Eduardo Jorge Martins Alves Sobrinho*
Transcrição da palestra proferida por Eduardo Jorge Martins Alves
Sobrinho, realizada no Centro Cultural da Índia, em São Paulo, no dia
30 de janeiro de 2013 , por ocasião do 65º ano da morte de Mahatma
Gandhi, em sessão promovida pelo Consulado da Índia, o Centro Cultural
da Índia e a Associação Palas Athena.
“Boa noite. Quero agradecer o convite da Associação Palas Athena, da
Lia Diskin, do Consulado e do Centro Cultural da Índia. Eu vim aqui
porque a Lia pediu. Não tenho tanta intimidade com Gandhi, como tem o
João Signorelli (também integrante da mesa), que conhece tudo dele.
Anotei algumas palavras em sânscrito, que vou utilizar. Repito que não
tenho tanta intimidade com uma pessoa tão grande para a humanidade como
Gandhi, mas, como a Lia colocou, é importante que alguém da política
brasileira fale de como isso impactou a sua vida, nesses 40, 50 anos. É
uma visão de uma pessoa do ocidente, de formação cristã, influenciado,
fortemente, pelo capitalismo e pelo socialismo. Nossa formação foi
marcada por essa forma de viver, uma sociedade onde a cultura da
violência, a lei do mais forte, desde antes dos romanos, é a que vigora.
Então, é difícil para mim perceber o que significou e o que continua
significando a pessoa de Gandhi. Mas, se tenta.
A primeira observação que faço é que ele, como disse o consul (da
Índia), chegou a uma posição de quase santo ou de santo, mas, vendo-se a
história de Gandhi, a autobiografia que escreveu na prisão, até 1925,
se percebe que ele era um homem bastante comum, o que valoriza ainda
mais esse seu percurso, nos seus setenta e sete, setenta e oito anos.
Ele quando foi para a Inglaterra fez coisa incríveis do ponto de vista
da posição a que chegou. Chegou sim a ser um santo, mas era um homem
bastante comum, para os padrões indianos, o que mostra como esse
percurso é possível, não sendo preciso que caia um raio no caminho de
Damasco, como aconteceu com nosso São Paulo. Ele foi aos poucos, a duras
penas, se transformando no que se transformou. O livro dele é
fantástico. Mostra, com sinceridade, como isso aconteceu. E o
aprendizado que teve com a política, particularmente, é
interessantíssimo. Voltando da África, da experiência africana, em 1901,
1902, para a Índia, para arregimentar apoios, teve contato com vários
políticos, líderes importantes. Alguns deles impressionantes, hindus,
embora num país dominado pela Inglaterra. Ele conversou, em 1901,
voltando da África, com essas pessoas, e foi um choque para ele. Porque
esses líderes políticos que defendiam a independência da Índia, se
comportavam como reis, muito distantes do povo. Ele diz que no congresso
em que ele estava, em 1901, o local destinado aos delegados intocáveis
era uma choupana, completamente afastada, totalmente separada. Havia
separação para cada um dos segmentos e o que mais o chocou foi a
choupana onde ficavam os intocáveis, delegados do congresso. Ele foi lá
ver, ficou horrorizado. Então pegou a vassoura e foi limpar a latrina.
Foi uma coisa escandalosa para os não-intocáveis. E fez uma observação
interessante de que se o congresso demorasse mais de cinco dias,
certamente haveria epidemias, tais eram as condições de insalubridade.
Então o choque foi o choque das diferenças de tratamento, essa
desigualdade brutal face a face, da atitude de personalidades da Índia
com as quais ele teve contato em 1901.
Lá pelo ano de 1921, 1922, participou de outro congresso. Aí, vinte
anos depois, já era liderança reconhecida. Tendo certo prestígio, mas
ainda em estágio de formação, nesse congresso e apresentou moções.
Sintomaticamente moções sobre o modo como deveria ser feita a política,
que eram uma moção da não-cooperação e outra moção da não-violência.
Foram aprovadas por unanimidade, mas ele ficou insatisfeito porque não
havia discussão. Os líderes já acordavam previamente quais as moções que
iriam ser aprovadas e as que não seriam. Mesmo assim, não desistiu da
participação, e inclusive foi convidado para ser um dos redatores da
reforma do estatuto do partido. Uma tarefa bastante burocrática, que
assumiu como um aprendizado. Mas a história política dele era do contato
cada vez mais íntimo com o povo. Essa sempre foi a vocação dele na
política hindu, e a sua diferença em relação às outras lideranças da
época.
Assim, quando se observa as idéias mais importantes, tanto nesse
livro, como em outro livro traduzido pela Associação Palas Athenas, O
Caminho é a Meta – Gandhi Hoje, do Johan Galtung, as idéias eram
políticas, embora nem sempre vistas como idéias políticas. E se destaca a
predileção que ele tinha pelo diálogo religioso De tradição hindu,
embora não muito ortodoxo, tinha contatos com o jainismo, com o
sikhismo, junção de princípios hindus e muçulmanos. O diálogo dele,
tanto em direção ao oriente, quanto, principalmente, em direção ao
ocidente, com o islã, com o cristianismo, era intenso. Tinha uma ampla
capacidade de diálogo e se interessava sinceramente. O estágio na
Inglaterra e depois na África e o contato com várias correntes cristãs
foi bem aproveitado. Do islamismo ele tinha bom conhecimento e com os
teosóficos teve uma troca de participação e militância. Portanto, Gandhi
era uma pessoa bastante aberta e via nesse debate ecumênico uma forma
de expressão desse diálogo da unidade homem/homem e da ligação com o
divino. Talvez a religião hindu, pela sua variedade, tenha essa
capacidade e isso explica um pouco essa vocação de centro ecumênico que a
Índia sempre foi. Isso é uma coisa muito importante na política. Parece
religião, mas é política. Como ele mesmo diz. Não existe separação
rígida entre a religião e a política. O difícil é quando a religião
manda na política, aí estamos em dimensão diferente.
A
outra coisa importante era a relação que Gandhi tinha com o sistema de
castas da Índia, que até hoje é problema, passados já sessenta e tantos
anos. Além de vir de longuíssima data, o sistema de castas é altamente
verticalizado. Congela as pessoas, condena as pessoas a serem da casta
onde nasceram, é vertical, no prestígio e em sofrimento. Ele, reformista
e gradualista, muito prático como sempre foi em tudo, propunha uma
horizontalização das castas. Admitia que podia continuar havendo as
castas, mas a verticalização deveria deixar de existir. Argumentava que o
fato da pessoa estar na classe a, b, c, d ou e não deveria ser critério
nenhum de hierarquia entre o “a” e o “e”, devendo ter igualdade de
possibilidade de progredir, sem muita ansiedade de ficar tentando uma
mobilidade, a todo custo, de uma casta para outra. Então, pode-se achar
que era uma pessoa reformista. E era. Mas, na época, isso era uma
verdadeira revolução, porque na prática era uma transformação total. A
horizontalização contra a verticalização das castas era uma proposta
incrivelmente profunda e que mudaria, no longo prazo, o próprio sistema
de castas. Então, mostra, ao mesmo tempo, a ligação que ele tinha com o
passado e a visão que ele tinha de futuro. Uma visão gradualista. Uma
questão interessante é que ele foi expulso da casta dele, quando foi
para a Inglaterra para estudar.Mas a família continuava com prestígio, o
pai dele era uma pessoa de prestígio …
Outra questão importante é que a caracterização ideológica dele é uma
coisa dificílima. Os marxistas, por exemplo, julgavam Gandhi
contra-revolucionário, reacionário, agente do colonialismo inglês.
