Joaquim Ferreira dos Santos*
Eu sou pelo pragmatismo Dalton Trevisan, aquele que disse “nua e louca em teus braços, qual é a mulher feia?”
As muito bonitas que me perdoem, mas a mulher feia pode ser
fundamental. Ela deixa a poesia de lado, e é mais suor, determinação e
foco. Quer jogo. Ela é como um atleta do Bayern de Munique. Sem o mesmo
toque de bola do Messi, mas se supera quando o jogo é bola pro mato que
hoje, meu gato, é final de campeonato.
Elas são assim, um dente
mais separado, o nariz avantajado da Andrea Beltrão, um jeito de olhar
desparagonado, às vezes triste, de manha de gata abandonada. Todas
imbuídas de que precisam avançar pelos flancos e compensar com muita
maldade, muita ambiguidade e pimenta nos olhos, as falhas da sua
cobertura magricela.
A mulher feia dispensa o âmbar da tarde e
outros beletrismos que Vinicius cantou em seu poema sobre a necessidade
da mulher bem esculturada, aquela deusa cheia de saboneteiras
inesperadas em que poucos de nós um dia mergulharemos. Nada contra,
evidentemente, os muitos centímetros carnudos dos lábios desenhados à
perfeição da Sheron Menezzes. Mas eu sou pelo pragmatismo Dalton
Trevisan, aquele que disse “nua e louca em teus braços, qual é a mulher
feia?”.
Eu estive outro dia com um amigo pernambucano que me falou
de sua morena tropicana, na qual estava mergulhado, inebriado em todos
os seus paroxismos de formosura e calor que emana do caju. À tamanha
felicidade estética, eu lhe contrapus minha falta de inveja. Mostrei os
segredos que iam nas fotos da branquela nariguda, o piercing realçando
ainda mais a protuberância, que eu carregava como talismã no bolso da
bermuda.
É preciso acima de tudo que desabroche qualquer coisa de
intenso nesta em que, a princípio, num olhar descuidado, não se nota a
presença clássica de uma flor, como mais adiante vai pedir o poema de
Vinicius de Moraes. A feia, ou a que se apavora com o risco de ser
classificada assim pelos otários estéticos, não dá a impressão que, de
súbito, se veja nela uma garça pousada ou que seu rosto adquira de vez
em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora.
A
feia é o carcará, o grito primal e o uivo do Allen Ginsberg. Não faz
doce, corpo mole ou “aí não”. Ela pega, mata, come e, pisando nos ossos
do seu homem agradecido, diz, “você sim, é que é feio”.
Eu sugiro
que o programa “Superbonita”, do GNT, comemore na contramão os 60 anos
do poema “Receita de Mulher” e jogue flores de plástico na passarela
daquela que tem uns centímetros a mais arredondando o culote e, coitada,
sofre porque foi aconselhada a extirpá-lo. Leu numa coluna que aquela
medida não é a certa.
Quem vai dizer na TV que uma testa
sobressaltada, os cabelos crespos em polvorosa, um prenúncio de barriga,
tudo isso pode ser de encanto e real valor?
Ah, as mulheres que
perdem horas diante do espelho se martirizando com celulites e, depois,
outras horas tentando apagá-las com cremes milagrosos. Será que elas não
leram outro discípulo de Dalton Trevisan, o cantor Leo Jaime, aquele
que disse “celulite quer dizer tesão em braile”?
No encontro com o
amigo celebrante da morena tropicana, que teria a cor de jambo, eu
mostrei as fotos da branquela desproporcionada, um omoplata um pouco
mais à frente do que deveria. Não tinha a bunda serelepe das mulatas da
Plataforma. Faltava-lhe a moda do air-bag vulgar, mas maternalmente
pacificador, da nova geração de louras turbinadas. Não importava. Era a
mais completa tradução viva do hino do Esporte Clube Bahia, aquele do
“ninguém nos vence em vibração”.
Acima de tudo, a minha feia tinha um trunfo evidente.
A
Saint-Tropez já saíra da moda havia pelo menos duas décadas, mas a moça
não a dispensava. A cintura baixa da calça era o portal por onde
transmitia a altivez protuberante do umbigo laranja-bahia, um botão que
explodia no centro de seu ser, um estupor criado sem agrotóxico, fruto
nascido das mãos e do Sublime regador. Quem não quereria provar dele?
A
beleza, com seus padrões rigorosos, ainda é o grande tabu enfrentado
pelas mulheres. É preciso ter o cabelo liso, a bunda dura e a depilação
em dia. A branquela negava a ordem desnatural dessas coisas. Impávido,
colosso, seu nariz gritava “nem aí”, orgulhosamente apontando,
pontiagudo, contra os ditames do in-out.
Em 2013, a nova receita
de mulher é ficar fora dessas obrigações. Botar o sal ao gosto,
caprichar no dendê das estrias e não parar de mexer. Sou cúmplice e
súdito. Murilo Mendes, o poeta-cristão, sabia do metafísico
sobrenatural, mas não era bobo. “O mundo começa ao redor dos seios de
Jandira”, escreveu, erotizado.
Eu faço-lhe fé pagã, mas vou além.
O
mundo começa onde você quiser. Nas dobras nunca exaltadas de uma axila,
na verruga da Sabrina Sato, em algum canto do corpo da mulher que você
escolher para amar, chamar de linda, consagrar como altar de orações — e
em seu louvor se deixar desfalecer.
--------------
* Colunista do Jornal O Globo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário