quinta-feira, 18 de abril de 2013

A escritura labiríntica em ‘O Evangelho Segundo Talião’


‘O Evangelho Segundo Talião’ (Editora nVersos, 2013), livro de Flávio Ricardo Vassoler, traz 27 narrativas que habitam um labirinto cujas vozes ecoam e percorrem a experiência cotidiana e a memória: as lembranças da tortura que vêm à tona em uma conversa de bar, o sofrimento de um filho que assiste à morte de seu pai, nossa complacência frente à violência.

“Se podes olhar, vê, se podes ver, repara”
Ensaio sobre a cegueira, José Saramago

Em tempos de homens partidos, de cotidianos fragmentados que se reiteram em segundas-feiras as quais, idênticas entre si, parecem reproduzir de modo interminável a ‘Pequena Fábula’ de Kafka, em cujo labirinto as paredes convergem tão rapidamente entre si que tolhem qualquer possibilidade de liberdade, “que fazer da palavra”; “que fazer”? “Ao fim e ao cabo, a quem se deve culpar?” Ainda nos é facultada a possibilidade de ver e identificar o que nos paralisa se, diante das causas, somos “invadidos pelas consequências”?

“Todo homem deve ter um lugar contra o qual se possa voltar”. Mas contra o que e contra quem se voltar quando se suprime e pulveriza a figura do algoz sob uma racionalidade jurídico-científica que entorpece e conforma nosso caos? Eis que Talião e seu evangelho – nosso calvário – reverberam em toda e qualquer boca, silenciando o mal-estar generalizado, perpetuando a idiotia cotidiana. Diante da opacidade e da inércia que nos cercam, “que fazer”, perguntamo-nos, nós, leitores; “que fazer da palavra” – poderia se questionar o escritor. Deveria ele perpetuá-la sob a domesticação da reprodução de um “fazer, executar” automatizados, normatizados em formas que pouco dizem? E, sendo assim, caberia à literatura permanecer circunscrita ao mero conforto de um “aquecer a vida enregelada do leitor”?

Tais são os questionamentos a que somos impelidos em ‘O Evangelho Segundo Talião’ (São Paulo: Editora nVersos, 2013), de Flávio Ricardo Vassoler, a partir das 27 narrativas que habitam um labirinto cujas vozes ecoam e percorrem, freneticamente, a sobressaltos, a experiência cotidiana e a memória: as lembranças da tortura que vêm à tona em uma conversa de bar, o sofrimento de um filho que assiste à morte de seu pai, nossa complacência frente à violência, a espetacularização de nosso real inverossímil a banalizar o inaceitável, discursos cientificizantes que absolvem e sustentam nossa lógica desumana.

Narrativas que afrontam a linearidade a que se acostumou nossa leitura, estórias cujos personagens, tempos e espaços parecem não guardar relação entre si e que, no entanto, compõem, em seu conjunto, uma totalidade que evidencia distintos aspectos de nosso cotidiano, como sugere a metáfora de Sigmund Freud na carta que inicia o romance. “Se atiramos ao chão um cristal, ele se parte, mas não arbitrariamente. Ele se parte, segundo suas linhas de clivagem, em pedaços cujos limites, embora fossem invisíveis, estavam determinados pela estrutura do cristal”. Ao antecipar essa organização textual que, mesmo não linear, casual e pulverizada – constelações que se apresentam aparentemente autônomas –, a parábola-metáfora enunciada pela personagem São Sig também indica um eixo norteador, uma arquitetura delineada em vários níveis – quem sabe os distintos círculos do inferno que compõem nossa experiência diária? – e cuja temática poderia ser sintetizada como “o fractal que narra a união de nossas discórdias, o cristal que mantém as discórdias de nossa união”.

Tal qual a ‘Advertência’ com que nos deparamos em ‘Papéis Avulsos’ de Machado de Assis, sobre os quais o narrador-autor afirma que “parecem negar ao livro uma certa unidade; fazem crer que o autor coligiu vários escritos de ordem diversa para o fim de os não perder. A verdade é essa, sem ser bem essa. Avulsos são eles, mas não vieram para aqui como passageiros, que acertam de entrar na mesma hospedaria. São pessoas de uma só família, que a obrigação do pai fez sentar à mesma mesa”. Estamos diante de uma obra que, sob uma aparente fragmentação, revela sua unidade ao articular distintos gêneros e vozes em diversas narrativas, de modo a orquestrar um discurso que recupera e redimensiona, a partir da lógica taliônica, nossa experiência humana.

