Juremir Machado da Silva*
ALAIN TOURAINE
“Fernando Henrique será o homem do Brasil moderno”
Sociólogo brilhante, o francês Alain Touraine, nascido em
1925, um dos grandes mestres das ciências sociais contemporâneas, especialista
em América Latina, analista das metamorfoses do “ator social”, conhece o
presidente eleito do Brasil desde 1960. Protetor de Fernando Henrique Cardoso,
convidou-o a lecionar em Nanterre, em 1968.
Estudioso dos movimentos sociais, autor de livros
importantes como Sociologia da Ação (1965), Produção da Sociedade (1973),
As Sociedades Dependentes (1976), Crítica da Modernidade (1992) e
O Que é a Democracia? (1993), Alain Touraine, nesta entrevista, reflete
sobre Rumo a um Novo Projeto para o Brasil? Impasses e Perspectivas do
governo Cardoso, explica por que o PT pertence ao passado, Fernando
Henrique ao futuro e como o presidente FHC poderá mudar o Brasil.
Quem é Fernando Henrique Cardoso para o senhor?
Alain Touraine – Fernando Henrique Cardoso representa para mim depois de
muito tempo duas coisas: o melhor sociólogo latino-americano, reconhecido como
tal por todo mundo; e um amigo muito querido. Na América Latina, sejamos
francos, pode e deve-se discutir bastante para saber quem é o número dois da
sociologia. Quanto ao primeiro, não há necessidade de debate.
O senhor convidou Fernando Henrique para lecionar em
Nanterres em 1968. Como começou essa relação?
Alain Touraine – Conheci Cardoso e Ruth em 1960, em São Paulo. Eu havia
sido enviado ao Brasil, como antes a Santiago do Chile, para preparar a criação
de um centro de pesquisas sociológicas. Existiam duas cadeiras de sociologia na
USP, uma dirigida por Fernando de Azevedo, responsável pela minha presença lá,
e outra por Florestan Fernandes. Ao fim de um mês, quando perguntaram a minha
opinião a respeito da direção do referido centro, eu, que tinha sido chamado
pelo grupo da Cadeira 2, de Azevedo, indiquei para a função Fernando Henrique
Cardoso, o assistante de Fernandes na Cadeira 1. Em conseqüência, passei a ter
relações difíceis com Azevedo, Maria Isaura Pereira de Queirós e outros, mas me
tornei amigo de Florestan, de Fernando Henrique, de Ianni… A partir daí, revi
Cardoso com frequência. No Chile, onde ele se exilou, travamos contato, pois
fui casado com uma chilena. Na Cepal, Cardoso trabalhou com Enzo Faletto, que
fora meu assistente alguns anos antes. Estávamos, portanto, no mesmo meio.
Convidei-o a passar um ano em Paris, ensinando em
Nanterre, onde eu era o diretor do departamento de Sociologia. Em seguida, ele
foi chamado duas vezes para dar conferências na Escola de Altos Estudos em
Ciências Sociais (EHESS). Fernando Henrique foi também convidado no quadro da
Conferência Marc Bloch, uma leitura solene, anual, confiada a um grande
sociólogo estrangeiro. No grande anfiteatro da Sorbonne, em estilo grandioso e
nobre, ele se impôs como um mestre.
Na época em que morou em Paris, Fernando Henrique e o
senhor tiveram oportunidade para, de fato, aprofundar a relação intelectual e
de amizade?
Alain Touraine – Sem dúvida. Frequentávamos um a casa do outro. A minha
mulher, que morreu há alguns anos, sendo latino-americana, favoreceu a ligação
com o casal Cardoso. No dia seguinte ao de sua eleição para a presidência do
Brasil, Fernando Henrique telefonou para mim e deixou uma mensagem na
secretária eletrônica, em francês, comentando a sua alegria. Disse que pensava
em mim e na minha mulher. Fiquei muito sensibilizado com a atenção e a lembrança.
Gentil e humano.
O senhor publicou vários artigos para saudar a escolha de
Fernando Henrique como o melhor que poderia acontecer para o Brasil. Quais são
os seus argumentos?
Alain Touraine – Escrevi vários artigos desde o início da campanha, quando
Fernando Henrique tinha apenas 14% das intenções de voto. Publiquei, por
exemplo, uma análise no diário espanhol El Pais. Normal. Fernando
Henrique significa no meu entender uma oportunidade histórica para o Brasil.
Não quero exagerar, embora eu me divirta ao constatar que os planos feitos
pelos economistas fracassaram, já o do sociólogo deu certo.
