Juremir Machado da Silva*
Entrevistas marcantes: Eco e a leitura
Umberto Eco realmente dispensa apresentação. Em todo caso, vale dizer que ele, o sábio
italiano nascido no Piemonte, em 5 de janeiro de 1932, professor de
Semiologia na Universidade de Bolohna, autor do clássico Tratado de Semiótica Geral e dos best-sellers O Nome da Rosa e O Pêndulo de Foucault, foi escolhido para brilhar no Colégio da França, a
prestigiosa instituição parisiense criada em 1530 e que não organiza
exames e nem emite diplomas. Em resumo, existe para estimular a pesquisa
pura, o ensino no grau máximo da sofisticação e coroar a carreira dos
eruditos. Na aula inaugural, no dia 2 de outubro de 1992, compareceram
ao tradicional rito acadêmico o poderoso ministro da Educação e Cultura
da França, Jack Lang, e ilustres jornalistas culturais como Bernard
Pivot. Chamado a falar durante quatro meses sobre A Procura de uma
Língua Perfeita na Cultura Européia, o mestre viajou da cabala ao
esperanto passando pelas reflexões de Dante, Descartes, Wilkins, Raymond
Lulle, Porfírio e mais uma infinidade de filosofias, teologias, seitas e
códigos secretos. Um voo absoluto no reino da fascinação intelectual.
Um mergulho soberano na erudição. Um jogo de livre-associação que só
poderia ser superado por um computador programado para estabelecer
relações lógicas (e certamente inúteis) a partir do patrimônio cultural
da humanidade. Abençoado pelo frio do outono, Eco concedeu esta
entrevista. Vertiginoso, aceitou colocar tudo no devido lugar e precisou,
outra vez, o papel dos meios de comunicação de massa, a função do
erudito, o valor da literatura e, acima de tudo, as características da
civilização da informática (segui o seu curso do primeiro ao último dia)
JMS – O senhor
mescla erudição e meios de comunicação de massa com perfeição. Trata-se
da mistura da cultura considerada legítima com o brilho da mídia ainda
menosprezada pelos intelectuais. Como analisar o papel das imagens no
mundo atual? Crise da modernidade e ameaça de uma nova barbárie ou
expansão comunicacional democratizante ?
Umberto
Eco. Uma pesquisa recente, publicada na Inglaterra, demonstra que hoje
os jovens leem mais do que os seus pais. Conclusão: a geração da
televisão e do computador é ainda encorajada a ler, mais do que em
relação às gerações precedentes. Com todos os seus defeitos, é evidente
que a civilização dos meios de comunicação de massa faz circular a
informação, mesmo superficial, e a informação estimula a necessidade de
conhecimento. Portanto, a superficialidade da mídia empurra a juventude a
buscar experiências mais profundas e satisfatórias. Na década de
sessenta, McLuhan podia anunciar o fim da civilização alfabética e o
nascimento do poder da aldeia global. Hoje, entretanto, as telas de
computador não mostram imagens, mas textos. Estamos prestes a entrar em
uma nova galáxia Gutenberg. A leitura das informações informatizadas
esbarra na ausência de aprofundamento, claro. Em todo caso, estou
seguro, depois de três horas na frente de um computador, explode a
vontade de ler um bom livro. A escrita não perdeu a guerra para a
audiovisual. Ao contrário, ela está face à vitória absoluta.
JMS
– Erudito e apaixonado pela informática, o senhor associa o sábio do
passado, que armazenava informações extraordinárias na memória, e o
intelectual da era pós-industrial, ligado aos bancos de dados
internacionais. Não o assusta, em uma espécie de ficção científica com
forte tendência à realidade, a possibilidade de ser secundarizado pelo
cérebro artificial? Dito de outra forma: qual é a função do intelectual
ao final do século XX?
Eco
– O computador é um instrumento como o eram as fichas dos intelectuais
de antigamente. O erudito antigo passava incontáveis dias a pesquisar
informações bibliográficas que hoje podem ser manipuladas em segundos a
partir de arquivos eletrônicos. Neste sentido, o computador faz
simplesmente uma parte do trabalho mecânico que os eruditos do passado
eram obrigados a realizar. A fotocópia, no mesmo sentido, permite ganhar
o tempo outrora dedicado à cópia dos textos. Na verdade, eu me irrito
um pouco com o excesso de informação erudita produzida pelos arquivos
eletrônicos. Temo que a abundância possa matar a informação relevante.
Se eu vou levantar dados em uma biblioteca, trabalho um dia e adquiro o
conhecimento de cerca de trinta livros, dos quais me lembrarei. Mas se
aperto um botão e surgem, sobre o mesmo assunto, dez mil títulos,
ficarei, em razão da quantidade, impossibilitado de reter as obras
verdadeiramente importantes. Do ponto de vista da escrita, pretende-se
que o computador é hemingwayniano, frases curtas e secas. Erro: ele é
proustiano e favorece a repercussão de todas as contradições. Logo, em
face dos novos meios, incontornáveis, os eruditos devem aprender uma
nova disciplina de pesquisa.
JMS – Em um texto de 1967, o
senhor falava da guerrilha da mídia e questionava-se sobre o verdadeiro
sujeito criador das ideologias ou dos costumes, modas e valores. Ainda é
pertinente dissertar sobre a potência absoluta dos meios de comunicação
de massa, sobretudo da televisão, ou os intelectuais de esquerda, no
Brasil, por exemplo, agarram-se a uma análise esclerosada quando
denunciam o poder da Rede Globo de fazer e desfazer a realidade ?