Porque, na medida em que ele não favorecia a revolução zás-trás, vamos
dizer assim, como os marxistas sempre preferem, revolução do assalto ao
Palácio de Inverno, que muda da noite para o dia, eliminando a outra
parte e pondo outra elite no lugar, achavam que ele era um
contra-revolucionário, com aquela posição gradualista, reformista.
Porque dialogar com a Inglaterra é como dialogar com a Casa Branca. A
Inglaterra era um Império onde o sol nunca se punha. Era a própria
expressão do colonialismo, o império maior que já houve, em todas as
épocas. E Gandhi sempre com aquela posição, muito firme nos princípios,
mas disposto a discutir cada avanço que era possível ser dado no
momento, principalmente afastando o ator da estrutura. Ele nunca tratou
os dirigentes ingleses, pessoalmente, como se eles nunca pudessem se
libertar daquela estrutura de dominação. Isso é uma coisa muito
diferente. Ele era uma pessoa profundamente revolucionária, hoje vejo
assim, dessa minha nova fase, socialista ainda, mas não mais marxista.
Ele era mais revolucionário do que o Lenine. E, aliás, isso explica
porque ele é hoje muito mais presente no dia-a-dia do mundo do que o
próprio Lenine, que era considerado o papa de todos os revolucionários.
Mais revolucionário do que Trotsky, do que o próprio Mao Tsé Tung, que
conduziu o processo na China, vizinha da Índia, embora com algumas
semelhanças, não na questão da violência, mas na ênfase no campo, na
autonomia dos camponeses. Gandhi é muito mais atual, ele tem muito mais
futuro como revolucionário, vamos dizer assim, do que Lenine, Mao Tsé
Tung, Trotsky, Che-Guevara e outros dessa linhagem. É isso que nós vamos
ver cada vez mais no mundo, a importância dele.
Alem do gradualismo e dessa profundidade da meta, que nunca acaba,
ele queria elevar todos à condição de santos, na prática. É uma mudança
profunda, porque é a maior de todas, porque é a própria mudança do homem
e da mulher, de si próprio. É um universo tão grande quanto o das
galáxias. Cada um de nós é um universo tão grande como o universo todo.
Ele queria mudar o universo e, no entanto, tinha os pés muito assentados
no chão. Então, por isso, a estratégia dele de ir pelas aldeias. Aliás,
muito semelhante a Tolstoi e Toureau, que eram homens que ele admirava,
Tolstoi na Rússia e Toureau nos Estados Unidos. A revolução tolstoista
partia dos mujiques. Aliás, os marxistas-leninistas tentaram muitas
vezes recrutar Tolstoi, mas nunca conseguiram. Tolstoi sempre foi dos
camponeses, do campo, uma mudança de baixo para cima, considerada uma
mudança mais próxima dos anarquistas do que dos socialistas-marxistas ou
dos revolucionários burgueses e nacionalistas. Gandhi tinha essa visão
da necessidade de que as aldeias formassem uma espécie de confederação
oceânica e que com autonomia cada vez maior se relacionassem entre si e
que, de baixo para cima, dessem a solidez e a independência de um país
muitas vezes secular como a Índia. Então, essa era a política dele.
Outra característica interessante é que Gandhi tinha alguns insights
dessa questão do desenvolvimento sustentável, dessa questão do verde.
Porque ele dizia muito bem que se nós tivermos um consumo equilibrado
vai dar pra todo mundo. Não é suficiente para todos porque há quem
consome demais e gente que consume de menos. Se todos nós tivermos um
consumo equilibrado há o suficiente para todos. Isso é a própria
invenção do desenvolvimento sustentável, que a ONU lançou, reciclado, em
1992, na Conferência do Rio. Essa era outra concepção muito importante
dele e que também alguns achavam que era uma posição reacionária, porque
não estimulava o maquinismo, a industrialização, e através do consumo,
essa loucura que a gente vive hoje – a busca de um consumo cada vez
mais acirrado. Como ele dizia e também hoje há o suficiente para todo
mundo, o problema é a má divisão. Essa é uma posição muito destacada na
política dele.
Portanto, mais anarquista, mais gradualista, mais, na meta,
revolucionário, e verde, embora sem nem saber que era verde. E, é
claro, a questão da não-violência, que é uma posição política totalmente
revolucionária também. Porque a vida que o homem viveu desde que saiu
das cavernas é a da violência. Jesus colocou coisas desse tipo. Buda
também. Mas Gandhi traduziu, do ponto de vista político, aproveitando
experiências como de Cristo, como de Buda, mas numa época bem mais
nossa, Gandhi traduziu isso para a nossa época. E suas idéias na
política para superar a violência continuam válidas e cada vez mais com
chances de serem aplicadas.
E esse conceito da não-violência tem uma formula prática. Foi Gandhi que inventou a satiagraha, que é a força da verdade, como um método político de expressar como a não-violência pode ser aplicada no dia-a-dia. Ele criou, institucionalizou, experimentou, errou, corrigiu, foi prá lá, foi prá cá, e, praticamente, criou um método político de não-violência que, hoje, é usado por muitos políticos no mundo inteiro.
Assim, vendo-se a síntese do Galtung e a própria autobiografia de
Gandhi até 1925, eu colocaria como três grandes idéias do Gandhi na
política, na época dele e na nossa.
A primeira é a não-violência e o método de satiagraha de como
transformar, pela força da verdade, uma situação de conflito numa
situação de entendimento superior. Porque isso é tudo o que ele quer, um
entendimento superior. Ele não quer uma negociação, um toma lá – dá cá,
para fazer um acordo entre A e B, que inclusive muitas vezes negocia
princípios. Ele quer o crescimento dos dois lados, ou dos três, porque
às vezes ele entrava de mediador, então o crescimento era do ator A, do
ator B e dele, da turma dele, como mediadores em direção a uma
integração, a um crescimento, às vezes até a criação de uma nova
posição, de uma proposta que não existia. Galtung chama isso de
transcendência. É uma invenção nova, que é a coisa mais importante na
política, é você inventar saídas em situações difíceis de conflitos, e o
político, o partido político, a força política, a força social, ter
capacidade de criar uma posição nova para onde possam migrar posições
conflitantes e as duas posições possam crescer. Essa é uma questão
fantástica, a própria essência, a mais alta função da política
Transitar, não como se fosse um negócio, a compra de um cavalo ou de um
burro, mas para a criação de uma posição nova.
A segunda, é a autoconfiança ou autonomia, chamada de swadeshi, que é
a necessidade de que as forças sociais tenham o máximo possível de independência. Isso tem um viés anarquista muito forte.
Gandhi
quer que as pessoas, as classes, os grupos, as aldeias, os países, não
só a Índia, tenham autoconfiança e autonomia, dependam o menos possível
de outras forças e possam viver. E para isso é necessária uma vida o
mais simples possível, para não ficar dependendo de coisa de outros, que
a pessoa não consegue produzir, não consegue ter. Esse é o outro
elemento chave, junto com a não-violência, a autonomia, a autoconfiança.
E o terceiro elemento, que é a autopurificação dele próprio e de
todos os que estão envolvidos no conflito. Esse é o mix político de
Gandhi. Ele propunha na política a autopurificação, dele e de todos os
que participam, o caminho em direção à autonomia, para você ser o menos
dependente possível, passa por ser uma pessoa o mais completa possível,
uma sociedade mais completa possível e a não-violência como o método.
