domingo, 28 de abril de 2013

Melancólicos e profetas

 Paulo Ghiraldelli Jr.
Melancólicos e profetas – é assim que o filósofo argelino Jacques Rancière vê a esquerda e a direita atuais, particularmente em O espectador emancipado (Martins Fontes, 2012, La Fabrique-Éditions, 2008). Aproxima-se assim do modo como eu, do outro lado do Atlântico e colhendo registros aparentemente bem diferentes, também observo os críticos do contemporâneo ou do que há pouco tempo chamávamos de pós-moderno.

Os melancólicos da esquerda, em um campo pós-marxista, enxergam o mundo atual ainda segundo a ótica do procedimento crítico. Desse modo, repetem muito do marxismo. Denunciam a “mercadorização” crescente de tudo e todos, vociferam contra a “sociedade de consumo” e a “sociedade do espetáculo”. A diferença é que agora, ao menos para alguns mais sofisticados, há o endosso de que a crítica não consegue outra coisa senão ela própria se transformar em mercadoria, objeto de consumo e espetáculo. Por sua vez, também esse endosso-denúncia é também mercadoria, alimento do consumismo e palco de mais espetáculos, criando uma situação de espelhamento infinito. É justamente essa parte, a do continuísmo, que tira o elo entre crítica e emancipação, justamente o que se encaixava perfeitamente no bojo do projeto iluminista-marxista que teria sido vigente ao menos até trinta anos atrás.

Aparentemente mais novidadeiros, os profetas da direita se deslocam em um campo que em muito reproduz as críticas vindas do movimento tradicionalista que serviu como reação ao Iluminismo, em especial em sua versão revolucionária francesa. Também aqui a mercadorização de tudo é assumida como um mal. Todavia, como herdeiros da reação ao Iluminismo, a direita repõe no centro do mal do mundo a quebra dos laços sociais pelo que é moderno, em especial o surgimento do indivíduo democrático, que aparece antes como homem da massa que homem democrático-liberal (e culto), e que pelo seu não pertencimento aos laços sociais e às instituições tradicionais avança sobre tudo e todos segundo o que manda a propaganda comercial e o marketing político, com péssimos modos e com terrível capacidade de destruição. A diferença marcante com a direita do passado é que esta não é nada melancólica, ela deixa isso para a esquerda. Ela é profética e diz a todos que podem resistir à barbárie, mas que devem entender que o que é denunciado por eles é, de fato, uma profecia: vai se cumprir como tragédia, ou seja, por acasos e acasos que conduzem ao que se profetizou como resultado necessário.

O que faz esses dois grupos de aproximarem – e também nessa observação Rancière e eu temos muitos pontos em comum – é que ambos usam do procedimento da filosofia crítica. Claro que aqui e ali estão aqueles que se imaginam desgarrados do procedimento crítico, mas no frigir dos ovos não é difícil ver que se integram nele como se ao fim e ao cabo a filosofia crítica fosse a filosofia tout court. Nisso, Brasil e Primeiro Mundo Europeu quase se igualam. Tanto lá quanto cá a filosofia é vista como responsável pela tarefa de denunciar a cegueira do senso comum, mostrando que há a distinção entre aparência e realidade, ilusão e verdade, e que o segundo polo da dualidade, enquanto o que é o não-aparente, só pode ser devidamente levado em conta como sendo o efetivamente real por conta da filosofia. O esquema platônico, em que a filosofia é a saída da Caverna se repete no esquema marxista em que a filosofia crítica faz a desideologização do mundo moderno burguês. Caso Marilena Chauí não fosse uma professora tão compromissada partidariamente, seus manuais didáticos seriam usados pela direita de modo tão ou mais tranquilamente do que são usados pela esquerda. Direita e esquerda compactuam com tais manuais, comungando dessa visão hegemônica de filosofia, que é tomada então como sendo a própria Filosofia.

Este não é o único ponto no qual Rancière e eu podemos concordar, fazendo com que eu possa apresentar aí esse dado, brasileiro, em que Marilena Chauí aparece muito mais que como um simples exemplo. Caso Rancière viesse acompanhando a Folha de S. Paulo nesses últimos anos, ele cumprimentaria o jornal por sua capacidade de ser um periódico contemporâneo de seu tempo, especialmente na escolha dos seus colunistas filósofos. Os professores Wladimir Safatle e Luís Felipe Pondé, mutatis mutandis, podem muito bem serem vistos como descritos aqui, segundo o modelo do melancólico e do profeta.

Em termos bem gerais e reduzindo ao máximo o que se poderia dizer, Safatle tenta mostrar como que a dominação se põe e se repõe, enquanto que Pondé avalia toda nossa cultura ocidental como envolta no idiotismo do indivíduo democrata, se por democrata entendemos antes Obama que Tocqueville.
Rancière veria ambos os filósofos da Folha como não distantes da tradição crítica. Também os vejo assim, às vezes. Claro que eles não se descreveriam assim. Eles se mostrariam mais originais, Safatle se dizendo reformado pela psicanálise e Pondé se mostrando discípulo da filosofia trágica. Não discordaria deles, mas não falaria que isso poderia desmentir Rancière, e não acho que possa me desmentir.

Há saída entre esses dois campos, do modo como eles se põem atualmente? Ou devemos achar que está bom assim?

A filosofia é, agora, uma obediente seguidora do que foi dito por Nietzsche: não há texto, só interpretação – indefinidamente. Mas a interpretação é feita segundo os mesmos cânones de sempre, os que vigoraram de Platão a Kant chegando a Marx e Freud: a saída do senso comum através da quebra do que Bacon chamou de “ídolos da tribo” e do que Pascal chamou de frutos da imaginação.
------------------------------------
* Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/melancolicos-e-profetas/27/04/2013

Nenhum comentário:

Postar um comentário