Eco
– Devemos considerar, mais uma vez, os efeitos da abundância: uma só
rede de televisão pode influir sobre as ideias dos telespectadores. Mas
quando o mesmo telespectador é submetido a dez redes e viaja entre elas,
o que ele absorve é o ruído. Neste caso, a influência da mídia anula-se
em vez de crescer e a independência é favorecida. Em um plebiscito
recente, na Itália, os grandes partidos e os meios de comunicação que os
representavam ou contrariavam resolveram silenciar de modo a estimular a
abstenção. A maioria dos italianos, contudo, compareceu às urnas e
votou pelo sim. A população tinha aceitado o chamado dos meios menores e
rejeitado o comando das grandes cadeias. Existem, de fato, os espaços
de escolha e as margens de manobra. Eu condeno a idéia maniqueísta dos
falsos intelectuais que consideram a escrita representativa do bem e a
imagem como o mal.
JMS
– Poder-se-ia imaginar que os meios de comunicação de massa são
detentores de poderes absolutos no Terceiro Mundo e domesticados nos
países desenvolvidos?
Eco
– Para o Terceiro Mundo talvez a situação seja diferente, justamente
porque não há possibilidade de escolha entre diferentes mensagens de
mídia. Mas é preciso não esquecer que muitos países trabalharam para
aumentar o índice de alfabetização, fator positivo, e elevaram a
barreira contra a homogeneização midíatica. Precisamos, o que é mais
importante, parar de pensar em universos compostos apenas pelos meios de
comunicação de massa. As sociedades são plurais. Nos Estados Unidos,
Ross Perot comprou enormes espaços na mídia. Clinton optou pelas equipes
de jovens voluntários que estabeleceram contatos corpo a corpo. Qual
foi o resultado? Se os meios de comunicação de massa fossem mesmo
possuidores de todo o poder, Perot teria vencido. O tecido social,
felizmente, é articulado de modo plural.
JMS
– Houve o tempo do estruturalismo, da linguística, da semiótica, da
semiologia e dos mestres da área, entre os quais Umberto Eco. Eram
modas? Passado o período de febre, qual o balanço possível?
Eco
– Sempre acontece de certas disciplinas ou correntes artísticas gerarem
sua própria moda. Depois, passado o apogeu, vencida a moda, resta a
pesquisa. Necessitamos julgar as investigações, não as aparências.
Ultrapassamos a época em que um movimento destruía o anterior, de acordo
com uma visão hegeliana da história. O que caracteriza a nossa
civilização é o entrelaçamento da televisão com o cinema, a imprensa, os
Beatles, Stockhausen e a literatura. Inventaram o termo pós-modernidade
para o que eu prefiro chamar de poliglotismo generalizado da cultura. Em síntese, prevalece a convivência.
JMS – O senhor escreveu romances que se transformaram em best-sellers. O Pêndulo de Foucault, paradoxalmente, é ilegível pelo menos até a página 27. Houve um projeto deliberado de construção literária hermética? O senhor buscou um estilo inacessível ?
Eco -
Eu digo com frequência que o meu leitor ideal deve ganhar o prazer da
leitura com esforço, como se ganha o prazer da paisagem escalando a
montanha. O fato de que os meus romances, escritos a partir da violação
de todas as regras do best-seller, transformem-se em fenômenos
de vendagem prova que os leitores são mais exigentes do que acreditam os
meios de comunicação de massa.
JMS – O Pêndulo de Foucault é uma critica das utopias clássicas, do poder, da razão absoluta e do marxismo ? Existe
uma passagem em que uma brasileira, ex-estudante de sociologia em
Paris, marxista, participa de uma sessão de candomblé. Trata-se da
caricatura dá queda do materialismo diante do misticismo exótico ?
Eco – O episódio brasileiro do Pêndulo é
uma parábola do que se passará com os meus personagens na Europa. Sim,
eu pensei na crise do imaginário de maio de 68 e nisto que se chama de
retorno do sagrado da parte de uma geração em crise de identidade. Mas
este retorno não foi, na maioria dos casos, uma volta a teologias ou a
filosofias. Retornou-se ao sagrado massificado, produto com o selo dos
mercadores do absoluto. A literatura, em todo caso, resiste. Eu passei
minha vida a colecionar livros antigos e a escrever livros novos.
Sinto-me mal dentro deste tempo e só posso experimentar compreendê-Io ,
escrevendo, para fugir ao mal-estar.
JMS – Em
vez de conflito entre cultura visual e cultura da leitura, o senhor
prefere, de toda maneira, pensar em termos de integração?
Eco
– O senhor falou no sucesso dos meus romances. No século XIX,
certamente, eu teria conseguido um número menor de leitores, mesmo em
proporção à população mundial da época. E então? Vê-se muito a
televisão, constata-se a força da civilização da visão e esquece-se que
há uma civilização da leitura em marcha. Ela não desapareceu. Ao
contrário, expressa-se na sede de narrativas e na procura de jornais, de
novelas de televisão, do cinema e dos livros. Reina o desejo da
narrativa.
JMS
– Mergulhado em viagens, conferências e cursos no exterior a rotina de
um erudito célebre, o senhor encontra ainda tempo para a leitura?
Eco – Eu tenho cada vez menos tempo para ler livros. O problema mais grave para um sábio na atualidade é a enorme produção de preprints, os
textos, inventários de pesquisa, que chegam antes da publicação. A
relação de trocas científica passa-se, agora, através desses textos,
verdadeira indústria anterior às edições. Quando uma pesquisa é
publicada como livro, em geral, ela já está caduca.
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Novembro de 1992 (republicado em O pensamento do fim do século (L&PM)
* Sociólogo. Escritor. Prof. Universitário. Tradutor. Colunista do Correio do Povo
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/29/04/2013
Imagem da Internet
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