quarta-feira, 24 de abril de 2013

O ESCRITOR LIMITE (I): O PREGADOR EVANGÉLICO E O DIABO FABULADOR


 
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“De uma maneira geral, a música é terrível! O que é a música? Não sei. Que efeito produz? E por que atua deste modo? Dizem que eleva as almas. É absurdo! É mentira! Exerce grande influência, mas não eleva a alma de maneira nenhuma. Como explicar isso? A música obriga-me a esquecer a minha existência, a minha situação real, transformar-me. Debaixo de sua influência parece-me sentir aquilo que não sinto, compreender o que não compreendo, ser capaz daquilo que na realidade não sou… Na China, a música é dirigida pelo Governo. Devia ser assim em toda parte. Como permitir que um homem qualquer, um músico, sobretudo se é uma criatura sem moral, hipnotize as pessoas e faça delas tudo quanto quer? Poderá, por acaso, tocar-se num salão, entre mulheres decotadas, o presto da Sonata a Kreutzer, por exemplo? Como será possível ouvir esse presto, aplaudir um pouco e depois bebericar e comentar a última fofoca? É preciso, depois de ouvir a música, fazer aquilo que ela nos inspirou. Não pode deixar de ser prejudicial provocar um sentimento que não possa manifestar-se.”

Esse é um trecho crucial de SONATA A KREUTZER (1889), de Tolstói, onde o personagem principal , Pozdnichev, conta a um desconhecido(o narrador), no decorrer de uma noite, em meio a uma longa viagem de trem, como praticou o uxoricídio por suspeitar que a esposa o estivesse traindo com um violinista.

A diatribe contra a música associa-se a um tom inquisitório que ataca o casamento, as relações carnais, o divórcio, a medicina, as mulheres, os judeus, os ingleses, o ócio e a superalimentação, tudo colocado numa mesma apocalíptica condenação moral. Isso não seria problema se estivesse restrito apenas à psicologia de Pozdnichev como personagem, o qual expõe suas idéias e a si mesmo, um pouco como os personagens ressentidos de Dostoiévski, como o narrador de Memórias do subsolo.

O problema de SONATA A KREUTZER (e que o torna um dos textos mais irritantes da literatura) é que Tolstói incluiu um pós-escrito, no qual encampa as teses centrais de Pozdnichev. Como se sabe,o grande escritor russo foi encaminhando-se para um evangelismo radical e anti-ocidental, com o qual procurou criar uma religião, o tolstoísmo. E SONATA A KREUTZER está na fronteira entre a representação ficcional e a pregação saneadora dos costumes.. Tolstói chega a afirmar, no seu pós-escrito que a união entre um homem e uma mulher, sob qualquer forma, institucional ou não, é “uma finalidade indigna de um homem”,similar a engordar pelo excesso de alimentação.

É certo que o casamento burguês foi um dos maiores alvos da literatura oitocentista, inclusive do próprio Tolstói no soberbol Anna Karênina (1875-77).É certo que o príncipe Bolkonski (com o qual Tolstói ficará cada vez mais parecido, antes de mergulhar no seu avatar final de rei Lear de Iasnaia Poliana), pai de Andriei, um dos protagonistas de Guerra & Paz (1865-69), afligia-se com a educação das mulheres e sua predisposição às frivolidades românticas, motivo pelo qual atormentava a filha Maria (o que não a impedirá de apaixonar-se tola e romanticamente e de casar-se desastrosamente).

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Mas nunca a pregação moral fora tão evidente, mesmo sabendo que Tolstói passara a renegar suas realizações artísticas anteriores.Basta ver a sua visão da música (hoje em dia compartilhada por uma grande escritora de fôlego épico similar: Doris Lessing, que tem a mesma desconfiança com relação a ela, mas com argumentos mais convincentes) para perceber como sua concepção artística resvalou para a severidade e a seriedade ridículas. Aliás, é a música que fará com que o demonismo e degradação latentes no casamento de Pozdnichev venham à tona,com a entrada em cena do violinista Trucachevski.

Três anos antes da história do uxoricida Pozdnichev, Tolstói já chegara a um patamar irretornável de denúncia do egoísmo e da vaidade humana na eclesiástica obra-prima A morte de Ivan Ilitch. E, a partir de então,resolveu pregar ao invés de ordenar artisticamente a realidade e a experiência, com suas contradições e impasses.

Contudo, assim como o destino de Pozdnichev representou uma grande vendeta moral contra sua fatuidade inicial, o Tolstói escritor genial vinga-se do pregador moralista ao longo de SONATA A KREUTZER. E só ir lendo e reparando como, após todas as páginas inicias de diatribes e arengas, a força da ficção vai se impondo, a história vai se enriquecendo, os detalhes vão sombreando o quadro maniqueísta proposto e vão surgindo ambigüidades dignas do Machado de Assis de Dom Casmurro e, ao fim e ao cabo, temos uma tela tão vívida da sociedade como os melhores momentos de Guerra & Paz, e um retrato da alma humana quase tão dilacerante e devastador quantos os grandes momentos de Dostoiévski.

O austero evangelizador encontra o solerte diabo fabulador (que tanto arrenegara) no meio do redemunho, rende-se e sela o pacto .E é por isso que SONATA A KREUTZER, esse texto exasperante , perturbador e feroz, resiste até hoje, mudem-se os tempos,mudem-se as vontades.
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 29 de outubro de 1996)

Adendo- Na resenha acima me vali da tradução de Natália Nunes no volume II das Obras Completas (Nova Aguilar).Em 2008, a editora 34 lançou a tradução de Boris Schnaiderman
Fonte: http://armonte.wordpress.com/2013/04/24/o-escritor-limite-i-o-pregador-evangelico-e-o-diabo-fabulador/

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