Emiliano José*
Países desenvolvidos possuem forte regulação da publicidade para crianças.
Foto: Istock Photos
A publicidade é um negócio especial, motor do capitalismo. A atividade
consegue fazer do produto uma mercadoria, transferir qualidades mágicas
ao que se quer vender e ainda carrega consigo, por isso mesmo, uma carga
enorme de criatividade, pois manipula a mente das pessoas. Realiza a
transformação a que Marx se referia, transformando valor de uso em valor
de troca. Ninguém compra um automóvel. Compra o que pensa ser aquele
automóvel. E convence. E vende.
O capitalismo é o modo de produção das marcas a partir da
publicidade. Isso foi registrado por Paul Baran e Paul Sweezy em seu
notável livro O capital monopolista, de 1966. E esse
capitalismo de marcas data do final do século XIX, início do século XX.
Valem mais as marcas, o simbolismo que se empresta a elas, do que o
produto concreto que representam. Então, a publicidade é algo
extraordinário pela sua força, pelo seu poder de, sob vários aspectos,
moldar o mundo.
Por isso, pergunto: será justo que nossas crianças continuem a ser
constantemente bombardeadas por mensagens publicitárias destinadas a
incentivar o consumo, a propalar uma visão consumista de mundo, a serem
os porta-vozes do mercado junto aos seus pais? É correto que a
publicidade no Brasil não experimente nenhuma regulamentação com relação
à publicidade infantil?
Respondo logo que, do meu ponto de vista, não. As crianças têm sido
utilizadas não só para a venda de produtos infantis, como para estimular
o consumo de produtos destinados a adultos. Lamentavelmente
transformam-se em joguetes na construção do consumismo, na efetivação da
transformação do valor de uso em valor de troca.
Não estou especulando. O mundo publicitário assume isso, sem culpa.
Desculpem-me os leitores. Falar em culpa no mundo da publicidade é um
equívoco completo. Tenho participado intensamente desse debate na Câmara
Federal. Uma amiga do Instituto Alana, Gabriella Vuolo, que se dedica a
combater o consumismo infantil, recentemente me mostrou um cartaz que
dizia: “Venha ao Maximídia e aprenda a falar com quem mal aprendeu a
falar”. Isso mesmo. Obsceno assim. A publicidade começa a mexer com os
corações e mentes das crianças muito cedo. De modo planejado,
científico.
Tratava-se, no caso a que me refiro, de um debate do Maximídia 2011, o
21º Encontro Internacional de Marketing e Comunicação, realizado pela
Meio&Mensagem, em São Paulo, que ocorreria no dia 6 de outubro. “É a
oportunidade de você e sua empresa aprenderem a falar com gente que
influencia imensamente o consumo de milhões de adultos”.
Não há, portanto, dúvida quanto ao que se quer com a publicidade
destinada ao público infantil – levar os adultos a comprar, e não
somente produtos para as crianças. Os pequenos transformam-se no
batalhão avançado do consumismo, os que primeiro devem convencer os pais
a comprar, e a adquirir as mais variadas mercadorias, não apenas os
produtos infantis.
As crianças – e falamos de uma idade que vai de zero a 12 anos –
ainda não têm maturidade suficiente, como é natural, não têm experiência
de vida, acreditam com mais facilidade nas coisas que ouvem e vêem, são
pessoas vulneráveis. Crianças não sabem controlar seus desejos e são
facilmente iludidas pelas atraentes, bem estudadas e pesquisadas
mensagem publicitárias. São, portanto, facilmente manipuláveis. Como o
diz quase abertamente o texto do cartaz a que me referi acima.
As conseqüências para as crianças são danosas, graves. Obesidade
infantil, uma delas. A publicidade de alimentos não saudáveis contribui
muito para a formação de maus hábitos alimentares. De cada 10 alimentos
anunciados no Brasil, sete são guloseimas e comidas industrializadas, e
15% das crianças brasileiras já estão obesas e 33% com sobrepeso.
Constitui um problema de saúde, inclusive, também, de natureza
psicológica.
A erotização precoce é outra questão. Estimuladas pela publicidade,
as crianças acabam pulando etapas importantes de seu desenvolvimento.
Muito cedo, são induzidas a deixar de brincar, de desenvolver a sua
imaginação, de fantasiar por si próprias, para se envolver com as
fantasias que a publicidade lhes impõe, e passam a se preocupar em
parecer mais velhas e atraentes, portando-se como adultas. Os pais às
vezes não percebem tudo isso, e acabam entrando no jogo. Quantos pais e
mães não se orgulham em apresentar uma filha de pouco anos como uma
mulher, ou um menino como um homem feito?
Também é notório que crianças mais pobres, que não podem comprar o
que o mundo publicitário anuncia, reagem contra a família e a sociedade.
Violência e delinquência precoces também estão vinculadas ao consumo
insatisfeito. Muitos jovens vão buscar no tranco, armados, o que o
fantástico mundo da publicidade apregoa como algo permitido a todos.
A publicidade sem controle de bebidas alcoólicas também estimula o
consumo precoce do álcool, com as conseqüências conhecidas. Ficamos
discutindo as drogas e quase nos esquecemos da gravidade do consumo do
álcool na infância e adolescência. Nossas crianças têm de ser protegidas
desse bombardeio. Na Câmara Federal, há projetos destinados a isso, e
nós os temos apoiado, promovido audiências públicas e insistido que
tramitem rapidamente.
Ao dar um passo para regular a publicidade
infantil, avançaremos na proteção de nosso futuro.
Será um gesto
carinhoso, amoroso.
O consumo é assunto de adultos.
Crianças merecem ser
protegidas.
Sei que no Brasil, quando se fala em regulação, apela-se logo para a
democracia, como se o mundo dos negócios estivesse profundamente
preocupado com nosso destino político, como se o regime democrático
estivesse correndo risco. Não está. Em outros países há regulação em
relação ao assunto. Na Suécia, é proibida a publicidade na TV dirigida à
criança menor de 12 anos em horário anterior às 21 horas. É proibido
qualquer tipo de comercial que seja veiculado durante, imediatamente
antes ou depois dos programas infantis – seja de produtos destinados ao
público infantil ou adulto.
Na Inglaterra, é proibida a publicidade de alimentos com alto teor de
gordura, sal e açúcar dentro e durante a programação de TV com apelo ao
público menor de 16 anos, a qualquer hora do dia ou da noite, em
qualquer canal ou emissora, como é proibida a publicidade para crianças,
que ofereça produtos ou serviços por telefone, correio, internet ou
celular.
Por lá também, para não confundir a criança, é proibido o uso de
efeitos especiais que insinuem que o produto possa fazer mais do que
efetivamente faz, o que ocorre no Brasil à saciedade. É proibida
qualquer transmissão antes das 21h de publicidade comercial apresentada
por personalidades ou personagens – inclusive bonecos, fantoches e
marionetes – que apareçam regularmente em programas de TV apresentando
ou endossando produtos ou serviços de particular interesse das crianças.
Na Alemanha, os programas infantis não podem ser interrompidos pela
publicidade. Crianças não devem ser usadas para apresentar vantagens
especiais e características de um produto que não seja adequado ao
natural interesse e manifestação delas. Na Noruega, é proibida a
publicidade de produtos e serviços direcionados a crianças menores de 12
anos. E é proibida a publicidade durante programas infantis.
EUA, Bélgica, Canadá, Irlanda, Dinamarca, Holanda, Áustria, Portugal,
Luxemburgo, Itália e Grécia são alguns outros países que têm
legislações voltadas à proteção das crianças em relação à publicidade.
Como se vê, não estaremos mal acompanhados caso consigamos avançar na
legislação com algum tipo de proteção às nossas crianças diante do
indiscriminado bombardeio publicitário.
Ninguém poderá rotular de autoritarismo qualquer regulação. Ao
contrário. Todos os países a que nos referimos são países democráticos, e
que zelam por suas crianças. Ao dar um passo para regular a publicidade
infantil, avançaremos na proteção de nosso futuro. Será um gesto
carinhoso, amoroso. O consumo é assunto de adultos. Crianças merecem ser
protegidas.
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*Emiliano José é jornalista, escritor, doutor em Comunicação e Cultura
Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia. www.emilianojose.com.br
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/politica/criancas-em-risco/?autor=30
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