sábado, 27 de abril de 2013

Em busca de um perdão

J. J. Camargo* 
 
 É sabido que o ódio entre os que se deveriam amar é sempre mais intenso e duradouro. Mas, mesmo assim, 
devia ter prazo de validade.
É mpossível não ser atingido pelos estilhaços de alguns pacientes que partem, às vezes desastradamente, deixando fragmentos de história que não conseguem recontar a vida deles. Ainda mais quando o médico não foi mais do que uma testemunha acidental do desfecho não programado de um desconhecido que, por indecifráveis razões do destino, foi dado morrer em sua companhia.

As emergências dos grandes hospitais, que recebem pessoas de todos os tipos e em todas as condições, algumas vezes nos impõem essas inusitadas parcerias. E com direito a confidências pungentes e promessas desesperadas, o que denuncia a grande tragédia de se morrer sozinho, sem ter para lhe segurar a mão alguém que tenha um motivo, por tênue que seja, para lamentar a sua morte.

Solitários num momento definitivo, riscados do mundo. E assim eles se vão, como uma borracha que se apaga a si mesma.

O boné sujo, de uma malha leve, devia ser um companheiro antigo e das quatro estações, e não conseguia conter a cabeleira desgrenhada que escapava por todos os lados. Quando entrou na emergência da antiga Santa Casa dos indigentes, banhado de suor, foi reconhecido pela atendente como o viciado que vinha todas as noites, queixando-se de uma dor que ninguém acreditava, e implorando por morfina.

Não tinha documentos, a cada visita anunciava um nome diferente, e naquela noite tinha decidido ser o Mario.

Inexperiente e angustiado por não saber o que fazer, lhe perguntei: “Mario, me diga, onde é a dor”, e ele, pouco familiarizado com o nome novo, respondeu: “Quem, eu?”

Assim ficava difícil, mas não desisti, e logo passei a acreditar, quando percebi que o pulso estava muito acelerado e que ele se contorcia na maca e suava cada vez mais. Aquela dor parecia verdadeira, e ficou claro que só conseguiríamos conversar se ela fosse levada a sério.

Uma ampola de morfina mais tarde, fizemos uma radiografia que mostrou um grande tumor que ocupava a maior parte do pulmão esquerdo e lhe invadia as costelas. Não era necessário ser especialista para perceber que ele estava morrendo.

Depois de retiramos uma amostra de sangue para medir a oxigenação, fiquei comprimindo o local da punção e ele, aliviado do sofrimento atroz, choramingou: “Tenho muito medo de morrer!”

Quando lhe ofereci a mão livre, ele a segurou com as suas e fez um pedido que nunca consegui cumprir e que ficou por muito tempo grudado na lembrança como um adesivo inconveniente: “Diga ao meu pai, quando ele vier me buscar, que eu gosto dele e que me arrependi muito do que lhe disse na última vez que brigamos.”

Querendo consolá-lo, garanti que os pais sempre perdoam os filhos, e que era certo que ele até já devia ter esquecido. E ele discordou: “Acho que não, porque já faz 20 anos que ele me disse: hoje morremos um para o outro!”

Passado muito tempo, ainda lembro do desconsolo no seu olhar de moribundo. Ele morreu tentando apenas ser perdoado e ninguém veio resgatá-lo.

É sabido que o ódio entre os que se deveriam amar é sempre mais intenso e duradouro. Mas, mesmo assim, devia ter prazo de validade.
-------------
* Médico
Fonte: ZH on line, 26/04/2013

Nenhum comentário:

Postar um comentário