Um aspecto onde se exprimem as posições de Gandhi da não-violência,
da autonomia ou autoconfiança e da autopurificação, é a escolha dele
pelo vegetarianismo. É uma tradição hindu muito forte, mas nem todo
mundo na Índia é vegetariano. Mas o vegetarianismo de Gandhi é um
elemento político. Quando se discute hoje o desenvolvimento sustentável,
você vê como o fato de ser vegetariano ou, pelo menos, quase
vegetariano, adotando a postura gradualista do Gandhi, quase
vegetariano, é importante. Mas o vegetarianismo dele expressa muito bem a
autonomia, a não-violência e o desenvolvimento sustentável É uma
posição atualíssima Ele defendia de forma consciente a posição
vegetariana como um elemento político. E é mesmo. Quando hoje se discute
o desenvolvimento sustentável, você vê como a questão de ser
vegetariano, ou quase vegetariano, é uma posição atualíssima, do ponto
de vista dos três elementos – autonomia, autopurificação e não violência
– e do desenvolvimento sustentável, porque é uma forma de produzir
melhor, destinar melhor as terras e a produção para poder satisfazer
todo mundo, no mundo inteiro. Já existem cálculos mostrando que isso
seria possível se as terras fossem mais dedicadas à produção vegetariana
do que a carnívora.
Há também a questão da independência da Índia. Ele fazia parte desse
movimento, mas fazia parte de uma maneira muito peculiar, que, às vezes,
as pessoas não se dão conta. Parece que ele era um líder nacionalista
como outros tantos, comuns na época dele, Sukarno na Indonésia, Bembela
na Argélia, Nasser no Egito, e outros, mas ele tinha uma característica
muito diferente de aplicação dos princípios da autonomia, da
autopurificação e da não-violência no processo de independência da
Índia. E a independência da Índia não é pouca coisa porque ela era a
jóia da coroa inglesa. De todas as colônias, era a colônia-chave.
Retirada, quebrava o império inglês, como quebrou. E ele diante de uma
luta tão crucial para o mundo todo, pois se estava mudando um sistema
colonial imperialista, do qual a Inglaterra era o paradigma, defendeu
que era possível ter um entendimento com o centro do império. E muitas
vezes, ele defendeu que a Índia e a Inglaterra continuassem ligadas numa
comunidade, onde as nações tivessem os mesmos direitos e deveres.
Chegou a defender, para desespero dos radicais da época, que era
possível e que era bom para a Índia, para a Inglaterra e para o mundo,
um entendimento entre a Inglaterra e a Índia, e que os dois pudessem
continuar ligados, mas como pares, como iguais. Essa posição é
profeticamente correta. Mas, infelizmente o movimento de descolonização,
tanto do lado dos oprimidos como dos opressores, não tomou essa posição
em lugar nenhum e, até hoje a gente vive as conseqüências da
independência usando o método tradicional da violência contra a
violência. Depois, com o avanço da violência e da repressão dos
ingleses, Gandhi aderiu a independência total. O entendimento talvez
tivesse mudado a história recente, se tivesse acontecido, se a
Inglaterra e as lideranças hindus, que estavam com ele, tivessem tido
essa clarividência. Preferiram, tanto a Inglaterra como as lideranças
que estavam na luta pela independência, aquela separação, inclusive com a
criação absurda do Paquistão, que foi uma coisa traumática, desastrosa
para a independência, que foi motivo de desgosto tremendo para Gandhi e
de certa forma o motivo da morte dele, pois ele foi acusado pelo
nacionalista hindu que o assassinou de ser tolerante demais com os
muçulmanos.
E, finalmente, a questão que eu acho, do ponto de vista prático da
política atual, a proposta mais radical, mais utilizável do Gandhi, que é
o conceito da simplicidade voluntária. Também algumas pessoas já
falaram disso. São Francisco já falou da opção pelos pobres, de forma
divina, quase. Mas a proposta do Gandhi da simplicidade voluntaria é
muito mais atual do que a de São Francisco, porque ela é compatível com o
gradualismo do avanço em todas as classes sociais, porque ela é uma
reforma gradual. Você pode ir em direção à simplicidade voluntária, pode
ser uma dona de casa, operária, ou até um burguês comum, que podem
convergir em direção à simplicidade voluntária. E esse é um conceito
essencial do ponto de vista do desenvolvimento sustentável hoje. Talvez
Gandhi não soubesse disso, a ONU também não reconhece isso. Mas a
simplicidade voluntária é o único conceito político capaz de tirar
totalmente do papel o conceito de desenvolvimento sustentável, que é o
equilíbrio entre o econômico, o social e o ambiental, que a ONU propõe
para a gente, no século XXI. É essencial essa convergência das várias
classes sociais em direção à simplicidade voluntária. É um conceito de
grande profundidade e atualidade.
