulo
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