Paulo Ghiraldelli Jr.
O grego Sócrates identificou o eu com a
alma, o cristão Pascal ( foto) mostrou o eu como o nada (1). Estranho, não?
Isento de qualquer contaminação judaica, Sócrates traçou uma distinção
entre corpo e alma, colocando o “si mesmo” como sendo a razão ou a
inteligência, o que para ele nada mais era que a alma. Completamente
imerso na devoção cristã, Pascal descasca o eu de suas qualidades para
dizer que, sem elas, o eu não é senão o vazio.
Para os gregos a polis era um problema,
não o eu. Para Pascal, moderno, a cidade não era outra coisa senão
reunião de eus – o eu era um problema. Em parte, o trágico em Pascal se
revela nessa sua descoberta que aquilo que mais prezamos, que mais
admitimos como nosso, a nossa própria familiaridade conosco, é apenas
uma quimera. Ele insistiu que deveríamos odiar o eu, essa quimera, esse
conjunto de qualidades, títulos e papeis que faz com que imaginemos que
há um eu. Odiar isso seria um bom caminho para nadificar-se e, assim
fazendo, dar passos na direção de não mais perder tempo com o amor de si
e então poder ver que o amor verdadeiro é o amor para o que é grandioso
– Deus.
Eis aí, então, que Pascal chega a uma
noção tipicamente moderna e cristã, desconhecida do mundo greco-romano: a
humildade. Claro, não se trata da humildade piegas, cristã no sentido
que Nietzsche a criticou. Trata-se da humildade que passou pela
nadificação, ou seja, pelo reconhecimento do vazio, algo semelhante ao
ocorrido com o personagem de Machado de Assis em O espelho, aquele que
precisou colocar seu uniforme para voltar a ser um eu. Em outras
palavras, trata-se da via para a humildade como uma via filosófica, não
meramente carregada por um palavreado de uma religião banalizada.
Todavia, é difícil não ver problemas
nessa via. Pois a nadificação levada adiante por Pascal não é uma
simples nadificação. Trata-se de reconhecer-se com um vazio e, ao mesmo
tempo, voltar o amor para o que é real, não vazio, Deus. Ora, mas esse
ato não é justamente um ato que, ao invés de ser humilde, é exatamente o
oposto da humildade? Afinal, por que não ficar apenas no nada? Por que
ter de dar esse segundo passo, que é nadificar-se para ir a Deus? Por
que se colocar diante de Deus? Colocar-se diante de Deus, ou seja,
nadificar-se diante de algo grandioso como Deus, não é também já
escolher um lugar no mundo? E esse lugar não é um lugar privilegiado,
uma vez que não se está diante de semelhantes ou similares, mas diante
do que é o mais grandioso? Por que o homem simplesmente não se reconhece
vazio e se põe, então, ao lado dos animais, plantas, pedras, estrelas,
unicórnios e até daimons? Por que o homem, até para se mostrar um nada,
precisa se por diante do tudo, Deus? Não seria a verdadeira humildade
adquirida no momento em que, descobrindo-se vazio, poderia olhar ao seu
redor e ver que há o mundo, que também merece consideração?
Não! O cristão de tipo Pascal parece não
escapar do humanismo de sua época, que em princípio ele combateu. O
homem é um eu que é, por sua vez, vazio, mas isso é admitido na presença
de Deus para que, então, se possa amar a Deus, reconhecendo nele o que é
o oposto do nada. Esse ato não é um ato de humildade. Pois ele se
sustenta como uma comparação entre Deus e Homem, sem que exista qualquer
outra coisa no mundo. Como ser humilde diante de outro homem ou diante
de um cão e, então, ter um projeto que não seja o da dominação, se o
homem só consegue se nadificar diante do que é o mais poderoso, o
grandioso, o tudo, Deus? Não é o supra sumo da falta de humildade não
ficar diante de outros, mas só diante de Deus para nadificar-se?
Assim, não mais em um âmbito comum, mas
em um âmbito filosófico, o exercício de Pascal me faz pensar na questão
da humildade como sendo um paradoxo. No mínimo um paradoxo, na pior das
hipóteses, então, uma ideologia sorrateira de pretensa legitimação da
dominação.
Apesar de tudo, Pascal é um humanista.
Os gregos sim, filosoficamente, poderiam ser humildes no seu não
reconhecimento do sentimento da humildade. Os que tanto quiseram ser
humildes, os cristãos, parecem às vezes serem justamente o que não têm
como serem humildes.
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* Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
(*) Pequeno texto para registrar minha fala no programa Hora da Coruja sobre Pascal, dia 23/04/2013
(1) Que se entenda a nadificação, aqui, como um processo técnico, como ele está no aforismo 323 dos Pensamentos.
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/o-paradoxo-da-humildade/
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