JuremirMachado da Silva*
O holofote da racionalidade
Nascido em 1929, o amigo e colaborador de Theodor Adorno esteve
em Porto Alegre em setembro de 1989. Professor em Heidelberg de 1961 a
1964, depois em Frankfurt, em 1971 tornou-se diretor do importante
Instituto Max Planck, empenhado em uma pesquisa multidisciplinar da
realidade social contemporânea. Em 1973, recebeu o prêmio Hegel, em
Sttutgart, uma das mais importantes honrarias intelectuais da Alemanha.
Em 1980, foi agraciado com o prêmio Theodor Adorno, em Frankfurt.
Tornou-se um pensador de primeira linha e destacou-se pela abrangência
de seus conhecimentos, retirando densas contribuições da ciência
política, sociologia, filosofia, psicologia e história, entre outras
áreas. Defensor radical da razão, travou luta contra os irracionalismos e
sustentou a existência de uma falácia no pós-moderno. Em 1981, publicou
A Teoria da Ação Comunicativa, vasta e complexa obra, que continua
exigindo poderosos esforços para sua total decodificação. Aos poucos,
tornou-se o nome de maior evidência no terreno intelectual europeu. No
mesmo ano em que veio ao Brasil, Habermas visitou outros países da
América Latina. No México, atraiu milhares de pessoas. Na Argentina, os
salões superlotaram. E tudo isso para ver e ouvir um pensador
dificílimo, cuja importância pode ser constatada por esta entrevista,
concedida em Porto Alegre.
JMS – A crise do
Estado do Bem Estar Social, o crescimento das taxas de desemprego na
Europa e a investida neoconservadora atual no sentido de diminuir as
prerrogativas estatais indicam um colapso iminente do capitalismo como
anunciam alguns setores da esquerda? Ao mesmo tempo, os acontecimentos
na China, Polônia e Alemanha Oriental e até mesmo a glasnost soviética
apontam para uma derrocada ou morte do marxismo ? Diante disso não
haveria um impasse e um esgotamento absoluto das energias ut6picas ?
Habermas – Esta é
uma pergunta de muita amplitude. Falar do colapso do capitalismo,
creio, hoje, ninguém mais sustenta. Do ponto de vista dos países
ocidentais desenvolvidos, eu diria que a perspectiva é bem diferente do
processo de dissolução do sistema político soviético. O capitalismo hoje
parece não contar com nenhuma a alternativa como antigamente. Essas
pelo menos são as posições neoliberais e neoconservadoras. Essas
interpretações são perigosas e paralisam as poucas energias reformistas
com as quais contamos. No início da minha viagem, um secretário de
Estado norte-americano, em matéria publicada no New York Times,
interpretou o conceito da pós-história nesse sentido, ou seja, de que
agora as formas de vida e socialidade, assim como estão estabelecidas,
impuseram-se definitivamente e não contam com nenhuma forma concorrente.
Nesta situação, é naturalmente importante lembrar-se de que o
capitalismo dos países altamente desenvolvidos somente se tomou
razoavelmente suportável pelo fato das nossas sociedades terem dado um
passo histórico em um processo de aprendizagem. Refiro-me com isso à
realização do Estado do Bem Estar Social depois da Segunda Guerra
Mundial. Essa evolução parece ter chegado a um termo. De sorte que é
necessário promover um esforço adicional com vistas a reformas, em
relação à vinculação entre o Primeiro Mundo e o Terceiro Mundo. Os
problemas são tão complexos que estamos a ponto de desesperar da
possibilidade de encontràr uma saída com as nossas próprias forças. A
idéia de uma ausência de perspectiva é particularmente desastrosa.
JMS – Uma prática
social baseada em sua teoria da ação comunicativa é possível no
Terceiro Mundo? Que base haveria para que se realizasse um consenso a
partir de um jogo argumentativo ? Para o senhor, que disse a Perry
Andersen, em entrevista, que sua perspectiva é eurocêntrica, que sentido
faz umafilosofia social que expurga uma enorme parcela da população
mundial?
Habermas – Em
relação ao eurocentrismo quero dizer que efetivamente a Perry Andersen
manifestei a realidade pessoal do meu interesse pelo Terceiro Mundo, que
está baseada apenas em leitura de jornais e como homem contemporâneo.