Quero concluir fazendo dois comentários sobre a importância política mundial e no Brasil dessas idéias políticas do Gandhi.
No cenário mundial essa idéia e principalmente essa iluminação que
ele teve da possibilidade de convivência numa comunidade de iguais da
Inglaterra e Índia, que infelizmente não progrediu, é, até hoje, o
conceito político mais importante, uma forma de transcender a
globalização comandada pela economia como essa que nós estamos vivendo
hoje no mundo inteiro. Essa globalização tem vários aspectos, positivos e
negativos, mas ela tem um aspecto altamente negativo que é o comando da
globalização pelo fator econômico, pelo fator capital, pelo fator do
livre mercado. E a visão de Gandhi de certa forma é antecipada um pouco
pela União Européia, no âmbito restrito da Europa, mas já algo desse
tipo. A possibilidade da convivência entre iguais e nações numa espécie
de confederação mundial de nações, da qual a ONU seria a base, que o
homem conseguiu construir até hoje, é o conceito mais importante
político hoje, do ponto de vista da política internacional, porque as
alternativas a essa evolução de uma confederação, de um parlamento
mundial, de uma convivência entre iguais, de uma ONU cada vez mais
democrática e mais eficiente nas suas políticas, quais são? A primeira,
que se vislumbrou quando a União Soviética quebrou, é a hegemonia de um
império único novamente, um império da Casa Branca, dos Estados Unidos. E
o mundo controlado pelo império sediado na América do Norte. A outra
via, que agora parece mais realista do que um império controlado
incontrastavelmente pelos Estados Unidos – parece que nem recursos mais
tem para isso – é a divisão de blocos. E que blocos? E para onde caminha
e tem caminhado na época moderna essa política de blocos? Essa política
de blocos deu duas grandes guerras mundiais. Uma e duas! A política de
blocos hoje caminha para ter os Estados Unidos, talvez tendo aliados
históricos nos países da Comunidade Européia. A Rússia, a Índia e a
China cada vez mais poderosas e fazendo valer o seu peso econômico e
populacional, caminhando para uma definição que pode ser um ou dois
blocos. E também um bloco irredutível, que vem ainda de uma relação
colonial deteriorada, que é o bloco do Islã. Então vejam que ambiente
altamente inflamável que é essa segunda possibilidade. A primeira
possibilidade seria a submissão aos Estados Unidos, comandando e
oprimindo o mundo inteiro social e economicamente. A segunda é a divisão
em blocos, blocos sociais e comerciais, que são a ante-sala da guerra. É
a guerra comercial que pode transitar em direção à guerra propriamente
dita, a qualquer momento. Os Estados Unidos, o ocidente chamado
cristão, comandado pelos anglo-saxões, anexando nós latinos, na rabeira.
A Rússia, a China e a Índia. E o Islã que tem luz própria também. Vejam
o que está acontecendo nesse conflito entre a China e o Japão por causa
de cinco ilhotas que não têm nada, cinco penhascos. Para quê esse tipo
de ensaio, de mostrar as garras, entre a China e o Japão, que faz parte
do bloco dos Estados Unidos, americano, embora seja um país oriental, em
torno de cinco penhascos que nada valem? Isso é um ensaio, afirmação de
autonomia, no sentido antigo da autonomia. A terceira alternativa é a
da construção da confederação das nações, onde todos esses blocos, os
países de força intermediária e principalmente os pequenos países, as
pequenas nações, os pequenos povos, pudessem todos conviver e serem
protegidos nesse governo mundial. Alguns acham que o governo mundial é
uma coisa totalitária, que vai estar sediado seja nos Estados Unidos, ou
na Rússia, ou na Europa, que vai mandar em todos nós. É o contrário. Se
você constrói um governo mundial democrático com respeito pelas
minorias e a possibilidade dos pequenos, dos mais fracos, dos mais
frágeis sobreviverem, terem as suas culturas, que é o que interessa, a
forma de viver, que é o essencial, preservada e terem chance de
sobreviver. Caso contrário, na alternativa um ou dois, todos eles
desaparecerão, serão varridos do mapa, submetidos ao país-império ou aos
blocos mais fortes pelo mundo afora. Essa questão Gandhi vislumbrou e
é, sob meu ponto de vista, uma questão chave, para onde vamos caminhar
ou não, todos os países, inclusive nós. Ou vamos apostar que vamos
entrar para esse clube da China, da Índia e da Rússia, por exemplo, como
parece que alguns dirigentes nossos de Brasília apontam? Nosso país,
que é um país intermediário entre esses grandes países e os países de
menor força política e econômica, tem uma responsabilidade muito grande
nesse processo.
A outra questão importante da política mundial é o desenvolvimento
sustentável, como a ONU propôs a partir do Encontro no Rio. Novamente as
idéias do Gandhi, a autonomia, a simplicidade voluntária, são de
grande valia. Porque não é fácil o que a ONU está propondo para a gente.
A ONU está propondo que você equilibre o fator econômico, o fator
social e o fator ambiental. Isso parece uma coisa óbvia, mas nem o
capitalismo nem o socialismo, durante 200 anos, no mundo inteiro,
fizeram isso. Eles trabalham o econômico e o social. Um mais o
econômico, outro mais o social. E ambiental nada. O ambiente é visto
como um saco sem fundo, do qual você pode sacar a vontade, porque está
lá a nossa disposição. Então a ONU propõe que se equilibre os três
fatores. É uma mudança completa em relação ao capitalismo e ao
socialismo. Novamente aquelas idéias do Gandhi dão uma base muito firme
para se caminhar em direção ao desenvolvimento sustentável. São os dois
fatores de atualidade na política internacional das idéias do Gandhi: o
desenvolvimento sustentável e a possibilidade da convivência entre as
nações, grandes, medias, pequenas, muito pequenas. Eu insisto na questão
da Comunidade Européia porque vejo como uma experiência muito
importante, inclusive, não sei se dando crédito ao Gandhi, mas eles usam
o princípio da subsidiariedade, que é fazer no nível local tudo o que
puder fazer e dar uma autonomia ao nível local. Isso é uma coisa muito
importante da Comunidade Européia que tem possibilitado inclusive
diminuir as tensões entre vários pequenos grupos étnicos, que estavam
submetidos a nações artificiais que existem na Europa e que hoje, ficam
protegidos pela Comunidade Européia, vislumbrando a possibilidade de
uma vida mais autônoma. É o caso da Espanha, por exemplo, que pode se
dividir em cinco. A Cataluña está ensaiando novamente essa disputa, mas
para a Cataluña ficar na Espanha, tendo um relacionamento maior com a
Comunidade Européia, pode ser suficiente para manter sua autonomia
local. Isso pode dar uma estabilidade muito grande ao relacionamento
entre as nações.
Finalmente, no caso do Brasil, a questão do desenvolvimento
sustentável é vital, como no mundo, porque nós temos sob nossa guarda
importantes recursos da humanidade, como é a Amazônia, patrimônio da
humanidade. O Gandhi tinha um princípio, pouco compreendido e que talvez
os indianos saibam explicar melhor, que era a fiduciariedade. Isto é, o
capitalista, o proprietário, tem seus bens como se fosse um fiel
depositário. O proprietário poderia continuar gerindo, se fosse um bom
gestor, mas seu patrimônio era, na verdade, um bem da humanidade, que
estava sob sua responsabilidade. Essa era outra diferença como os
marxistas, que queriam desapropriar tudo, estatizar tudo. Gandhi pensava
que não. Que o patrimônio podia ficar com os capitalistas desde que
eles cuidassem de forma responsável e econômica dos bens que estavam sob
sua responsabilidade. De certa forma é o que acontece com a Amazônia e
conosco, para desespero dos nacionalistas, dos militares. A Amazônia é
um patrimônio da Humanidade sob nossa fiduciariedade, queiramos ou não.
