Paulo Ghiraldelli Jr.
Melancólicos e profetas – é assim que o filósofo argelino Jacques Rancière vê a esquerda e a direita atuais, particularmente em O espectador emancipado
(Martins Fontes, 2012, La Fabrique-Éditions, 2008). Aproxima-se assim
do modo como eu, do outro lado do Atlântico e colhendo registros
aparentemente bem diferentes, também observo os críticos do
contemporâneo ou do que há pouco tempo chamávamos de pós-moderno.
Os melancólicos da esquerda, em um campo
pós-marxista, enxergam o mundo atual ainda segundo a ótica do
procedimento crítico. Desse modo, repetem muito do marxismo. Denunciam a
“mercadorização” crescente de tudo e todos, vociferam contra a
“sociedade de consumo” e a “sociedade do espetáculo”. A diferença é que
agora, ao menos para alguns mais sofisticados, há o endosso de que a
crítica não consegue outra coisa senão ela própria se transformar em
mercadoria, objeto de consumo e espetáculo. Por sua vez, também esse
endosso-denúncia é também mercadoria, alimento do consumismo e palco de
mais espetáculos, criando uma situação de espelhamento infinito. É
justamente essa parte, a do continuísmo, que tira o elo entre crítica e
emancipação, justamente o que se encaixava perfeitamente no bojo do
projeto iluminista-marxista que teria sido vigente ao menos até trinta
anos atrás.
Aparentemente mais novidadeiros, os
profetas da direita se deslocam em um campo que em muito reproduz as
críticas vindas do movimento tradicionalista que serviu como reação ao
Iluminismo, em especial em sua versão revolucionária francesa. Também
aqui a mercadorização de tudo é assumida como um mal. Todavia, como
herdeiros da reação ao Iluminismo, a direita repõe no centro do mal do
mundo a quebra dos laços sociais pelo que é moderno, em especial o
surgimento do indivíduo democrático, que aparece antes como homem da
massa que homem democrático-liberal (e culto), e que pelo seu não
pertencimento aos laços sociais e às instituições tradicionais avança
sobre tudo e todos segundo o que manda a propaganda comercial e o
marketing político, com péssimos modos e com terrível capacidade de
destruição. A diferença marcante com a direita do passado é que esta não
é nada melancólica, ela deixa isso para a esquerda. Ela é profética e
diz a todos que podem resistir à barbárie, mas que devem entender que o
que é denunciado por eles é, de fato, uma profecia: vai se cumprir como
tragédia, ou seja, por acasos e acasos que conduzem ao que se profetizou
como resultado necessário.
O que faz esses dois grupos de
aproximarem – e também nessa observação Rancière e eu temos muitos
pontos em comum – é que ambos usam do procedimento da filosofia crítica.
Claro que aqui e ali estão aqueles que se imaginam desgarrados do
procedimento crítico, mas no frigir dos ovos não é difícil ver que se
integram nele como se ao fim e ao cabo a filosofia crítica fosse a
filosofia tout court. Nisso, Brasil e Primeiro Mundo Europeu
quase se igualam. Tanto lá quanto cá a filosofia é vista como
responsável pela tarefa de denunciar a cegueira do senso comum,
mostrando que há a distinção entre aparência e realidade, ilusão e
verdade, e que o segundo polo da dualidade, enquanto o que é o
não-aparente, só pode ser devidamente levado em conta como sendo o
efetivamente real por conta da filosofia. O esquema platônico, em que a
filosofia é a saída da Caverna se repete no esquema marxista em que a
filosofia crítica faz a desideologização do mundo moderno burguês. Caso
Marilena Chauí não fosse uma professora tão compromissada
partidariamente, seus manuais didáticos seriam usados pela direita de
modo tão ou mais tranquilamente do que são usados pela esquerda. Direita
e esquerda compactuam com tais manuais, comungando dessa visão
hegemônica de filosofia, que é tomada então como sendo a própria
Filosofia.
Este não é o único ponto no qual
Rancière e eu podemos concordar, fazendo com que eu possa apresentar aí
esse dado, brasileiro, em que Marilena Chauí aparece muito mais que como
um simples exemplo. Caso Rancière viesse acompanhando a Folha de S. Paulo
nesses últimos anos, ele cumprimentaria o jornal por sua capacidade de
ser um periódico contemporâneo de seu tempo, especialmente na escolha
dos seus colunistas filósofos. Os professores Wladimir Safatle e Luís
Felipe Pondé, mutatis mutandis, podem muito bem serem vistos como descritos aqui, segundo o modelo do melancólico e do profeta.
Em termos bem gerais e reduzindo ao
máximo o que se poderia dizer, Safatle tenta mostrar como que a
dominação se põe e se repõe, enquanto que Pondé avalia toda nossa
cultura ocidental como envolta no idiotismo do indivíduo democrata, se
por democrata entendemos antes Obama que Tocqueville.
Rancière veria ambos os filósofos da Folha
como não distantes da tradição crítica. Também os vejo assim, às vezes.
Claro que eles não se descreveriam assim. Eles se mostrariam mais
originais, Safatle se dizendo reformado pela psicanálise e Pondé se
mostrando discípulo da filosofia trágica. Não discordaria deles, mas não
falaria que isso poderia desmentir Rancière, e não acho que possa me
desmentir.
Há saída entre esses dois campos, do modo como eles se põem atualmente? Ou devemos achar que está bom assim?
A filosofia é, agora, uma obediente
seguidora do que foi dito por Nietzsche: não há texto, só interpretação –
indefinidamente. Mas a interpretação é feita segundo os mesmos cânones
de sempre, os que vigoraram de Platão a Kant chegando a Marx e Freud: a
saída do senso comum através da quebra do que Bacon chamou de “ídolos da
tribo” e do que Pascal chamou de frutos da imaginação.
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* Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/melancolicos-e-profetas/27/04/2013
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