Estórias para compreender a História: imiscuem-se relatos e contos a fábulas e ensaios, notícias a referências literárias, epígrafes e aforismos a cartas – e todos, em seu conjunto, tensionam vivências, a memória – “sempre me lembro de que não esqueço” –, e percorremos, em ‘Holocaustro’, os corredores de Auschwitz por meio do relato de um narrador que ora analisa, como em um ensaio, a lógica asséptica do “fazer, executar” ao apresentar “a justiça ordenada, dividida, cindida, o mapa funcional de Auschwitz, asfixia industrial, a aplicação prática da filosofia de gabinete, o teste programático das aporias éticas”, ora se revolta, “Deus não joga dados. Não. Deus arremessa-os a esmo. As nuvens devem ter obstruído sua onisciente visão. Onipotência seletiva”. Narrador que ora se destitui de sua voz ao fazê-la repercutir o sofrimento, o horror de quem ali viveu, “a ratazana se esgueira nojenta e me despreza, minha pele já não pode saciá-la, natureza impiedosa diante da lei do estômago, a indiferença da carne ossuda, a ratazana vai sentir mais fome se me devorar, não vale a pena, lei do mínimo esforço, maximização das satisfações pessoais, princípio de sobrevivência contra os demais” e, então, conclui que “Auschwitz ignora Talião. A pena ultrapassa o sentenciado”.

Do mesmo modo, reencontramos no labirinto de narrativas uma releitura de Ana, a protagonista do conto ‘Amor’ de Clarice Lispector. O drama da insatisfação e do vazio diante de escolhas que padronizam e calam a existência ressoa e é levado ao limite na personagem Lúcia do conto ‘Tédio, objeto desprovido de vontade’. A trajetória dessa mulher, cujos “filhos são ótimos” e o marido “é doce a ponto de me amargurar”, não mais compartilha da resignação da personagem de Clarice que, ao final de seu dia, retorna ao apartamento de modo a sufocar “a vertigem da bondade” que lhe havia inundado, apagando “a pequena flama do dia”: não, Lúcia não relega seu desejo e busca a felicidade em relacionamentos fortuitos e nas prescrições médicas – “Dr. Ricardo ministra a felicidade sobre o papel em branco. Receita de bem viver. Quem disse que não se pode mensurar a alegria?” – receitas estereotipadas que só fazem acentuar o tédio da personagem.

“Todos os caminhos levam a Roma” e cada narrativa justaposta relaciona-se com as demais ao permitir que se vislumbre o “fractal de nossa discórdia”. Faceamos, portanto, uma reunião nada fortuita de estórias labirínticas, obscuras e nostálgicas que nos tragam em um horizonte melancólico e lúgubre, ao longo do qual raramente despontam perspectivas – mesmo os esparsos momentos em que alguma possibilidade de redenção ou reconciliação surge, ela é silenciada pela História ao “som do réquiem se queres paz, prepara-te para a guerra”, já que a própria vida sentencia-nos, desde seu início, à dor: “ao entrarmos na vida que nos vai exaurir, não nos é facultado o sorriso. É preciso chorar para fortalecer os pulmões. Um tapa como o primeiro afago”. No entanto, devido à sua arquitetura que incorpora e metamorfoseia tantas vozes e gêneros, O Evangelho segundo Talião opera uma síntese não ao circunscrever sentidos, mas ao ampliá-los: a tarefa da literatura não é reconciliar-nos com nossa experiência cotidiana, mas inquietar-nos, provocar-nos para, ao final, reconduzir-nos à nossa própria experiência e, então, em carne viva, inquirir-nos sobre “o que fazer”? Até quando iremos nos silenciar e corroborar Talião? Qual será o termo para nossa odisseia contemporânea?
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*Francini Lopes é professora de Língua Portuguesa e mestre em Educação Escolar pela Unesp de Araraquara/SP.
Fonte: http://www.cartamaior.com.br/18042013

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