As dimensões política e social da ação econômica são
frequentemente incompreendidas pelos economistas puros. No caso do Brasil, o
essencial é o reforço da capacidade de decisão do Estado diante dos grupos de
pressão perfeitamente respeitáveis de classe média. Os detalhes do plano
econômico podem ser tratados por especialistas. A experiência dos países
latino-americanos, entretanto, mostra-nos que as condições políticas são mais
importantes. Não haveria plano Cavallo sem Menem. Claro, a situação argentina é
diferente da brasileira, mas o político comanda. O mesmo vale para o México,
onde a grande ideia foi liberar De la Madrid e Salinas do PRI. A dificuldade não
é técnica, mas de capacidade de decisão. Uma parte do sucesso de Fernando
Henrique Cardoso vem do fato que ele convenceu Itamar Franco a ficar firme
apesar das pressões, por exemplo, de setores do funcionalismo público. Vê-se a
sensibilidade do sociólogo no interesse pela análise global.
Como o senhor explica o fato de que os intelectuais
brasileiros em geral, em especial os cientistas sociais, não compartilham o seu
entusiasmo? O senhor acredita que Fernando Henrique tem um verdadeiro projeto
para o Brasil e que plano econômico sobreviverá após a vitória eleitoral?
Alain Touraine – Os intelectuais votaram, claro, por Lula, pois a
intelectualidade latino-americana continua majoritariamente agarrada a um
modelo nacional-popular ou populista mais ou menos impregnado de marxismo e com
certeza de um ideal distributivista populista. As oposições são mais claras na
Argentina, onde o novo governo não está acima de todas as suspeitas; eu tomei a
defesa de Menem e de Cavallo. Alcançou-se uma solução na medida em que Alfonsin
abraçou Menem. A inquietude permanece, mas é possível constatar que o país
passou de uma situação de queda-livre, de catástrofe, ao inverso, graças a
Menem. Os intelectuais argentinos eram todos contra; hoje, estão todos
reduzidos ao silêncio. Não têm o que dizer. Os intelectuais mexicanos votaram
por Cárdenas, esperando, em verdade, que ele não passasse, uma vez que no
passado fizeram-lhe oposição.
No Brasil, em todo caso, penso que os petistas moderados
estarão dispostos a confiar em Cardoso. Já os xiitas preferirão combatê-lo.
Quem imaginou, por causa da aliança com o PFL, que Fernando Henrique se tornara
um candidato de centro-direita e que Lula representava a esquerda, mergulhou na
contradição. Não era essa a questão. O importante era escolher entre a negação
ou a conservação de um modelo distributivista estatal favorável às classes
médias, responsável pela inflação, sustentado pela CUT e pelo PT. Lula, o homem
do Brasil moderno, dos sindicatos modernos, de 1977 a 1979, no ABC paulista,
tornou-se progressivamente o homem da defesa dos setores beneficiados pelo
distributivismo do Estado: funcionários públicos e outros. Some-se a isso o
lado populista e o comunismo esclerosado e tem-se um conjunto que não cria
nenhuma condição de governabilidade.
Conheço muita gente que votou Lula e está contente com a
vitória de Fernando Henrique. Weffort é um exemplo disso.
E o projeto? O senhor imagina que os franceses votariam
por Jacques Delors, um social-democrata respeitável, se ele se ligasse com
Charles Pasqua, um representante da direita truculenta?
Alain Touraine – A vitória de Cardoso era indispensável. Não apenas ele
tem um projeto, mas se trata do único que podia ter um. Ninguém mais possuía um
projeto. Por quê? Simples: o Brasil precisa aceitar o jogo do mercado, como
todo mundo. Lula representava uma tentativa desesperada de manter o
nacionalismo. De outra parte, a sociedade brasileira é o campeã mundial das
desigualdades sociais e por isso mesmo não existe alternativa para o Brasil que
não passe por uma política liberal e social ao mesmo tempo. A extrema-direita,
o liberalismo selvagem, não conseguiu um candidato com chances porque de um
Maluf a um Vargas Llosa, em se tomando a esfera latino-americana, seria a
revolução. Com a esquerda representada por Lula há um programa social mas não
econômico e disso resulta o fracasso.