Não me debrucei sobre os problemas como cientista. Seria absurdo afirmar
que uma teoria que somente espelha a perspectiva dos países
desenvolvidos seria suficiente para enfocar as questões mais candentes
do mercado mundial. Trata-se de uma limitação dos meus próprios
interesses. Não chego à América Latina como um especialista em seus
problemas. Meu conceito de ação comunicativa não se trata de um
rousseauismo, de um utopismo e nada tem a ver com otimismo ou
pessimismo. Trabalho com as bases da nossa comunicação cotidiana. Tento
esclarecer pontos que não foram suficientemente explicados na tradição
marxista nem na teoria crítica da sociedade. Viso estabelecer um
fundamento normativo que permita o exercício da crítica, sem o qual ele
seria impossível. Marx operou com premissas procedentes da filosofia da
História, que hoje não podemos aceitar sem mais nem menos. Busco as
premissas dessa comunicação enquanto não se parte para o recurso da
violência, manifesta ou camuflada. À medida que nos interessamos por
fagulhas de racionalidade, que estão na própria comunicação, não estamos
afirmando o governo da razão, mas estamos obtendo uma medida que nos
permite analisar criticamente a realidade. No Rio de Janeiro, nenhuma
criança chega à vida adulta sem que a mãe dê a ela determinadas
condições e sem uma família em que ela cresça, e em meio aos vizinhos.
Nessa família e com esses vizinhos existe o agir comunicativo.
Do contrário, a criança não chegaria a completar um ano de idade. Isso
independe de passar fome ou não. A outra verdade é que não há miséria só
nessas favelas. Mas também em Nova Iorque e outras partes do Primeiro
Mundo. A violação dos direitos humanos faz parte do cotidiano nas
sociedades desenvolvidas. A minha abordagem teórica não é uma visão
otimista da vida boa, mas um instrumento de investigação.
JMS – O senhor
tem recusado as teses sobre o esgotamento da modernidade e aproximou os
pós-estruturalistas franceses do neoconservadorismo. Entretanto há
intelectuais que o consideram conservador por insistir em pensar a
pós-modernidade com os parâmetros da modemidade. O fil6sofo brasileiro
José Guilherme Merquior afirma que a sua divisão da razão em “razão sábia” e “razão instrumental” é insustentável e geral, uma noção de
razão para situações nobres e outra para tarefas simples. O senhor
tenta relativizar a razão da Ilustração e depois reintroduzi-la como
princípio unificador e totalizador da realidade ?
Habermas – Vamos
discutir este tema na sexta-feira (na palestra sobre “A Questão da
Racionalidade na Pós-Modernidade”, realizada no Salão de Atos da UFRGS).
É difícil discuti-lo em duas palavras. Há muitas opiniões embutidas
nessa pergunta que não posso aceitar. A aproximação do
neoconservadorismo e do pós-estruturalismo francês (feita por Andersen) é
uma distorção do que escrevi em meu livro O Discurso Filosófico da
Modernidade. Uns me chamavam de conservador e outros de jovem
conservador. Sabe o que é ser um jovem conservador? Quem sabe
abandonamos este tema? Não proponho nenhuma mudança de paradigmas. A
teoria do agir comunicativo sai de uma razão centrada no próprio sujeito
e articula-se em estruturas da comunicação cotidiana e nas posturas de
reconhecimento recíproco. Essa razão comunicativa não consiste de várias
partes, mas ela tem diversos aspectos, o que podemos reconhecer quando
analisamos uma expressão como “Me dê um copo de água?”. Você pode
contestar essa expressão a partir de três pontos: 1) Nesse copo não há
água, mas álcool; 2) Esta não é a ocasião para solicitar de mim uma
prestação de serviço; 3) Pode ainda duvidar da veracidade da articulação
da expressão. Como se vê, são formuladas três pretensões de validade. A
razão comunicativa, apesar de seus aspectos diferentes, forma uma certa
unidade. Não vejo uma oposição entre razão instrumental e meta-razão.
Não posso aceitar a premissa de que a razão comunicativa introduz no
jogo uma força que unifica e totaliza. Essa é uma peça polêmica
pós-estruturalista. A razão é uma força de pluralização. A medida que
isso exista há a possibilidade de um consenso, que se situa sobre o fato
de que os participantes desistem de dizer não. O conceito de
inter-relação por meio de linguagem representa o contrário de uma
totalidade unificadora. Diferencio o meu conceito de comunicação da
Vontade Geral de Rousseau e da razão em Hegel.
JMS – Na prática,
como controlar a robotização da vida -da subjetividade, afetividade e
relações interpessoais -e o massacre da técnica pela esfera instrumental
?
Habermas – Nada
posso dizer de original. Responderei de forma adicional. As sociedades
precisam organizar-se a partir de baixo, da base. Temos que trabalhar no
sentido de que também em sociedades complexas exista uma opinião
pública que funcione nas discussões sobre política. Existe uma certa
esperança de que aquilo que os homens efetivamente desejam realize-se,
diante daquilo que é racional apenas na aparência. Todas as outras
respostas teriam que ser muito mais concretas e passar por uma análise
do contexto social. Só posso falar da República Federal da Alemanha.
JMS – Como o
senhor encara as micropráticas, a hist6ria do cotidiano, os movimentos
de minorias, a ecologia e as múltiplas racionalidades ao final da década
de 80? São apenas visões, como querem alguns
ideólogos, da entediada classe média europeia transportados para o
Terceiro Mundo enquanto ideias fora de lugar?
Habermas – Não vejo por que essas ideias estariam fora de lugar, afinal, aqui no Brasil não ocorre desmatamento?
JMS – Respondo com uma pergunta.
Outro dia, o antropó1ogo brasileiro Darcy Ribeiro, um dos intelectuais
nacionais mais conhecidos no mundo, afirmou que a ênfase da ecologia é
uma consequência dos anseios da pequena burguesia europeia voltada para
os seus jardinzinhos. Neste sentido, as idéias poderiam estar fora do
lugar…
Habermas – Não
vou falar sobre o que acontece com as ideias europeias transplantadas
para o Brasil. Aquilo que sensibiliza a opinião pública no Primeiro
Mundo pode ter alguma relevância para o Terceiro Mundo. Há uma
sensibilidade crescente nos países desenvolvidos em relação aos
problemas que necessitam ser resolvidos aqui. O problema, em princípio,
consiste em que as nações dependentes não possuem nenhum potencial de
ameaça que convença os desenvolvidos a tomar determinadas medidas. Em
uma comparação com o final do século XIX talvez possa dizer que não há
nenhum equivalente para a greve de operários. Não sei como o Terceiro
Mundo poderia entrar em greve diante do Primeiro. Seria importante que
os terceiro-mundistas usassem melhor a força produtiva contida numa
associação dos povos, o que infelizmente não acontece. É preciso entrar
no repertório das ideias que sensibilizam os europeus e os
norte-americanos. Os novos movimentos sociais representam uma das poucas
esperanças orientados em temas que têm componentes universais.
JMS – O senhor
acredita que os movimentos estudantis da década de 80 estão na
defensiva. Isso significa uma despolitização, um desencantamento e uma
necessidade de reorganização para retomar uma prática participativa dos
anos 60? Não é contradição sustentar uma teoria de comunicação
participativa em uma época em que não são poucas as vozes a anunciar a
desarticulação, o fim das utopias e a descrença em qualquer totalidade
ou princ(pio unificador?
Habermas – Não
temos nenhum movimento estudantil atuante na Europa. Desde alguns anos,
formou-se um movimento social centrado na questão do desarmamento
mundial, o que, felizmente, com Gorbachev está encontrando uma solução, e
questões de feminismo e ecologia. Os temas novos ganharam incrível
repercussão. Surgiu um novo partido que mudou o enfoque das temáticas
discutidas. Eu não compartilho das posições enunciadas a respeito da
individualização. Em termos eleitorais, o individualismo produziu um
novo comportamento eleitoral em sentido claramente positivo. Assim, os
compromissos de grandes estruturas partidárias, vinculando os eleitores
de uma forma não crítica tomou-se mais frouxa. Além disso, houve um
enriquecimento do debate pela substância argumentativa. Os novos
movimentos não processaram enormes mudanças institucionais, mas fizeram
deslanchar processos importantes, favoráveis às subculturas. Mesmo se
fosse diferente, a minha abordagem não depende dessa situação. Afora
isso, é fundamental um holofote que ilumine a falta de racionalidade
frequentemente encontrada.
Setembro de 1989
(republicada em meu livro “O pensamento do fim do século”(L&PM)
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* Soiciólogo. Prof. Universtário. Escritor. Tradutor. Colunista do Correio do Povo
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/28/04/2013
Imagem de Habermas da Internet
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