Não adianta arreganhar os dentes. O Brasil tem um papel importante no
conceito de desenvolvimento sustentável, tem chance importante de
influenciar a política. Tem mostrado isso nos encontros da ONU. O Brasil
tem tido um papel muito importante, para o bem e para o mal. Quando o
Brasil tem posições avançadas ele ajuda a puxar na ONU consensos mais
avançados. Mas também quando recua, ajuda retrocessos.
Outra questão que eu aponto como importante no Brasil e que teria um
peso mundial, é se o Brasil desistisse dessa invenção, principalmente da
revolução francesa, do exército nacional. Porque isso é, atualmente, um
enorme desperdício de recursos. Hoje um trilhão e setecentos bilhões no
mundo inteiro são desperdiçados em exercícios militares de exércitos
nacionais e imperialistas pelo mundo afora. Alguns países, como a Costa
Rica, já mostraram que podem lucrar muito em abandonar esse tipo de
estrutura. Mas, é claro, a Costa Rica fez isso porque estava sob o
guarda-chuva dos Estados Unidos. No entanto, o Brasil poderia evoluir
para uma posição muito mais avançada, reduzindo progressivamente suas
Forças Armadas e os gastos que tem com isso e destinando esses recursos
para aplicar na reforma agrária, na saúde, na educação, etc. E
defendendo, na ONU, uma Força Internacional de Paz, não controlada,
evidentemente, pelos países mais fortes, mas democraticamente
controlada. Essa posição do desarmamento progressivo e construção de
Forças de Paz dentro dos países acoplada com uma Força Internacional de
Paz Planetária, é uma idéia que o Brasil está numa posição privilegiada
para defender. Quem é que nos ameaça? Para que precisamos gastar
recursos com jatos militares, submarinos, porta aviões, que ficam
circulando, gastando combustível e emitindo gases de efeito estufa de
forma despudorada como a gente faz? Não tem sentido um monte de quartéis
no Rio Grande do Sul, que estavam lá para nos “proteger” dos
argentinos. Eles não nos ameaçam, a não ser no futebol. Não tem mais
sentido.
E finalmente, a questão da simplicidade voluntária aplicada aqui no
Brasil. Isso não é alheio à nossa cultura cristã. Nós temos condição de
lançar pontes com a nossa cultura cristã, tem muitas coisas do
cristianismo onde essa visão tem raízes e que teria um papel fundamental
na evolução do desenvolvimento sustentável e na divisão dos recursos
para que a gente tivesse um país com necessidades básicas, serviços
básicos, salário máximo e mínimo próximos. Assim teríamos condições de
ter um país mais equilibrado, se houvesse forças políticas onde o
conceito da simplicidade voluntária fosse um princípio político chave. E
não venham dizer que isso é coisa de igreja. Vamos voltar ao Gandhi: a
religião tem a ver com a política, o que não pode é a religião mandar na
política. E isso, na cultura cristã brasileira, poderia ter uma força,
um respaldo muito grande, se um partido político adotasse uma plataforma
política com esses vários elementos: o entendimento internacional, o
desarmamento para contribuir com a paz mundial e a simplicidade
voluntária como a forma de viver.”
------------------
* Eduardo Jorge Martins Alves Sobrinho é médico sanitarista e político
Fonte: http://mercadoetico.terra.com.br/arquivo/sobre-gandhi-e-sua-politica-de-nao-violencia/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=mercado-etico-hoje 18/04/2013
Imagens da Internet
Imagens da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário