Nilton Bonder*
O que vemos pela cidade são respeitáveis senhores e senhoras como bichos
ao volante. Dão vazão a violências que fora do carro não dariam
A palavra automóvel, uma viatura com mobilidade própria, pode ser
enganosa. Tem autonomia de potência, mas não tem, pelo menos até hoje,
autonomia de condução.
Quem conduz um automóvel é uma consciência. O que talvez seja mais
reflexivo nesse prefixo (auto) seja justamente a característica maior da
consciência: tudo que por ela é gerido regressa a ela mesma, num efeito
bumerangue, impactando e determinando quem ela é.
O carro engana fazendo parecer que é uma entidade independente,
detentora de uma placa própria, quando sua identidade sou eu e meu nome.
Descobrimos isso quando a multa vem personalizada, momento de susto e
de breve recusa em assumir-se a autoria.
O carro faz parecer que existia outro personagem que não o próprio
condutor. Porém a lataria não pode ocultar o personagem e o Renavam não
pode esconder a habilitação. O insulfilm não tem como mascarar o rosto e
o deslocamento não tem como deixar para trás o que foi feito.
Porque fechar outro carro é como empurrar alguém no meio da rua. Porque
buzinar é como chegar e gritar no ouvido do outro. Porque acelerar em
direção a um pedestre é como levantar a mão em ameaça ao próximo. Porque
estacionar trancando o outro é produzir um cárcere privado. Porque
ultrapassar perigosamente é como sair armado.
Porque matar no trânsito, não nos enganemos, para a consciência que
conhece as nossas imprudências, é sempre doloso, sempre com a intenção
de matar. O auto de automóvel nos engana a todos e a maioria é pior como
motorista do que como cidadão. Tem mais pecados registrados nas
fiscalizações eletrônicas, e mais ainda quando elas não estão por perto,
do que na vida de pedestre.
Sinal de que no carro somos outra pessoa, mais perigosa. Sinal de que
nossa consciência assume que tem menos responsabilidade dentro do que
fora dessa entidade.
O condutor é uma consciência e uma consciência é um bicho vestido. As
sensações de anonimato e de que o pequeno espaço de nossa carroceria é
privado fazem o bicho se despir como ele não faz do lado de fora. E o
que vemos pela cidade são respeitáveis senhores e senhoras como bichos
atrelados a um volante.
Dão vazão a violências que fora, vestidos, não dariam. Além das
agressões e abusos que produzem, saem dos seus carros piores pessoas
diante de suas próprias consciências. Seguem a rotina como se nada
tivesse acontecido, mas trouxeram para dentro de sua casa, de sua alma,
marcas de pneus.
Certa vez, um rabino estava numa carroça quando começou a subida de uma
ladeira. Ele não hesitou em saltar da carroça e se pôs a andar ao lado
do cavalo. O cocheiro questionou sua atitude, ao que ele explicou que na
subida ficava difícil para o animal. O cocheiro reagiu: "Mas é apenas
um animal... Então o senhor, um ser humano, é quem tem que fazer força e
ficar cansado?". O rabino respondeu: "Justamente por isso, como sou um
ser humano, não quero me ver no futuro num litígio com um cavalo!".
O condutor é aquele que enxerga as interações e cuida não só para fazer o
seu percurso, mas também para não se ver no futuro em litígios com
animais, seja na vida real ou em sua própria consciência.
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* NILTON BONDER, 54, rabino da Congregação Judaica do Brasil no Rio de Janeiro, é autor de "A Alma Imoral", entre outros
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/14/04/2013
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