domingo, 28 de abril de 2013

Entrevistas marcantes: Habermas e a modernidade

JuremirMachado da Silva*

O holofote da racionalidade 

Nascido em 1929, o amigo e colaborador de Theodor Adorno esteve em Porto Alegre em setembro de 1989. Professor em Heidelberg de 1961 a 1964, depois em Frankfurt, em 1971 tornou-se diretor do importante Instituto Max Planck, empenhado em uma pesquisa multidisciplinar da realidade social contemporânea. Em 1973, recebeu o prêmio Hegel, em Sttutgart, uma das mais importantes honrarias intelectuais da Alemanha. Em 1980, foi agraciado com o prêmio Theodor Adorno, em Frankfurt. Tornou-se um pensador de primeira linha e destacou-se pela abrangência de seus conhecimentos, retirando densas contribuições da ciência política, sociologia, filosofia, psicologia e história, entre outras áreas. Defensor radical da razão, travou luta contra os irracionalismos e sustentou a existência de uma falácia no pós-moderno. Em 1981, publicou A Teoria da Ação Comunicativa, vasta e complexa obra, que continua exigindo poderosos esforços para sua total decodificação. Aos poucos, tornou-se o nome de maior evidência no terreno intelectual europeu. No mesmo ano em que veio ao Brasil, Habermas visitou outros países da América Latina. No México, atraiu milhares de pessoas. Na Argentina, os salões superlotaram. E tudo isso para ver e ouvir um pensador dificílimo, cuja importância pode ser constatada por esta entrevista, concedida em Porto Alegre. 

JMS – A crise do Estado do Bem Estar Social, o crescimento das taxas de desemprego na Europa e a investida neoconservadora atual no sentido de diminuir as prerrogativas estatais indicam um colapso iminente do capitalismo como anunciam alguns setores da esquerda? Ao mesmo tempo, os acontecimentos na China, Polônia e Alemanha Oriental e até mesmo a glasnost soviética apontam para uma derrocada ou morte do marxismo ? Diante disso não haveria um impasse e um esgotamento absoluto das energias ut6picas

Habermas – Esta é uma pergunta de muita amplitude. Falar do colapso do capitalismo, creio, hoje, ninguém mais sustenta. Do ponto de vista dos países ocidentais desenvolvidos, eu diria que a perspectiva é bem diferente do processo de dissolução do sistema político soviético. O capitalismo hoje parece não contar com nenhuma a alternativa como antigamente. Essas pelo menos são as posições neoliberais e neoconservadoras. Essas interpretações são perigosas e paralisam as poucas energias reformistas com as quais contamos. No início da minha viagem, um secretário de Estado norte-americano, em matéria publicada no New York Times, interpretou o conceito da pós-história nesse sentido, ou seja, de que agora as formas de vida e socialidade, assim como estão estabelecidas, impuseram-se definitivamente e não contam com nenhuma forma concorrente. Nesta situação, é naturalmente importante lembrar-se de que o capitalismo dos países altamente desenvolvidos somente se tomou razoavelmente suportável pelo fato das nossas sociedades terem dado um passo histórico em um processo de aprendizagem. Refiro-me com isso à realização do Estado do Bem Estar Social depois da Segunda Guerra Mundial. Essa evolução parece ter chegado a um termo. De sorte que é necessário promover um esforço adicional com vistas a reformas, em relação à vinculação entre o Primeiro Mundo e o Terceiro Mundo. Os problemas são tão complexos que estamos a ponto de desesperar da possibilidade de encontràr uma saída com as nossas próprias forças. A idéia de uma ausência de perspectiva é particularmente desastrosa. 