O Brasil, quanto ao essencial, precisa conhecer uma
profunda liberalização da economia. A eleição de Fernando Henrique significa
que o último grande país que recusava as regras do mercado decidiu curvar-se
diante do razoável e do necessário. O fundamental, a partir daí, é a
aproximação do modelo chileno: liberalização e utilização dos recursos do
Estado para diminuir as desigualdades sociais. Quando Aylwin assumiu, mais de
40% dos chilenos encontravam-se em situação de miséria absoluta. Hoje, o índice
caiu para 32%. É muito ainda. O balanço social do governo Aylwin é limitado,
mas positivo. No Brasil, em contrapartida, o balanço é negativo por causa da
inflação, que é uma espécie de imposto sobre os pobres: 40% ao mês nas costas
dos menos favorecidos é enorme.
Talvez Fernando Henrique tenha pago um preço excessivo ao
PFL. Não havia outra solução. Era importante estabelecer uma aliança com os
liberais. O presidente poderá, porém, contar com a sua capacidade de
articulação e com ao apoio de setores progressistas em função da legimitidade
que retira de uma eleição brilhante. Eis uma grande diferença em relação a um
homem como Charles Pasqua na França. O PFL não tem uma visão da totalidade e
não poderá ser hegemônico. Trata-se de uma oligarquia regional que carrega o
perigo das políticas locais, sempre abertas à corrupção e ao clientelismo.
Fernando Henrique é o único a poder sustentar uma política nacional. O PFL será
menos forte do que crê. Mesmo a Fiesp tem uma visão nacional. Não o PFL.
Fernando Henrique lembra o Partido Republicano dos
Estados Unidos no início deste século, que representava os industriais e os
trabalhadores contra os latifundiários apoiados pelo Estado. Cardoso será o
homem do Brasil moderno.
O PFL, portanto, não impedirá Fernando Henrique Cardoso
de governar e de fazer uma reforma social no Brasil?
Alain Touraine – O PFL custará caro por ter um peso considerável. Fernando
Henrique Cardoso precisará obter o apoio de uma fração dos parlamentares do
PMDB para implementar as suas reformas. O PSDB sozinho pouco poderá fazer.
O senhor acredita que o PMDB, vítima de suas contradições
e hesitações, terá finalmente vontade política para ajudar em reformas
substanciais?
Alain Touraine – Certamente. A única vez em que discordei de Fernando
Henrique Cardoso foi quando ele se inclinou em favor de uma constituição
parlamentarista, pois para mim o sistema presidencialista é superior. O
presidente, com a legimitidade do voto, um projeto pertinente e a capacidade de
articulação que caracteriza Fernando Henrique poderá construir a situação
necessária à mudança.
O que deverá fazer, em termos concretos, Fernando
Henrique para integrar os milhões de excluídos da sociedade brasileira?
Alain Touraine – Deve-se começar pelo bom senso. A economia brasileira
comporta-se bem, com uma taxa de crescimento razoável e projeções muito
favoráveis, além da existência de reservas cambiais fortes. Tudo vai bem do
ponto de vista da produção. O Estado deverá criar infraestrutura social
(moradia, escolas, hospitais…) através do aumento dos impostos, como todo mundo
faz, basta ver o exemplo argentino. Os chilenos passaram por uma elevação de
impostos da ordem de 2% dos Produto Nacional.
Que camadas sociais deverão ser atingidas pelo
crescimento dos impostos?
Alain Touraine – Não apenas as grandes fortunas deverão ser oneradas.
Precisamos acabar com esse mito. Os impostos devem atingir os patrimônios
médios. Apenas os pobres devem ficar fora disso. Para que uma parte da
população excluída seja integrada é preciso que os mais afortunados aceitem uma
taxação mais elevada. Assim se poderá fazer da Baixada Fluminense um lugar
normal. O Governo terá de investir em casas populares, ensino básico – o Brasil
possui ainda um indíce de analfabetismo inaceitável – e saúde. Significa pensar
em hospitais públicos eficientes, em formação e pagamento de professores
competentes e em previdência social séria. O Chile avançou no que se refere às
residências populares, mas nada fez na área do ensino e da saúde.
O Estado destruído por Collor terá de ser reconstruído. O
Brasil conta com muita gente competente e poderá obter êxito. Será decisivo o
papel de um ministério do planejamento voltado à análise técnica e social.
De que maneira a inflação poderia beneficiar a classe
média?
Alain Touraine – Eu digo que a classe média acabou protegida, enquanto os
pobres foram esmagados. Apesar dos percalços, os indivíduos de classe média
conseguiram, através de operações bancárias e outros mecanismos, escapar do
massacre inflacionário. Os ricos, claro, beneficiaram-se politicamente. Os
baixos salários dos pobres, empregados no consumo imediato, nunca permitiram o
jogo bancário ao qual recorreu à classe média.
