by alfredomonte
“De
uma maneira geral, a música é terrível! O que é a música? Não sei. Que
efeito produz? E por que atua deste modo? Dizem que eleva as almas. É
absurdo! É mentira! Exerce grande influência, mas não eleva a alma de
maneira nenhuma. Como explicar isso? A música obriga-me a esquecer a
minha existência, a minha situação real, transformar-me. Debaixo de sua
influência parece-me sentir aquilo que não sinto, compreender o que não
compreendo, ser capaz daquilo que na realidade não sou… Na China, a
música é dirigida pelo Governo. Devia ser assim em toda parte. Como
permitir que um homem qualquer, um músico, sobretudo se é uma criatura
sem moral, hipnotize as pessoas e faça delas tudo quanto quer? Poderá,
por acaso, tocar-se num salão, entre mulheres decotadas, o presto da Sonata a Kreutzer, por exemplo? Como será possível ouvir esse presto,
aplaudir um pouco e depois bebericar e comentar a última fofoca? É
preciso, depois de ouvir a música, fazer aquilo que ela nos inspirou.
Não pode deixar de ser prejudicial provocar um sentimento que não possa
manifestar-se.”
Esse é um trecho crucial de SONATA A KREUTZER
(1889), de Tolstói, onde o personagem principal , Pozdnichev, conta a
um desconhecido(o narrador), no decorrer de uma noite, em meio a uma
longa viagem de trem, como praticou o uxoricídio por suspeitar que a
esposa o estivesse traindo com um violinista.
A
diatribe contra a música associa-se a um tom inquisitório que ataca o
casamento, as relações carnais, o divórcio, a medicina, as mulheres, os
judeus, os ingleses, o ócio e a superalimentação, tudo colocado numa
mesma apocalíptica condenação moral. Isso não seria problema se
estivesse restrito apenas à psicologia de Pozdnichev como personagem, o
qual expõe suas idéias e a si mesmo, um pouco como os personagens
ressentidos de Dostoiévski, como o narrador de Memórias do subsolo.
O problema de SONATA A KREUTZER
(e que o torna um dos textos mais irritantes da literatura) é que
Tolstói incluiu um pós-escrito, no qual encampa as teses centrais de
Pozdnichev. Como se sabe,o grande escritor russo foi encaminhando-se
para um evangelismo radical e anti-ocidental, com o qual procurou criar
uma religião, o tolstoísmo. E SONATA A KREUTZER está na
fronteira entre a representação ficcional e a pregação saneadora dos
costumes.. Tolstói chega a afirmar, no seu pós-escrito que a união entre
um homem e uma mulher, sob qualquer forma, institucional ou não, é “uma finalidade indigna de um homem”,similar a engordar pelo excesso de alimentação.
É certo que o casamento burguês foi um dos maiores alvos da literatura oitocentista, inclusive do próprio Tolstói no soberbol Anna Karênina
(1875-77).É certo que o príncipe Bolkonski (com o qual Tolstói ficará
cada vez mais parecido, antes de mergulhar no seu avatar final de rei
Lear de Iasnaia Poliana), pai de Andriei, um dos protagonistas de Guerra & Paz
(1865-69), afligia-se com a educação das mulheres e sua predisposição
às frivolidades românticas, motivo pelo qual atormentava a filha Maria
(o que não a impedirá de apaixonar-se tola e romanticamente e de
casar-se desastrosamente).
Mas
nunca a pregação moral fora tão evidente, mesmo sabendo que Tolstói
passara a renegar suas realizações artísticas anteriores.Basta ver a sua
visão da música (hoje em dia compartilhada por uma grande escritora de
fôlego épico similar: Doris Lessing, que tem a mesma desconfiança com
relação a ela, mas com argumentos mais convincentes) para perceber como
sua concepção artística resvalou para a severidade e a seriedade
ridículas. Aliás, é a música que fará com que o demonismo e degradação
latentes no casamento de Pozdnichev venham à tona,com a entrada em cena
do violinista Trucachevski.
Três
anos antes da história do uxoricida Pozdnichev, Tolstói já chegara a um
patamar irretornável de denúncia do egoísmo e da vaidade humana na
eclesiástica obra-prima A morte de Ivan Ilitch. E, a partir de
então,resolveu pregar ao invés de ordenar artisticamente a realidade e a
experiência, com suas contradições e impasses.
Contudo,
assim como o destino de Pozdnichev representou uma grande vendeta moral
contra sua fatuidade inicial, o Tolstói escritor genial vinga-se do
pregador moralista ao longo de SONATA A KREUTZER. E só
ir lendo e reparando como, após todas as páginas inicias de diatribes e
arengas, a força da ficção vai se impondo, a história vai se
enriquecendo, os detalhes vão sombreando o quadro maniqueísta proposto e
vão surgindo ambigüidades dignas do Machado de Assis de Dom Casmurro e, ao fim e ao cabo, temos uma tela tão vívida da sociedade como os melhores momentos de Guerra & Paz, e um retrato da alma humana quase tão dilacerante e devastador quantos os grandes momentos de Dostoiévski.
O
austero evangelizador encontra o solerte diabo fabulador (que tanto
arrenegara) no meio do redemunho, rende-se e sela o pacto .E é por isso
que SONATA A KREUTZER, esse texto exasperante , perturbador e feroz, resiste até hoje, mudem-se os tempos,mudem-se as vontades.
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 29 de outubro de 1996)
Adendo- Na resenha acima me vali da tradução de Natália Nunes no volume II das Obras Completas (Nova Aguilar).Em 2008, a editora 34 lançou a tradução de Boris Schnaiderman
Fonte: http://armonte.wordpress.com/2013/04/24/o-escritor-limite-i-o-pregador-evangelico-e-o-diabo-fabulador/
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