sábado, 23 de julho de 2011

Textos sagrados

Luiz Fernando Veríssimo*

 
Aquele pastor americano que previu o fim do mundo para o dia 12 de maio deste ano disse que tinha se baseado em mensagens cifradas da Bíblia para precisar a data. O mundo não acabou, como você deve ter notado, mas isso não impedirá que continue a busca por presságios e sinais escatológicos em textos religiosos, não só na Bíblia como no Corão, no Tora e no Livro dos Mórmons. Continuarão procurando no lugar errado.

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Todos os escritos religiosos são narrativas. Narram o deslocamento no tempo e no espaço de um líder, de um salvador, de um povo escolhido. Cristo, Maomé e Abraão são figuras literárias antes de serem outra coisa. Todas as religiões monoteístas compartilham esta qualidade, ou esta inevitabilidade, de literatura, pois só na palavra grafada a aventura sobre a Terra do herói de cada uma se realiza, como só a palavra grafada eternizou a poesia oral de Homero. O texto sagrado é sagrado menos por conter verdades reveladas do que por ser texto, com toda a reverência que a palavra escrita comanda. Mas a literatura não é confiável quando se trata de revelações específicas como o dia, o mês e o ano do fim do mundo.
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Jesus Cristo não confiava na palavra escrita. Em todo o Novo Testamento há apenas uma referência a algo escrito por ele (evangelho de João, 8:1-8). Questionado pelos fariseus se uma mulher apanhada em adultério deveria ser apedrejada, Jesus, antes de dizer que quem fosse sem pecado atirasse a primeira pedra, inclinou-se e escreveu com o dedo na terra. Não se sabe o que escreveu, nem em que língua. Há mesmo dúvidas sobre se ele sabia ler e escrever. Talvez apenas fingisse rabiscar na areia enquanto pensava na resposta. Todas as suas mensagens foram em forma de parábolas orais, e suas parábolas foram lições de vida a serem interpretadas, não agouros a serem decifrados. E nenhuma de suas parábolas preconiza que ele será herói ou mártir da narrativa cristã.

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Quem também nunca escreveu nada foi Sócrates – o outro pivô, segundo George Steiner, da história intelectual do Ocidente. Que se saiba, Sócrates não escreveu nem com o dedo na terra. O que sabemos dele foi o que Platão publicou. Platão foi para Sócrates o que Paulo de Tarso foi para Jesus, seu exegeta e propagador, com a diferença que Platão foi contemporâneo e discípulo de Sócrates enquanto Paulo de Tarso nunca viu Jesus Cristo. Platão, na sua escrita, se afastou do pensamento do seu mestre. Paulo de Tarso, na sua escrita, transformou um pregador num messias – o que não deixou de ser outra forma de infidelidade.
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No fim prevaleceu a literatura. Em todas as religiões monoteístas, os textos impuseram os dogmas, e a palavra grafada se sobrepôs ao espirito e à oralidade. Mas os mitos transcritos de Sócrates e os sermões espontâneos do Cristo, ou tudo que os dois nunca escreveram, talvez nos ensinem que a literatura é sempre uma falsificação, e que a escrita não garante nada. Nem profecias.
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* Jornalista. Escritor. Cronista da ZH
Fonte: ZH on line, 23/07/2011
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