segunda-feira, 29 de abril de 2013

A verruga da Sabrina

Joaquim Ferreira dos Santos*

Eu sou pelo pragmatismo Dalton Trevisan, aquele que disse “nua e louca em teus braços, qual é a mulher feia?”

As muito bonitas que me perdoem, mas a mulher feia pode ser fundamental. Ela deixa a poesia de lado, e é mais suor, determinação e foco. Quer jogo. Ela é como um atleta do Bayern de Munique. Sem o mesmo toque de bola do Messi, mas se supera quando o jogo é bola pro mato que hoje, meu gato, é final de campeonato.

Elas são assim, um dente mais separado, o nariz avantajado da Andrea Beltrão, um jeito de olhar desparagonado, às vezes triste, de manha de gata abandonada. Todas imbuídas de que precisam avançar pelos flancos e compensar com muita maldade, muita ambiguidade e pimenta nos olhos, as falhas da sua cobertura magricela.

A mulher feia dispensa o âmbar da tarde e outros beletrismos que Vinicius cantou em seu poema sobre a necessidade da mulher bem esculturada, aquela deusa cheia de saboneteiras inesperadas em que poucos de nós um dia mergulharemos. Nada contra, evidentemente, os muitos centímetros carnudos dos lábios desenhados à perfeição da Sheron Menezzes. Mas eu sou pelo pragmatismo Dalton Trevisan, aquele que disse “nua e louca em teus braços, qual é a mulher feia?”.

Eu estive outro dia com um amigo pernambucano que me falou de sua morena tropicana, na qual estava mergulhado, inebriado em todos os seus paroxismos de formosura e calor que emana do caju. À tamanha felicidade estética, eu lhe contrapus minha falta de inveja. Mostrei os segredos que iam nas fotos da branquela nariguda, o piercing realçando ainda mais a protuberância, que eu carregava como talismã no bolso da bermuda.

É preciso acima de tudo que desabroche qualquer coisa de intenso nesta em que, a princípio, num olhar descuidado, não se nota a presença clássica de uma flor, como mais adiante vai pedir o poema de Vinicius de Moraes. A feia, ou a que se apavora com o risco de ser classificada assim pelos otários estéticos, não dá a impressão que, de súbito, se veja nela uma garça pousada ou que seu rosto adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora.

A feia é o carcará, o grito primal e o uivo do Allen Ginsberg. Não faz doce, corpo mole ou “aí não”. Ela pega, mata, come e, pisando nos ossos do seu homem agradecido, diz, “você sim, é que é feio”.
Eu sugiro que o programa “Superbonita”, do GNT, comemore na contramão os 60 anos do poema “Receita de Mulher” e jogue flores de plástico na passarela daquela que tem uns centímetros a mais arredondando o culote e, coitada, sofre porque foi aconselhada a extirpá-lo. Leu numa coluna que aquela medida não é a certa.

Quem vai dizer na TV que uma testa sobressaltada, os cabelos crespos em polvorosa, um prenúncio de barriga, tudo isso pode ser de encanto e real valor?

Ah, as mulheres que perdem horas diante do espelho se martirizando com celulites e, depois, outras horas tentando apagá-las com cremes milagrosos. Será que elas não leram outro discípulo de Dalton Trevisan, o cantor Leo Jaime, aquele que disse “celulite quer dizer tesão em braile”?

No encontro com o amigo celebrante da morena tropicana, que teria a cor de jambo, eu mostrei as fotos da branquela desproporcionada, um omoplata um pouco mais à frente do que deveria. Não tinha a bunda serelepe das mulatas da Plataforma. Faltava-lhe a moda do air-bag vulgar, mas maternalmente pacificador, da nova geração de louras turbinadas. Não importava. Era a mais completa tradução viva do hino do Esporte Clube Bahia, aquele do “ninguém nos vence em vibração”.

Acima de tudo, a minha feia tinha um trunfo evidente.

A Saint-Tropez já saíra da moda havia pelo menos duas décadas, mas a moça não a dispensava. A cintura baixa da calça era o portal por onde transmitia a altivez protuberante do umbigo laranja-bahia, um botão que explodia no centro de seu ser, um estupor criado sem agrotóxico, fruto nascido das mãos e do Sublime regador. Quem não quereria provar dele?

A beleza, com seus padrões rigorosos, ainda é o grande tabu enfrentado pelas mulheres. É preciso ter o cabelo liso, a bunda dura e a depilação em dia. A branquela negava a ordem desnatural dessas coisas. Impávido, colosso, seu nariz gritava “nem aí”, orgulhosamente apontando, pontiagudo, contra os ditames do in-out.

Em 2013, a nova receita de mulher é ficar fora dessas obrigações. Botar o sal ao gosto, caprichar no dendê das estrias e não parar de mexer. Sou cúmplice e súdito. Murilo Mendes, o poeta-cristão, sabia do metafísico sobrenatural, mas não era bobo. “O mundo começa ao redor dos seios de Jandira”, escreveu, erotizado.

Eu faço-lhe fé pagã, mas vou além.

O mundo começa onde você quiser. Nas dobras nunca exaltadas de uma axila, na verruga da Sabrina Sato, em algum canto do corpo da mulher que você escolher para amar, chamar de linda, consagrar como altar de orações — e em seu louvor se deixar desfalecer. 
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* Colunista do Jornal O Globo.

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