JMS – Uma prática social baseada em sua teoria da ação comunicativa é possível no Terceiro Mundo? Que base haveria para que se realizasse um consenso a partir de um jogo argumentativo ? Para o senhor, que disse a Perry Andersen, em entrevista, que sua perspectiva é eurocêntrica, que sentido faz umafilosofia social que expurga uma enorme parcela da população mundial?
Habermas –  Em relação ao eurocentrismo quero dizer que efetivamente a Perry Andersen manifestei a realidade pessoal do meu interesse pelo Terceiro Mundo, que está baseada apenas em leitura de jornais e como homem contemporâneo. Não me debrucei sobre os problemas como cientista. Seria absurdo afirmar que uma teoria que somente espelha a perspectiva dos países desenvolvidos seria suficiente para enfocar as questões mais candentes do mercado mundial. Trata-se de uma limitação dos meus próprios interesses. Não chego à América Latina como um especialista em seus problemas. Meu conceito de ação comunicativa não se trata de um rousseauismo, de um utopismo e nada tem a ver com otimismo ou pessimismo. Trabalho com as bases da nossa comunicação cotidiana. Tento esclarecer pontos que não foram suficientemente explicados na tradição marxista nem na teoria crítica da sociedade. Viso estabelecer um fundamento normativo que permita o exercício da crítica, sem o qual ele seria impossível. Marx operou com premissas procedentes da filosofia da História, que hoje não podemos aceitar sem mais nem menos. Busco as premissas dessa comunicação enquanto não se parte para o recurso da violência, manifesta ou camuflada. À medida que nos interessamos por fagulhas de racionalidade, que estão na própria comunicação, não estamos afirmando o governo da razão, mas estamos obtendo uma medida que nos permite analisar criticamente a realidade. No Rio de Janeiro, nenhuma criança chega à vida adulta sem que a mãe dê a ela determinadas condições e sem uma família em que ela cresça, e em meio aos vizinhos. Nessa família e com esses vizinhos existe o agir comunicativo. Do contrário, a criança não chegaria a completar um ano de idade. Isso independe de passar fome ou não. A outra verdade é que não há miséria só nessas favelas. Mas também em Nova Iorque e outras partes do Primeiro Mundo. A violação dos direitos humanos faz parte do cotidiano nas sociedades desenvolvidas. A minha abordagem teórica não é uma visão otimista da vida boa, mas um instrumento de investigação. 

JMS – O senhor tem recusado as teses sobre o esgotamento da modernidade e aproximou os pós-estruturalistas franceses do neoconservadorismo. Entretanto há intelectuais que o consideram conservador por insistir em pensar a pós-modernidade com os parâmetros da modemidade. O fil6sofo brasileiro José Guilherme Merquior afirma que a sua divisão da razão em “razão sábia” e “razão instrumental” é insustentável e geral, uma noção de razão para situações nobres e outra para tarefas simples. O senhor tenta relativizar a razão da Ilustração e depois reintroduzi-la como princípio unificador e totalizador da realidade ?
Habermas – Vamos discutir este tema na sexta-feira (na palestra sobre “A Questão da Racionalidade na Pós-Modernidade”, realizada no Salão de Atos da UFRGS). É difícil discuti-lo em duas palavras. Há muitas opiniões embutidas nessa pergunta que não posso aceitar. A aproximação do neoconservadorismo e do pós-estruturalismo francês (feita por Andersen) é uma distorção do que escrevi em meu livro O Discurso Filosófico da Modernidade. Uns me chamavam de conservador e outros de jovem conservador. Sabe o que é ser um jovem conservador? Quem sabe abandonamos este tema? Não proponho nenhuma mudança de paradigmas. A teoria do agir comunicativo sai de uma razão centrada no próprio sujeito e articula-se em estruturas da comunicação cotidiana e nas posturas de reconhecimento recíproco. Essa razão comunicativa não consiste de várias partes, mas ela tem diversos aspectos, o que podemos reconhecer quando analisamos uma expressão como “Me dê um copo de água?”. Você pode contestar essa expressão a partir de três pontos: 1) Nesse copo não há água, mas álcool; 2) Esta não é a ocasião para solicitar de mim uma prestação de serviço; 3) Pode ainda duvidar da veracidade da articulação da expressão. Como se vê, são formuladas três pretensões de validade. A razão comunicativa, apesar de seus aspectos diferentes, forma uma certa unidade. Não vejo uma oposição entre razão instrumental e meta-razão. Não posso aceitar a premissa de que a razão comunicativa introduz no jogo uma força que unifica e totaliza. Essa é uma peça polêmica pós-estruturalista. A razão é uma força de pluralização. A medida que isso exista há a possibilidade de um consenso, que se situa sobre o fato de que os participantes desistem de dizer não. O conceito de inter-relação por meio de linguagem representa o contrário de uma totalidade unificadora. Diferencio o meu conceito de comunicação da Vontade Geral de Rousseau e da razão em Hegel. 

JMS – Na prática, como controlar a robotização da vida -da subjetividade, afetividade e relações interpessoais -e o massacre da técnica pela esfera instrumental ?
Habermas – Nada posso dizer de original. Responderei de forma adicional. As sociedades precisam organizar-se a partir de baixo, da base. Temos que trabalhar no sentido de que também em sociedades complexas exista uma opinião pública que funcione nas discussões sobre política. Existe uma certa esperança de que aquilo que os homens efetivamente desejam realize-se, diante daquilo que é racional apenas na aparência. Todas as outras respostas teriam que ser muito mais concretas e passar por uma análise do contexto social. Só posso falar da República Federal da Alemanha. 

JMS – Como o senhor encara as micropráticas, a hist6ria do cotidiano, os movimentos de minorias, a ecologia e as múltiplas racionalidades ao final da década de 80? São apenas visões, como querem alguns ideólogos, da entediada classe média europeia transportados para o Terceiro Mundo enquanto ideias fora de lugar?
Habermas – Não vejo por que essas ideias estariam fora de lugar, afinal, aqui no Brasil não ocorre desmatamento? 

JMS – Respondo com uma pergunta. Outro dia, o antropó1ogo brasileiro Darcy Ribeiro, um dos intelectuais nacionais mais conhecidos no mundo, afirmou que a ênfase da ecologia é uma consequência dos anseios da pequena burguesia europeia voltada para os seus jardinzinhos. Neste sentido, as idéias poderiam estar fora do lugar…
Habermas – Não vou falar sobre o que acontece com as ideias europeias transplantadas para o Brasil. Aquilo que sensibiliza a opinião pública no Primeiro Mundo pode ter alguma relevância para o Terceiro Mundo. Há uma sensibilidade crescente nos países desenvolvidos em relação aos problemas que necessitam ser resolvidos aqui. O problema, em princípio, consiste em que as nações dependentes não possuem nenhum potencial de ameaça que convença os desenvolvidos a tomar determinadas medidas. Em uma comparação com o final do século XIX talvez possa dizer que não há nenhum equivalente para a greve de operários. Não sei como o Terceiro Mundo poderia entrar em greve diante do Primeiro. Seria importante que os terceiro-mundistas usassem melhor a força produtiva contida numa associação dos povos, o que infelizmente não acontece. É preciso entrar no repertório das ideias que sensibilizam os europeus e os norte-americanos. Os novos movimentos sociais representam uma das poucas esperanças orientados em temas que têm componentes universais. 

JMS – O senhor acredita que os movimentos estudantis da década de 80 estão na defensiva. Isso significa uma despolitização, um desencantamento e uma necessidade de reorganização para retomar uma prática participativa dos anos 60? Não é contradição sustentar uma teoria de comunicação participativa em uma época em que não são poucas as vozes a anunciar a desarticulação, o fim das utopias e a descrença em qualquer totalidade ou princ(pio unificador?
Habermas – Não temos nenhum movimento estudantil atuante na Europa. Desde alguns anos, formou-se um movimento social centrado na questão do desarmamento mundial, o que, felizmente, com Gorbachev está encontrando uma solução, e questões de feminismo e ecologia. Os temas novos ganharam incrível repercussão. Surgiu um novo partido que mudou o enfoque das temáticas discutidas. Eu não compartilho das posições enunciadas a respeito da individualização. Em termos eleitorais, o individualismo produziu um novo comportamento eleitoral em sentido claramente positivo. Assim, os compromissos de grandes estruturas partidárias, vinculando os eleitores de uma forma não crítica tomou-se mais frouxa. Além disso, houve um enriquecimento do debate pela substância argumentativa. Os novos movimentos não processaram enormes mudanças institucionais, mas fizeram deslanchar processos importantes, favoráveis às subculturas. Mesmo se fosse diferente, a minha abordagem não depende dessa situação. Afora isso, é fundamental um holofote que ilumine a falta de racionalidade frequentemente encontrada. 

Setembro de 1989
(republicada em meu livro “O pensamento do fim do século”(L&PM)
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* Soiciólogo. Prof. Universtário. Escritor. Tradutor. Colunista do Correio do Povo
Fonte:  http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/28/04/2013
Imagem  de Habermas da Internet

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