Luiz E. Garcez Leme*
O assunto é aborto
Em 25 séculos, o juramento hipocrático deixou de ser patrimônio de médicos ou pacientes para tornar-se patrimônio comum de todos
Para todos aqueles que têm interesse por ética de pesquisa e bioética,
alguns temas são familiares. A questão do aborto é típica.
A favor do aborto (ou de seus sinônimos adocicados) esgrime-se com o
pacote de argumentos dos direitos de autonomia da mulher, sem se
conceder direitos ao embrião; da imaginada impessoalidade do embrião,
sem explicar o que seriam então essas curiosas células que se
desenvolvem e estruturam com um genoma distinto do da mãe; da
conveniência social e de saúde pública.
Contra o aborto esgrime-se essencialmente com os direitos da pessoa
humana desde a concepção; da superioridade do direito à vida sobre a
conveniência social ou pessoal, que impede, por exemplo, que se
assassine um vizinho incômodo.
Existem também os dados oficiais de mortalidade materna do Ministério da
Saúde (Datasus), que destoam de muitos dados usados como bandeiras a
favor do aborto.
A questão não é atual. Entre gregos e romanos a prática do aborto, do
infanticídio, do suicídio e de outras formas de intervenção na vida era
conhecida e até comum. O mesmo pode-se dizer do ponto de vista social
sobre a pedofilia, a sujeição da mulher ou a escravidão.
Em meio a essa realidade, vários séculos antes de Cristo, alguns já
anteviam que não era este o caminho para o verdadeiro cuidado do ser
humano. Tal percepção levou os discípulos de Hipócrates de Cós a
elaborarem uma série de normas que confrontava a prática vigente
colocando o ser humano em primeiro lugar.
Durante quase 2.500 anos os médicos têm proclamado, desde sua formação,
que o cumprimento dos princípios hipocráticos é essencial não só ao
exercício profissional mas à sua própria existência.
Na verdade os princípios do assim chamado juramento hipocrático nesses
25 séculos deixaram de ser patrimônio de médicos ou pacientes para
tornarem-se patrimônio comum de todos. São bases de percepção da
dignidade humana.
O texto pode ser dividido em dois grupos de compromissos: os referentes à
vida biológica e os referentes à vida biográfica, ambos componentes
humanos indispensáveis.
Do ponto de vista biológico, o compromisso veta a agressão à vida pela
má prática, o aborto ou o suicídio assistido. Do biográfico, exige o
direito à intimidade e ao sigilo e veta a utilização da atividade médica
para dano ou sedução.
O que impressiona é que o juramento deixa explícito que esses direitos e
deveres são válidos para homens ou mulheres, livres ou escravos.
Revolucionário para a época hipocrática e, infelizmente, parece que
também para a nossa.
A controversa posição da atual diretoria do Conselho Federal de Medicina
(CFM) sobre a possibilidade de aborto até o terceiro mês de vida da
criança, tal como amplamente veiculada pelos meios de comunicação, não
parece ter em conta o compromisso sobre o qual todos os médicos, velhos
ou novos, algum dia juramos.
Não me parece que o CFM tenha, ao lado de outras atribuições legítimas,
autoridade suficiente para anular o juramento hipocrático.
A proteção do mais frágil baseada em direitos que subsistem em qualquer situação está na essência radical do agir médico.
A comunidade, mesmo a mais simples, sabe disso e cobra com acerto esse
direito quando se sente ameaçada. Qualquer médico com um mínimo de
experiência já ouviu em algum pronto-socorro do passado de um familiar
desesperado: "Doutor, os senhores têm que fazer alguma coisa... Os
senhores juraram!". É verdade: nós juramos!
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* LUIZ E. GARCEZ LEME é médico, professor da Faculdade de Medicina
da USP e coordenador da Comissão de Ética em Pesquisa do Hospital das
Clínicas da mesma universidade
Fonte: Folha on line, 29/04/2013
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