Passada o calor da eleição, o senhor compartilha a ideia
de Fernando Henrique de que o PT representa a esquerda do passado?
Alain Touraine – Não estou seguro que se trata da esquerda, mas certamente
é algo do passado. Pego o caso francês: os sindicatos representam a esquerda na
França? Constato que eles defendem grupos e pessoas cujos rendimentos estão
acima da média nacional e que são os menos expostos ao desemprego. Existe uma
representação excessiva do setor público, dos funcionários, nos sindicatos
franceses assim como nas fileiras do PT no Brasil. O Estado precisa encontrar o
equilíbrio para aplicar recursos na ajuda dos mais pobres, pois isso interessa
também ao desenvolvimento do mercado interno. A economia mundial é regulada
pelo mercado. China, Cuba, Vietnã, Suécia reconhecem isso. Se o Brasil quiser
fazer de outra maneira será pior para ele. Por haver recusado o mercado antes é
que o Brasil se encontra em estado catastrófico nos últimos cinco anos.
A sua análise mescla a importância da recomposição do
Estado com a valorização da economia de mercado. Os parceiros políticos de
Fernando Henrique estarão abertos a essa síntese?
Alain Touraine – A social-democracia europeia, basta ver os casos da
Suécia e da Alemanha, nada mais fez nos últimos 50 anos do que liberalizar e
internacionalizar a economia. Apostou-se na exportação e, de outra parte,
através do Estado, dos sindicatos e de associações, construiu-se uma sociedade
integrada e com distâncias sociais menores. O Brasil precisa de uma economia de
mercado e de uma redução das desigualdades sociais. Não há contradição nisso.
Fernando Henrique foi eleito em função de seu projeto ou
do plano econômico que seduziu a população?
Alain Touraine – É evidente que o plano econômico foi decisivo. Qual era o
quadro eleitoral? Cardoso fez uma aliança com a direita. No plano dos
sentimentos não é nada exaltante. Mas é razoável economicamente. Lula falava em
nome do povo, dos pobres e assim por diante; é nobre e generoso. Lula deveria
ganhar se o voto do coração predominasse. A diferença é que Fernando Henrique
pode fazer o que disse e Lula ficaria no terreno das promessas. Poderíamos
discutir a quem caberia o prêmio de moral, de eloquência ou de sociologia.
Quanto à escolha do presidente, contudo, não há o que debater: Fernando
Henrique representa o exeqüível.
A intelectualidade brasileira que apoiou o PT faz parte,
portanto, do passado?
Alain Touraine – É complicado. A intelectualidade brasileira é pluralista,
embora existam muitos aspectos do passado nela. Os intelectuais brasileiros
haviam escolhido uma visão moderna em oposição ao arcaísmo da Venezuela e mesmo
dos argentinos. Os chilenos e os brasileiros tornaram-se nos últimos vinte anos
os defensores de ideias novas. Resta, entretanto, um aspecto sentimental
pró-Lula, um homem que eu também admiro, mesmo lamentando a sua deriva
distributivista. Espero que o presidente Fernando Henrique siga as lições do
professor Fernando Henrique. Não há razão para esquecer as ideias do sociólogo,
pois o Brasil precisa escapar ao liberalismo exagerado e ao nacional-populismo.
Fernando Henrique chegou a dizer que era para esquecer
tudo o que havia escrito?
Alain Touraine – Não devemos fazê-lo. Ele mesmo não o faz. A verdade é que
o seu lugar mudou. O sociólogo é hoje um homem de decisão. Mas as idéias do
intelectual estão na base de sua ascensão política.
O senhor não teme ser chamado de reacionário no Brasil?
Alain Touraine – Considerar o tipo de ideia que defendo como reacionarismo
é um erro trágico. Pode-se interpretar a alma caridosa e falar em distribuição.
A América Latina sai de um período distributivista fracassado. Precisa-se,
hoje, aumentar a capacidade de intervenção do Estado e agir a partir de uma
sociedade mais dinâmica. O subjetivismo da esquerda tradicional, mais cristã do
que esquerda, é moralista. Mas essa gente poderá desempenhar um papel
importante na vida política brasileira durante o governo de Cardoso. A luta
contra a pobreza supõe a mobilização dos que votaram em Lula.
(entrevista republicada em meu livro “Visões de uma certa
Europa”, Edipucrs).
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* Sociólogo. Prof. Universitário. Escritor. Cronista do Correio do Povo
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/24/03/2013
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